Tesouradas na credibilidade


(Crónica da edição de 16 de Janeiro de 2011)

Que deve concluir um leitor que vê no seu jornal um título impressivo (“Pinto Monteiro cortou à tesoura excertos de escutas a Sócrates transcritos num despacho“, edição de 4 de Janeiro) e uns dias depois depara com um desmentido do mesmo Pinto Monteiro, Procurador-Geral da República, afirmando que “não cortou à tesoura excertos de escutas a Sócrates transcritos num despacho” (edição de 8 de Janeiro), sem que esse desmentido seja acompanhado de qualquer explicação, nessa ou nas edições seguintes?

Concluirá, provavelmente, que o jornal se conforma com o desmentido e aceita ter veiculado uma informação que não seria verdadeira. Assim terá pensado o leitor Amadeu Mota, que, depois de ver a carta dirigida ao jornal por Pinto Monteiro, “acusando o PÚBLICO de notícia deturpada”, e “sem haver uma nota da direcção” com qualquer esclarecimento suplementar, se manifesta “perplexo com mais um erro inadmissível”, que, segundo sugere a encabeçar a mensagem que me enviou, “desprestigia” o jornal.

Procurei averiguar o que levou o PÚBLICO a destacar uma informação como esta, a que até hoje não foi acrescentado nada que a credibilizasse, mas que foi considerada relevante, ao ponto de justificar uma chamada na primeira página, um título a quatro colunas no interior e ainda — na secção “Sobe e Desce” da última página — um comentário, ilustrado pela foto de Pinto Monteiro, segundo o qual ” a justiça passou a ter um novo símbolo: a tesoura”.

A questão do relevo não é indiferente. São conhecidos há muito, e foram relatados neste jornal, vários factos importantes relacionados com o processo Face Oculta. Sabe-se que foram escutadas conversas entre o arguido Armando Vara e o primeiro-ministro, José Sócrates, e que o seu conteúdo levou agentes judiciários a ver nelas indícios criminais, no que não foram acompanhados por magistrados de nível superior. Sabe-se que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça ordenou a destruição dessas escutas e das suas transcrições. Sabe-se que o Procurador-Geral citara ou referira o conteúdo dessas escutas, em despachos por si assinados, e que anunciara, na sequência da deliberação do presidente do STJ, ter mandado destruir essas transcrições. E sabe-se que todos esses factos e as decisões dos vários protagonistas são ainda objecto de controvérsia jurídica e política, que a imprensa tem o dever de acompanhar. Ora, na notícia publicada no passado dia 4 e desmentida pelo Procurador-Geral, surgia apenas um dado novo: a destruição das transcrições em causa teria sido feita com uma tesoura. Aceitando que a referência ao instrumento é curiosa, por ilustrar de algum modo o grau de modernização tecnológica alcançado nos patamares superiores da magistratura, cabe perguntar qual a sua importância para justificar o relevo dado a uma notícia que o jornal teve de aceitar ver desmentida.

O jornalista António Arnaldo Mesquita, co-autor da notícia em causa, mantém que a informação que divulgou é verdadeira. “A informação dos cortes à tesoura”, esclarece, “foi obtida por mim junto de uma fonte judicial” e confirmada “junto de outra” pela sua colega Mariana Oliveira, “em ambas as situações sob anonimato”. “Não vimos as folhas do processo”, mas, acrescenta, “já após a publicação do desmentido do PGR, voltei a ter a garantia de que as transcrições foram retiradas dos autos”. Essa nova diligência levou-o a admitir que, em alternativa à tesoura, “pode ter sido usado um x-acto”, mas não “um corrector para apagar as palavras”, já que, segundo as fontes em que confia, “as folhas tinham buracos”. Em seu entender, “trata-se de um caso em que só pode apurar-se quem está a divulgar uma informação falsa (o PGR ou os autores da notícia) quando for possível a consulta dos autos”. E justifica a oportunidade da publicação por, em contacto prévio com a Procuradoria, “não ter havido um desmentido formal”.

Estas explicações suscitam-me alguns reparos. Antes de mais, a credibilidade do jornal impõe que o recurso ao anonimato seja evitado sempre que possível e as boas práticas profissionais restringem fortemente os casos em que é admissível. Não me parece fácil justificar a sua necessidade para noticiar (e neste caso é só essa a notícia) qual o utensílio usado para fazer desaparecer os excertos de conversas entre Vara e Sócrates.

Aliás, a peça não citava qualquer fonte, anónima ou não, fazendo assim dos jornalistas os únicos garantes da sua veracidade, num caso em que não tiveram, até agora, a possibilidade de a comprovar directamente. Essa opção coloca sempre em jogo a credibilidade do jornal, e por isso, quando não é acompanhada de outras formas de validação, impõe que à convicção da fiabilidade das fontes se some uma avaliação ponderada do valor informativo em causa. Valor que é escasso neste caso.

Sucede que, de acordo com a troca de correspondência que me foi facultada pelo jornalista, o que foi perguntado ao gabinete de imprensa da Procuradoria (ao fim da tarde da véspera da publicação da notícia) foi se confirmava a informação de que Pinto Monteiro “retalhou um dos seus despachos para fazer desaparecer extractos das transcrições das escutas envolvendo o senhor primeiro-ministro”. A pergunta ficou sem resposta directa, tendo a assessoria do Procurador-Geral optado por declarar que já “tudo foi esclarecido” e remeter para um comunicado anteriormente divulgado, em que se lê que “foram mandadas destruir todas as referências aos conteúdos das gravações que constavam nos despachos” proferidos por Pinto Monteiro. Sendo isto já conhecido, constata-se que a resposta oficial não esclarece se o Procurador se dedicou ou não a “retalhar” documentos dos autos, mas também se verifica que a pergunta não referia tesouras ou outros instrumentos cortantes, sendo legítimo admitir que o verbo “retalhar” não tenha sido interpretado em sentido literal.

Note-se, aliás, que o posterior desmentido de Pinto Monteiro nem sequer nega a utilização da famigerada tesoura. Nega, sim, que ele, Procurador-Geral, tenha usado uma para cortar “escutas” (como o PÚBLICO afirmou em dois títulos e sugeriu na peça principal), “tendo-se limitado”, segundo escreveu, “a ordenar a destruição dos despachos originais”, anteriormente “reproduzidos, sem as respectivas transcrições”.

Na explicação que me enviou, António Arnaldo Mesquita reconhece que a situação criada “obriga a reflectir se uma informação não confirmável directa e pessoalmente pelo jornalista deve ou não ser publicada, mesmo quando haja dupla confirmação da situação, como sucedeu neste caso”. Eu diria que qualquer informação escudada no anonimato obriga a essa reflexão, e que neste caso, tratando-se de pouco mais do que um dado curioso, mas não confirmado pelo protagonista da notícia, caberia ao jornal concluir pela inexistência de informação publicável ou fazer novas diligências para verificar a sua autenticidade. Não fez uma coisa nem outra; preferiu ter um título apelativo e dizer aos seus leitores que o PGR “cortou com tesoura” as escutas a Sócrates, sujeitando-se a um desmentido que o “desprestigia”, na expressão compreensível do leitor Amadeu Mota.

O argumento de que se trata de um caso em que só pode apurar-se a verdade “quando for possível a consulta dos autos” não autoriza uma opção editorial que pode ser vista como nociva para a credibilidade do jornal. Se essa consulta revelar papéis “retalhados”, os leitores ficarão a sabê-lo e concluirão o que entenderem, mas isso não significará que foi Pinto Monteiro a “retalhá-los”, como leram no PÚBLICO. O que ficará a valer é o desmentido, que não foi acompanhado de qualquer nota que, como a lei faculta, lhe apontasse alguma inexactidão. Se isso aconteceu por não ser possível apontá-la, o jornal deveria ter reconhecido abertamente a falha.

Questões de relevo

Chegaram-me reclamações sobre o relevo dado ao acompanhamento noticioso do caso do assassínio de Carlos Castro (“o PÚBLICO excedeu-se”, diz por exemplo o leitor Augusto Magalhães). Uma das queixas comparava em tom crítico o destaque dado, em dias consecutivos, à morte do cronista social e ao falecimento do antigo “capitão de Abril” Vítor Alves.

Responde a directora do jornal, Bárbara Reis: “São notícias incomparáveis. Numa um homem morreu doente, na outra um homem foi selvaticamente assassinado. Publicámos uma notícia da morte de Vítor Alves na edição online mal se tornou público e demos um relevo bem visível na primeira página da edição impressa do dia seguinte. Ontem publicámos um obituário de duas páginas no P2, o caderno onde em regra publicamos os textos maiores e mais profundos. Não é aliás invulgar publicarmos obituários vários dias depois da notícia da morte. Dedicamos tempo a procurar os amigos e conhecidos da pessoa que morreu, a ler e a investigar a sua história. Naturalmente, não faria sentido tratar o assassinato de Carlos Castro neste modelo (…). Foi um crime de uma violência rara em qualquer parte do mundo, cá ou em Nova Iorque. Não teríamos feito um trabalho muito diferente se a vítima fosse uma figura pública do ‘mundo azul-escuro’ da política, em vez de uma figura pública do ‘mundo cor-de-rosa’. Há um falso moralismo nestas críticas que não partilhamos”.

Pela minha parte, considero útil e no essencial equilibrada a aposta feita na cobertura informativa do crime de Nova Iorque e dos seus desenvolvimentos. Mas acrescento — concordando que um caso nada tem a ver com o outro — que uma apreciação adequada da figura de Vítor Alves levaria a esperar do PÚBLICO, no momento do seu desaparecimento, uma atenção mais compatível com a importância do seu papel na nossa história recente.
José Queirós

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