(Crónica da edição de 10 de Julho de 2011)
1. Este jornal tem dado notícia do julgamento de um homem que alegadamente se fazia passar por mulher para seduzir outros homens com quem se relacionava através da Internet e que é acusado de exercer chantagem e intimidação sobre as pessoas que decidiam romper esse relacionamento. Um dos textos sobre o caso, publicado no passado dia 9 de Junho, suscitou a “perplexidade e indignação” do leitor Carlos Fabião, que diz não conseguir “descortinar que relevância ou pertinência tenha para o caso” a referência ao facto de o acusado ser, como se lia nessa peça, “um docente da Universidade de Évora”.
O leitor questiona: “Que têm as instituições ou empresas a ver com os comportamentos desviantes e os eventuais ilícitos criminais dos seus funcionários?”. E argumenta que “em nenhum momento se diz que as práticas [do arguido] se tenham desenvolvido a partir da Universidade ou com recurso a meios da instituição, e nada indica que os alvos do assédio fossem estudantes ou outros funcionários da Universidade”. O facto de, na sua opinião, “a natureza dos alegados crimes praticados [ser] particularmente sensível” e poder ser confundida com o “aliciamento de jovens” através da Internet, contribui para que a “reiterada referência” à “relação laboral” do acusado com o estabelecimento de ensino alentejano possa afectar negativamente a “imagem da instituição”. A reforçar esse possível efeito, “chega-se ao extremo” — acusa — “de ilustrar com uma fotografia da Universidade de Évora a notícia sobre o julgamento do indivíduo”.
A jornalista Paula Torres de Carvalho, que tem acompanhado o julgamento e redigiu a notícia em questão, rebate os argumentos do leitor: ” A prioridade, neste caso, era contar a história sem identificar os arguidos, mas dando o máximo de informação e de contextualização dos factos em julgamento. O que me obrigou ao recurso mais frequente do que o desejável, reconheço, à referência da profissão do principal arguido e onde a exerce. A verdade é que o caso tem a relevância – e o interesse informativo – que tem, precisamente por envolver quem envolve (…). E sendo um professor universitário, a obrigatória precisão dos factos narrados (…) não dispensa essa explícita referência”. Quanto à fotografia, admite que “a escolha não foi a mais feliz, embora resulte da decisão de não se publicar imagens da pessoa em causa, contrariamente ao que outros jornais fizeram”.
A relevância do acompanhamento noticioso deste julgamento resulta da invulgaridade dos crimes de que o principal arguido é acusado, e dos meios de que se terá servido, mas também da imputação, que lhe é feita pelo Ministério Público, de ter contratado detectives privados — que por sua vez recorriam aos serviços remunerados de elementos da PSP e da Polícia Judiciária — para vigiarem as vítimas e colaborarem na sua intimidação. Detectives e polícias são, aliás, arguidos no mesmo processo, como foi noticiado, e Paula Torres de Carvalho recorda esse facto para questionar: “Acaso os inspectores da PJ igualmente envolvidos neste processo judicial, e assim identificados, co-responsabilizam minimamente a instituição Polícia Judiciária?”.
Numa notícia como esta deve procurar-se o equilíbrio entre o respeito pela presunção de inocência, evitando identificar os arguidos, e uma descrição eficaz e inteligível dos factos que conduziram à acusação, bem como do seu contexto, o que não só justifica como aconselha a referência a elementos de caracterização dos protagonistas. Julgo que a jornalista adoptou, nesse plano, uma solução acertada. Poderá considerar-se que a referência à Universidade de Évora seria dispensável, bastando caracterizar o arguido como docente universitário e residente naquela cidade. Mas nem essa referência é “reiterada” (aparece uma vez no texto de 9 de Junho e não surge na peça dedicada à sessão seguinte do julgamento, publicada a 23), nem me parece susceptível de causar dano à imagem da escola.
Questão diferente é a da fotografia. A escolha de uma imagem daquela universidade para ilustrar a notícia não me parece justificável. Nada acrescenta ao texto e pode ser vista como um envolvimento abusivo da instituição num caso a que é alheia, como sugere o leitor. As condicionantes gráficas da edição do PÚBLICO (neste caso, a escolha de paginar esta notícia num espaço que prevê uma fotografia) não podem servir como argumento de facilidade para justificar o erro. Neste caso, deveria ter-se procurado uma solução aceitável para a ilustração (fotográfica ou não) ou prescindido dela.
2. Curiosamente, o tipo particular de assédio sexual que terá dado origem ao julgamento anteriormente referido foi um dos temas de actualidade que motivou Paula Torres de Carvalho a escrever um texto intitulado “O lado negro e dividido do sexo“, publicado no caderno P2 da passada segunda-feira, e que provocou reclamações em que volta a estar em causa — embora não só — a edição fotográfica.
O artigo propõe-se retratar “as pessoas que sofrem de perturbações sexuais designadas por parafilias”, através de uma conversa com o psicanalista Carlos Amaral Dias. A autora optou por escrever um texto com citações do entrevistado (único, neste caso), e não por uma entrevista propriamente dita (perguntas e respostas), pelo que não podem ser atribuídas ao psicanalista todas as afirmações (e juízos) que compõem a peça. Mas é referida a sua preferência pelo termo “perversão” para englobar num mesmo conceito — e essa ideia perpassa por todo o texto — qualquer tipo de práticas sexuais menos convencionais, independentemente da sua natureza e da sua legitimidade jurídica e moral.
Contra isto protestou a leitora Paula F. (que se identificou devidamente, mas pediu que não fosse aqui referido o seu apelido), considerando que o artigo é marcado pelo “preconceito (…) quanto a sexualidades alternativas” e contribui para “desinformar”, nomeadamente ao “juntar num mesmo conceito fetichismo e pedofilia”. Na sua opinião, “o erro mais grave está claramente na associação entre uma imagem de conteúdo sexual entre adultos que consentem e um texto que todo ele fala de parafilias e interacções não consensuais, inclusivamente com crianças, ou seja um texto que fala sobre criminosos”. A fotografia em causa parece mostrar-nos (digo que parece porque nem tudo é visível) uma mulher sentada sobre as costas de um homem ajoelhado e de mãos no chão, equipado com a parafernália própria da cenografia sadomasoquista, em nada sugerindo o que a leitora designa por “interacção não consensual”. Paula F. considera que “a inserção de uma fotografia que nada tem a ver com o texto é ofensiva para quem tem práticas sexuais” menos convencionais.
No mesmo sentido se pronunciou, dias depois, outro leitor devidamente identificado e que não quis ver citado o seu nome. Também ele considera o artigo do P2 “atentatório dos direitos individuais de muitos cidadãos”, por estar orientado para considerar desviante e criminosa qualquer prática sexual que fuja à norma”, e “[meter] no mesmo saco ‘o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, o exibicionismo ou o voyeurismo'”. E também ele vê na fotografia que “remete para uma cena de sadomasoquismo” uma escolha abusiva para ilustrar uma peça em que, afirma,”todos os casos concretos referidos são criminosos ou patológicos”. Este leitor critica ainda outra opção de edição fotográfica, a da capa do P2 que remetia para o texto de Paula Torres de Carvalho, escrevendo que aí se “faz mais outra generalização abusiva, colocando uma stripper e o título ‘Quando as disfunções sexuais deixam de ser segredo’“. “Quererá o PÚBLICO” — interroga — “dizer que as strippers e/ou os seus clientes também sofrem de disfunções sexuais?”.
Face à crítica da primeira leitora, a autora da peça, que explica não ter “a mínima responsabilidade” na escolha das fotografias, defende que se trata de um “equívoco total” de quem entendeu que “o trabalho deveria ser antes sobre sexualidades alternativas”, quando se tratou de ouvir “um dos especialistas mais conhecedores” para “uma explicação acerca de comportamentos” como, entre outros, o do acima referido professor. A sua posição, porém, não é consensual na redacção do PÚBLICO. Bárbara Wong, editora do P2, considera que o texto “deveria estar escrito [em forma] de pergunta/resposta (…) a Amaral Dias”, para tornar clara a responsabilidade pelas opiniões expendidas, mas defende a escolha da fotografia contestada, já que “transmite uma [das] práticas” referidas no artigo. E a Vanessa Rato, também editora, “pareceu problemático (tal como à leitora) tratar de igual forma fetiches e crimes”, não vendo “razão para que o jornal se colasse à opinião questionável (…) de um único profissional, devendo cruzar vozes com distintas posições sobre o tema”.
No pouco espaço que me resta, gostaria de salientar que, na minha opinião, os leitores têm neste caso toda a razão. Ainda que motivado pelo caso do professor que se fazia passar por mulher, o texto publicado no P2 propõe-se abranger, e não propriamente a propósito, um universo muito mais largo e mistura de facto, por opção ou por falta de clareza, certas preferências sexuais menos convencionais e práticas criminosas, ignorando a distinção básica que separa o sexo consentido entre adultos do mundo do abuso e do crime. A própria terminologia clínica ou moral utilizada (“perturbações”, “disfunções”, “perversões”), ao abranger indiscriminadamente todas essas situações, indica falta de rigor, e esta torna-se ainda mais patente pela escolha das fotografias, na qual é possível ver alguma cedência ao sensacionalismo.
Suponho também — mas deixo essa questão aos especialistas — que certas opiniões que a leitura do texto sugere serem as do psicanalista ouvido não corresponderão a um consenso científico actualizado, e penso que Vanessa Rato tem razão quando diz que deveriam ter sido ouvidos outros profissionais. Em suma, a noção do serviço a prestar aos leitores — independentemente, já agora, das suas preferências sexuais ou dos olhares que tenham sobre preferências alheias — deveria levar a que se esperasse melhor de um trabalho do PÚBLICO sobre um tema culturalmente controverso.
José Queirós
Documentação complementar
O problema da identificação de um arguido
Carta do leitor Carlos Fabião
Venho por este meio expressar-lhe a minha perplexidade e indignação por um aspecto reiteradamente referido por este jornal no tratamento da notícia sobre um indivíduo que alegadamente aliciaria outros através da Internet. Nada a dizer quanto ao tratamento factual do caso, mas não consigo descortinar que relevância ou pertinência tenha para o caso a reiterada referência de se tratar de um docente da Universidade de Évora. Que têm as instituições ou empresas a ver com os comportamentos desviantes e os eventuais ilícitos criminais dos seus funcionários? Em nenhum momento se diz que as suas práticas se tenham desenvolvido a partir da Universidade ou com recurso a meios da instituição, nada indica que os alvos do assédio fossem estudantes ou outros funcionários da Universidade, porque razão então a mesma é constantemente referida?
Na edição de hoje, 9 de Junho, página 8, chega-se ao extremo de ilustrar com uma fotografia da Universidade de Évora a notícia sobre o julgamento do indivíduo. Como é possível?!
Se acaso o arguido fosse funcionário do jornal Público o tratamento noticioso do tema insistiria nessa relação? Publicaria uma foto das instalações do jornal na notícia sobre o julgamento? Usaria a jornalista de expressões como “o nosso colega, acusado de aliciar outros homens pela Internet…”?
Creio que não o faria… E que, se essa relação laboral existisse, a jornalista e a Redacção do jornal não teria qualquer dúvida em considerar a absoluta irrelevância de tal relação laboral no tratamento do caso.
Mas, para lá da questão de princípio, já de si inadmissível, há uma situação ainda mais grave, se tal é possível! A Universidade de Évora é uma instituição pública de ensino superior e a natureza dos alegados crimes praticados é particularmente sensível; o aliciamento via Internet que, embora não pareça ser o caso, facilmente se confunde com o tema igualmente candente do aliciamento de jovens por essa via. Terá consciência a jornalista, a redacção e o jornal Público do efeito que poderá ter esta reiterada referência à Universidade de Évora na imagem da instituição, sobretudo em um momento tão sensível como este, de final de ano lectivo, quando milhares de jovens se preparam para fazer as suas escolhas de prosseguimento de estudos no ensino superior?
9 de Junho de 2011
Carlos Fabião
Resposta da jornalista Paula Torres de Carvalho
Em conformidade com o que está estabelecido no Livro de Estilo do jornal e no respeito à presunção de inocência, a prioridade, neste caso, era contar a história sem identificar os arguidos, mas dando o máximo de informação e de contextualização dos factos em julgamento. O que me obrigou ao recurso mais frequente do que o desejável, reconheço, à referência da profissão do principal arguido e onde a exerce. A verdade é que o caso tem a relevância – e o interesse informativo – que tem, precisamente por envolver quem envolve, e não um trolha, por exemplo. E sendo um professor universitário, a obrigatória precisão dos factos narrados – constantes do despacho de pronúncia, portanto, com uma acusação devidamente formalizada pelo Ministério Público, é bom recordar – não dispensa essa explícita referência.
Acaso os inspectores da PJ igualmente envolvidos neste processo judicial, e assim identificados, co-responsabilizam minimamente a instituição Polícia Judiciária? E todos os mais variados casos, recentes e mais antigos, alguns até bem mais graves, envolvendo administradores de empresas, médicos, informáticos, polícias, militares e por ai adiante: acaso as entidades onde os acusados exerciam funções deixaram de ser referidas?
Relativamente à fotografia, aceito que a escolha não foi a mais feliz, embora resulte da decisão de não se publicar imagens da pessoa em causa, contrariamente ao que outros jornais fizeram.
Quanto a questão colocada pelo leitor, se o o arguido fosse alguém do PÚBLICO: procederia exactamente do mesmo modo.
11 de Junho de 2011
Paula Torres de Carvalho
Artigo intitulado “O lado negro e dividido do sexo”
Carta de uma leitora
Serve o presente email para manifestar a minha admiração por ver um jornal como o Público cometer um erro tão básico como o que foi cometido no artigo citado em epígrafe [“O lado negro e dividido do sexo”, publicado na edição de 4 de Lulho de 2o11, no caderno P2].
Não irei sequer referir o preconceito claro que atravessa o texto quanto a sexualidades alternativas. Mas juntar num mesmo contexto fetichismo e pedofilia é claramente sem sentido. Que tivessem feito uma caixa sobre fetichismo ainda era aceitável. Mas o que fizeram foi desinformar uma população já pouco esclarecida quanto à sexualidade.
O erro mais grave está claramente na associação entre uma imagem de conteúdo sexual entre adultos que consentem e um texto que todo ele fala de parafilias e interacções não consensuais, inclusivamente com crianças, ou seja um texto que fala sobre criminosos.
Ninguém pode achar que um pedófilo e um fetichista estão no mesmo patamar de parafilia…
(…) Acho lamentável a associação de imagens sexualmente atractivas para captar a atenção dos leitores, ignorando completamente que essa associação é errada, falaciosa e manipuladora.
(…) Note-se que o artigo nem sequer tem grande validade se tivermos em conta que os casos tratados pelo dr. C. Amaral Dias nesta área foram muito poucos – como o próprio referiu. Portanto limitou-se a dizer generalidades que vêm nos livros. Tudo isso seria aceitável (é preciso encher as páginas com conteúdos que vendam) mas a inserção de uma fotografia que nada tem a ver com o texto é ofensiva para quem tem práticas sexuais que não se limitam às clássicas posições de missionário.
Acho lamentável. Merecia uma nota dizendo que o Público errou. Porque a associação desse texto a essa imagem só pode ser um erro grosseiro. Estou certa que todos os jornalistas que trabalham para o Público saberão distinguir práticas sexuais consensuais de crimes (práticas não consensuais ou que envolvam crianças, por exemplo).
4 de Julho de 2011
Paula F. (leitora devidamente identificada)
Carta de um leitor
Remete-se esta nota após a leitura do artigo de destaque do P2 da passada segunda-feira, 4 de Julho (…) Se me dou ao trabalho de escrever é porque o Público é o meu jornal (sim, ainda tenho um jornal), porque reconheço mérito aos seus profissionais (…).O artigo intitulado ‘O lado negro e dividido do sexo’, da autoria de Paula Torres de Carvalho, merece o meu mais completo repúdio. Este artigo é ofensivo, é abusivo e é atentatório dos direitos individuais de muitos cidadãos. Todo ele está orientado para considerar desviante e criminosa qualquer prática sexual que fuja à norma – e vá-se lá saber quem define essa norma – mas que o Público está determinado em tipificar.
Comecemos pela imagem: A foto que acompanha esta notícia remete para uma cena de sadomasoquismo, que não é nunca referido no artigo, a não ser na breve referência censória ao fato de existirem clubes sadomasoquistas. Foi escolhido um especialista que assume quase nunca ter tratado destes casos, mas isso não o impede de tecer considerações genéricas que são legitimadas pela jornalista e pelo jornal. No artigo é metido tudo no mesmo saco: “o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, o exibicionismo ou o voyeurismo.” Os ‘casos’ apresentados misturam tudo: a pedofilia, o homem que se fazia passar por mulher, o político que envia fotos íntimas a mulheres, o sádico com fantasias homicidas, o fetichista, o automasoquista, a hipoxifilia, etc. A superficialidade com que tudo isto é tratado é assustadora e revela uma incompetência gritante da jornalista, incapaz de passar para além dos seus próprios preconceitos e da necessidade de fazer passar a sua mensagem de choque.
Nada no artigo é inocente e o caráter manipulatório é ultrajante. Todos os casos concretos referidos são criminosos ou patológicos – o do homem que se fazia passar por mulher graças às redes sociais, o do assassino de ratinhos que queria esventrar uma mulher. Pelo meio, atiram-se casos chocantes porque vão contra a moral e bons costumes e que pressupõem a taradice, como o político que envia fotos com uma erecção ou o pedófilo da família. Depois, subtilmente, mistura-se tudo com o sadismo, o masoquismo, o voyeurismo, etc., etc. Até que se consegue o efeito esperado: são todos vítimas de perturbações, de parafilias, de perversões. A quantidade de afirmações tendenciosas que não são fruto de citações directas do especialista garantem que o trabalho da jornalista não é inocente.
Por fim, o texto vai à capa do suplemento e faz mais outra generalização abusiva, colocando uma stripper e o título “Quando as disfunções sexuais deixam de ser segredo”. Quererá o Público dizer que as strippers e/ou os seus clientes também sofrem de disfunções sexuais? É uma falta de profissionalismo tão grande, um amadorismo tão desmesurado, um preconceito tão radical que tremo em pensar como são feitos os outros artigos e as outras capas do jornal.
Aliás, imaginemos que é atribuído à mesma jornalista uma reportagem sobre um espectador de um jogo de futebol que, durante o decorrer do jogo, entrou numa discussão com o colega de bancada e o matou. Seguindo o mesmo parâmetro, a jornalista iria entrevistar um especialista em motricidade que não tenha visto mais do que cinco jogos de futebol na vida, contando com as afirmações dele para concluir que todos os oitenta mil espectadores desse jogo são homicidas potenciais ou reais, com sentimentos de culpa ou não; e que os dois milhões que por acaso tenham assistido em casa também não são inocentes, porque uma arcaica edição do manual científico da especialidade assim o define. A foto que ilustraria o artigo seria a do actual secretário de estado da Cultura, porque em tempos publicou um livro chamado ‘Morte no Estádio’. E na capa do suplemento estaria um atleta de judo e um título ‘Prática desportiva revela tendência homicida’. Não tem nada a ver, não é? Pois.
(…) Fique o Público a saber que o ‘bdsm’ (‘bondage’, dominação, sadomasoquismo) não é considerado parafilia pela maioria dos especialistas de sexologia, que ao contrário do que afirma o ‘especialista’ contactado têm desenvolvido muitos estudos na área e sabem objectivamente do que estão a falar. Todos os praticantes sãos destas artes eróticas implicam sempre o princípio SSC- Seguro, São e Consensual, negando o rótulo de ‘abuso’ a qualquer destas práticas – que apesar do desconhecimento da jornalista, é frequentemente praticado por uma parte respeitável da população, sem que isso implique qualquer espécie de violência ou crime.
(…) A forma saudável de viver uma sexualidade é assumir os desejos e enquadrá-los, quer socialmente quer em privado. Se isso for feito com respeito pelos parceiros e pelas leis que regem a sociedade, não há nenhum preconceito que se aguente, nem mesmo o que foi pretensamente validado pelo “especialista” contactado. É aliás esta tendência – de equilibrar o desejo com a prática, enquadrando-a socialmente – que é considerada a vivência saudável da sexualidade, não o seu contrário.
Em tempos, esta mesma guerra moralista já foi travada contra os homossexuais e contra as mulheres – cujo direito ao prazer sexual era considerado, lá está, uma parafilia. É caso para dizer que os tempos mudam mas os preconceituosos ficam no mesmo sítio, a instigar ódios e a espalhar estereótipos. É uma pena saber que o Público fez (faz?) parte da cruzada fundamentalista.
8 de Julho de 2011
(Leitor devidamente identificado)
Comentário de Paula Torres de Carvalho à carta da leitora Paula F.
1. Esta entrevista com Amaral Dias foi realizada a propósito de dois casos da actualidade: o do professor de Évora e o do congressista americano.
2 . Amaral Dias é uma autoridade no que respeita ao estudo das parafilias e por isso decidi entrevistá-lo, tendo em vista o enriquecimento e aprofundamento do tratamento do tema.
3. O texto começou por ser criticado [por uma editora] que o considerou “moralista”, facto que contestei, defendendo a manutenção da sua construção, num texto corrido e sem pergunta/resposta. Mas acedi a mudar a entrada, para deixar mais claro que o trabalho resultava de uma entrevista com Amaral Dias. De resto, a estrutura manteve-se.
4. (…) A leitora não tem razão. A leitura, cuja competência científica se ignora e ainda por cima sob anonimato, (o que na minha opinião, nem devia ser acolhido pelo provedor) entendeu que o texto era preconceituoso e que o trabalho deveria ser antes sobre sexualidades alternativas. Equívoco total de quem confunde o que pessoalmente lhe interessava ser tratado com a opção de tratar o assunto com um dos especialistas mais conhecedor do tema para uma explicação acerca dos comportamentos do professor e do congressista.
5. Quanto à fotografia, não me cabe a mínima responsabilidade.
6. Já agora, convém sublinhar que há de facto perturbações psicológicas relacionadas com práticas sexuais como está bem explicado, aliás, por Amaral Dias. As sexualidades alternativas são outra conversa. Nós, jornalistas, devemos entrevistar quem mais tem competência para falar sobre os assuntos, mesmo que isso nos incomode, vá contra as nossas preferências sexuais, ou simpatia. E correndo os riscos de ofender leitores que gostem de abrir gabardinas ou pôr sacos de plástico na cabeça e ainda por cima que não saibam ler o que está tão claramente escrito.
7 de Julho de 2011
Paula Torres de Carvalho
Esclarecimento da editora do P2 Vanessa Rato
Decidi não publicar o texto no dia em que estava previsto (domingo 26, para a edição de segunda 27 de Junho) (…) porque (…) me pareceu problemático (tal como à leitora) tratar de igual forma fetiches e crimes (…). Pareceu-me também que, não sendo afinal uma entrevista pergunta/resposta, não havia razão para que o jornal se colasse à opinião questionável (como todas, no que toca a temas fracturantes) de um único profissional, devendo cruzar vozes com distintas posições sobre o tema e que ajudassem a uma leitura poliédrica da realidade.
7 de Julho de 2011
Vanessa Rato
Resposta da editora do P2 Bárbara Wong
A escolha de imagens foi feita com base no texto escrito. A dada altura, a jornalista transcreve a definição de “parafilia” da Associação Americana de Psiquiatria, que diz: “sexualidade caracterizada por impulsos sexuais muito intensos e recorrentes, por fantasias e/ou comportamentos não convencionais, capazes de criar alterações desfavoráveis na vida familiar, ocupacional e social da pessoa pelo seu carácter compulsivo”. Logo de seguida, o texto continua enunciando a opinião do entrevistado, Carlos Amaral Dias: “Não é por recorrer a algumas destas prática de vez em quando que uma pessoa pode ser considerada perturbada, mas apenas se estas forem a única forma de lhes proporcionar prazer”. A imagem transmite uma dessas práticas. A leitora [Paula F.] não tem razão quando diz que este é “um texto que todo ele fala de parafilias e interacções não consensuais, inclusivamente com crianças, ou seja um texto que fala sobre criminosos”, porque o texto é mais abrangente do que isso (…).
7 de Julho de 2011
Bárbara Wong