(Crónica da edição de 5 de Dezembro de 2010)
Domingo, 21 de Novembro. O PÚBLICO dava destaque ao rescaldo da cimeira da NATO em Lisboa, incluindo uma reportagem das manifestações de protesto ocorridas na véspera. Os leitores estarão recordados de que muito se especulou sobre a possibilidade de se registarem actos de violência, mas afinal “tudo correu pacificamente”, como constatava o editorial desse dia.
O jornal já o previra. Paulo Moura, o jornalista encarregado de investigar, antes da cimeira, a probabilidade de se registarem incidentes violentos, como os que marcaram cimeiras semelhantes em outros países, chegara à conclusão de que tal não iria acontecer. “A maioria dos elementos dos grupos que têm a opção da violência decidiu não vir a Portugal, principalmente por falta de meios financeiros. E os elementos portugueses dessa tendência, por serem poucos e mal organizados (…), decidiram não actuar” — explica o repórter, cuja investigação permitiu ao jornal anunciar, em título da edição de 19/11, que “toda a desobediência será pacífica”.
Foi o que aconteceu, como ele próprio pôde testemunhar nas ruas da capital no dia seguinte. Ainda assim, e referindo-se à “terceira manifestação” que desfilou em Lisboa (atrás das que identificou com o PCP e o BE), e que descreveu como integrada por “pacifistas, anticapitalistas, anarquistas, libertários, idealistas sem ideário”, Paulo Moura viria a afirmar, na reportagem publicada no domingo: “Entre eles, estão elementos cujo objectivo era de facto provocar a violência”. O seu “plano”, escreveu, “era espalharem-se na multidão e começarem a provocar os polícias, na esperança de que estes ripostassem indiscriminadamente contra a manifestação”. E comentava, antes de sugerir que tal plano fora frustrado pelo facto de a PSP ter cercado e isolado esses manifestantes: “A polícia a carregar sobre os velhos militantes do PCP era provavelmente o sonho mais selvagem dos elementos anarquistas”.
O leitor Daniel Nicola protestou contra estas frases. Questionou qual a fonte que permitira escrever que os “anarquistas” pretendiam “de facto” provocar a violência. A referência ao seu “sonho mais selvagem” levou-o a perguntar: “[O repórter] inventou? Supôs? Interpreta sonhos? Foi informado? Por quem?”. E conclui que o que leu no PÚBLICO “não foi uma reportagem, foi todo um artigo de opinião”, marcado por “ideologia” e “preconceito”.
Paulo Moura responde a esta críticas num longo depoimento que me enviou e pode ser consultado em http://blogs.publico.pt/provedor. “Quem me deu estas informações” — diz, sobre o alegado “plano” para provocar violência —, “são pessoas que conheço há anos (…). Conheço as suas actividades, sei que já viajaram para outros países para participarem em acções violentas contra a polícia durante a realização de cimeiras (…). Não tenho portanto razões para duvidar da autenticidade das informações que me confiaram. Fizeram-no, contudo, mediante a promessa de que não revelaria as suas identidades”.
Admitindo ter tido dúvidas em escrever, nessas condições, que “alguns elementos pretendiam usar a violência”, até porque esta não existiu e tais “intenções” lhe terão sido comunicadas ao abrigo do anonimato, o jornalista contrapõe que “não houve violência, mas poderia ter havido”, e considera que “informar os leitores sobre estes planos por parte de alguns activistas” foi útil para explicar “a atitude de força da polícia”, que “foi de facto anormal, ao circunscrever parte dos manifestantes”. Admite, ainda, que “tenha sido desnecessária ou até deselegante” a referência aos “sonhos” dos “anarquistas”, mas a expressão usada, insiste, “corresponde ao que eles me disseram”.
Afirmando que não pôde confirmar na altura a explicação recebida dos próprios para a não concretização do alegado “plano” de provocação de confrontos (a de que “a polícia tinha sido informada das suas intenções”), Paulo Moura conclui que lhe restava “deixar a informação de que alguns anarquistas tinham de facto planos de usar a violência”, como “pista de interpretação para os leitores”.
A reportagem é um género jornalístico que se caracteriza pela liberdade narrativa e pelo espaço concedido à subjectividade de quem relata, mas continua a ser uma peça de informação, que deve assentar, como ditam as regras deste jornal, “no terreno preferencial dos factos e da sua observação directa”. A esta luz, a referência, afirmada no texto como uma certeza, a planos e intenções que não se concretizaram, atribuídas genericamente a anónimos, e sem apoio em factos ou declarações que as corroborassem (dos próprios ou de uma parte contrária), é questionável e penso que deveria ter sido evitada.
Por outro lado, a ausência de actos violentos em torno da cimeira de Lisboa seria sempre, em si mesma, um elemento noticioso relevante, face aos precedentes conhecidos e ao clima securitário criado. O trabalho assinado por Paulo Moura na véspera das manifestações — esse sim, com citações de fontes nomeadas — contribuíra para que se antecipasse um cenário de protestos sem confrontos nem destruições.
Se o mesmo jornalista teve conhecimento de que, ainda assim, existiu um “plano” para desestabilizar uma manifestação pacífica num dia em que Lisboa estava sob os olhos do mundo, e atribui o seu fracasso a uma actuação “anormal” da polícia, então valeria a pena terem sido averiguadas as razões de tal actuação. “Não consegui essas explicações na altura, mas tenciono em breve tentar obtê-las, para poder compreender o que se passou”, diz o repórter do PÚBLICO.
A alegada cooperação, não assumida publicamente, entre os organizadores da principal manifestação e as forças policiais, com vista a conter eventuais adeptos da violência, tem sido referida como explicação para a excepção lisboeta à regra dos confrontos que têm rodeado cimeiras como esta. Confirmá-lo, ou não, ajudaria certamente a “compreender [e noticiar] o que se passou”.
Luxo, crise e oportunidade
Há três semanas os compradores do PÚBLICO receberam, com o seu jornal de domingo, mais uma edição do suplemento anual Primus, dedicado ao universo do luxo e da moda. A chamada para o caderno de 64 páginas ocupava uma parte destacada da capa do jornal, com o sugestivo título “Gastar é uma arte”.
O conteúdo e a oportunidade do suplemento desagradaram ao leitor Rui Martins, de Lisboa, que censura a iniciativa: “Não sei o que mais choca neste vosso suplemento (…). Se a insensível falta de sentido de oportunidade, em vir falar da ‘arte de bem gastar’ num país que se senta à beira do precipício da bancarrota; se o vazio de ideias associado à noção de ‘sonhar em tempo de crise’: jóias, relógios e carros de luxo”.
“A fuga à neurose deprimente do nosso estado económico”, escreve este leitor, devia fazer-se pela criatividade e capacidade de gerar riqueza. Mas não: a fórmula da directora do PÚBLICO é o consumo, e sobretudo do que vier de fora. (…). Não há um conceito, um esboço crítico, uma perspectiva diferenciadora que nos faça acreditar na razão de existir deste suplemento. A vossa ideia de luxo, lamento dizê-lo, é uma pobreza”.
A directora do PÚBLICO não pensa assim. Acredita que, “sem preconceitos, se pode fazer jornalismo bom e rigoroso nas áreas da moda e boa vida”, recorda que “este tipo de suplemento existe em muitos jornais de referência internacionais” e mostra satisfação pela “qualidade invulgar” da revista, cuja elaboração foi este ano, pela primeira vez, assegurada por jornalistas do PÚBLICO, e não por uma equipa externa.
Segundo Bárbara Reis, “o factor crise foi discutido na redacção, claro – não podíamos deixar de ser sensíveis a ele -, mas acreditamos que a crise não deve eliminar a nossa capacidade de sonhar e sabemos que, com ou sem crise, é ingénuo pensar que o consumo de luxo não existe ou que, se existe, o devemos ignorar”. “O PÚBLICO”, argumenta, é um jornal que reflecte a complexidade do mundo” e nela “cabem a moda, os hotéis de luxo e os diamantes”, tal como os outros temas escolhidos para a capa da mesma edição: uma entrevista ao biógrafo de Obama, a polémica nacional sobre uma “grande coligaçāo” governamental e ainda “a qualidade do ar no meio urbano, a crise política francesa, a violência doméstica e o futuro do porto de Sines”.
Eu diria que cada um sonha com o que quer e lê o que lhe interessa. Se a alguns leitores incomoda a exibição do luxo (em tempos de miséria ou não), outros tirarão proveito, mais prático ou mais onírico, de um relance pelo mundo do glamour e dos prazeres milionários. À maioria interessará sobretudo o equilíbrio editorial do jornal — e esse não vejo que seja afectado por uma incursão anual na área dos consumos menos acessíveis ao comum dos mortais, ainda que essa não seja, certamente, a única ideia possível de luxo. Parece-me mais discutível o facto de o espaço dedicado ao Primus na primeira página de 14 de Novembro ter contribuído para remeter para o rodapé a chamada para o oportuno tema de destaque do jornal (“Chineses fazem renascer o sonho de Sines”), que, conforme explica Bárbara Reis, foi “uma das principais apostas desse domingo (e do planeamento de duas semanas)”.
Resta acrescentar, a bem da transparência, que suplementos como este não existem por acaso. Servem também para atrair um segmento relevante (o dos produtos de luxo) das receitas publicitárias indispensáveis a esse sonho mais quotidiano que é o de proporcionar a todos os leitores, na diversidade dos seus múltiplos interesses, um produto jornalístico de qualidade. Sendo este suplemento agora assegurado pela redacção do jornal, o que valerá a pena avaliar é a sua qualidade editorial. Se o PÚBLICO conta com jornalistas disponíveis para aplicar a estes temas os seus talentos profissionais, a fasquia da exigência sobe e cabe aos leitores avaliar o resultado.
José Queirós
Documentação complementar
Reportagem da manifestação contra a NATO
Carta do leitor Daniel Nicola
(…) Parece-me abusivo, da parte do Paulo Moura, deduzir sobre “o plano (dos anarquistas que) era espalharem-se na multidão e começarem a provocar os polícias, na esperança de que estes ripostassem indiscriminadamente contra a manifestação.” Continua: “…Era provavelmente o sonho mais selvagem dos elementos anarquistas”. Inventou? Supôs? Interpreta sonhos? Foi informado? Por quem? Faz-se futurologia no Público agora? Aquilo não foi uma reportagem, foi todo um artigo de opinião (…), todo um verter de ideologia e mero preconceito. Frases do estilo “…idealistas sem ideário. Entre eles, estão elementos cujo objectivo era de facto provocar a violência” cabem num jornal de referência? Qual foi a fonte para que se utilize o “de facto”?
Mas o melhor vem quando se lê (http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/ordem-perturba-mais-que-desordem.html) sobre a própria participação de Paulo Moura na manifestação, uma vergonha não só para o Público mas para todo o jornalismo português, que ameaça transformar-se numa indústria de fabricação. A ler: “Em todo o tempo em que estive lá a observar, como testemunha e prestando o meu apoio aos activistas, só vi uma pessoa exaltada: Paulo Moura, jornalista do Público. Indignado comigo pelo facto de eu não ter conseguido, pelo desenrolar das circunstâncias, cumprir com o que com ele tinha combinado: ler o comunicado dos activistas uma única vez diante de todos os jornalistas presentes. Não foi possível. Não estava lá como profissional de conferências de imprensa. Exaltado, para espanto também das outras duas pessoas que assistiam aos seus amuos devido à sua árdua tarefa de jornalista violentado nos seus direitos humanos pelo conferencista de serviço, o espanto atingiu o clímax com o comentário do ofendido: ‘Vocês são iguais aos gajos lá de baixo da cimeira’. Mesmo ficando na dúvida se apenas se referia aos adidos de imprensa dos senhores da guerra, respondi-lhe: ‘Nenhum de nós tem as mãos manchadas de sangue’. O profissional acalmou-se, respirou fundo, recompôs-se da figura: ‘Só tenho uma pergunta: quantos foram detidos?’. Ora, para isso, tem a polícia.” Está tudo dito.
23 de Novembro de 2010
Daniel Nicola
Viseu
Depoimento do jornalista Paulo Moura
Eis as minhas explicações sobre a forma como obtive as informações referidas e as razões por que decidi incluí-las no texto.
Comecei a trabalhar na reportagem sobre a manifestação e os vários tipos de contestação à cimeira da NATO não no dia 20 de Novembro, mas cerca de uma semana antes. A Direcção do jornal tinha-me pedido que investigasse que tipo de contestação ia haver e que grupos a iam realizar, incluindo, eventualmente, grupos violentos adeptos da estratégia do “black bloc”. Foi o que fiz.
Contactei com elementos de vários grupos, de várias tendências, portugueses e estrangeiros, e obtive a informação, além de muitas outras, de que a maioria dos elementos dos grupos que têm a opção da violência decidiu não vir a Portugal. Principalmente por falta de meios financeiros. E que os elementos portugueses dessa tendência, por serem poucos e mal organizados e não contarem com a ajuda dos afins estrangeiros, decidiu não actuar. Foi isso que escrevi, na reportagem publicada na sexta-feira, dia 19 de Novembro, sob o título “A crise também chegou ao Black bloc e toda a desobediência será pacífica”.
Que eu saiba (embora não possa garantir) fui o único jornalista a escrever que não estavam previstas quaisquer acções violentas nos dias da cimeira.
No dia da manifestação (20 de Novembro), voltei a falar com alguns elementos anarquistas (que se designam como tal, a classificação não é minha) adeptos de acções violentas, e que estavam presentes. Disseram-me que, apesar de serem poucos, tinham planeado lançar provocações contra a polícia, com o propósito de obterem uma reacção. A ideia era misturarem-se na manifestação, e insultarem e agredirem fisicamente os agentes da polícia, com o objectivo de os fazer carregar indiscriminadamente sobre a multidão. Assim ficaria evidente, perante as câmaras de televisão, a verdadeira natureza violenta do sistema, explicaram-me.
E explicaram ainda que não puderam fazer nada disto, porque o corpo de intervenção da PSP cercou e confinou os elementos que seguiam na cauda da manifestação. E acrescentaram ainda que, se a polícia teve este comportamento, foi porque foi informada das intenções destes elementos anarquistas violentos.
Quem me deu estas informações são pessoas que conheço há anos (nalguns casos há muitos). Já falei com elas para trabalhos anteriores, conheço as suas actividades, sei que já viajaram para outros países para participarem em acções violentas contra a polícia durante a realização de cimeiras ou visitas de chefes de Estado (porque essas acções, como sabemos, existem; nem todos os manifestantes são pacíficos ou pacifistas).
Não tenho portanto razões para duvidar da autenticidade das informações que me confiaram. Fizeram-no, contudo, mediante a promessa de que não revelaria as suas identidades, em circunstância alguma. Aceitei essa condição, por se tratar de pessoas que cometem actos ilegais e puníveis, embora o façam na boa-fé de que são actos de contestação política legítima.
Foi portanto assim que obtive a informação, que considerei credível, e que escrevi:
“Na terceira manifestação, há pacifistas, anti-capitalistas, anarquistas, libertários, idealistas sem ideário. Entre eles, estão elementos cujo objectivo era de facto provocar a violência. Não muitos, que os grupos europeus partidários da estratégia do ‘black bloc’ ficaram em casa (principalmente na Alemanha), por falta de dinheiro para a viagem. E os portugueses são poucos e desorganizados”.
Não escrevi que eram todos, nem que eram afectos ao PCP ou ao Bloco de Esquerda ou qualquer outra organização, nem sequer que provocaram ou teriam provocado violência. Escrevi apenas que alguns elementos tinham a intenção de provocar a violência.
Quanto à enumeração “há pacifistas, anti-capitalistas, anarquistas, libertários, idealistas sem ideário” corresponde a uma caracterização baseada nas próprias auto-classificações das pessoas que entrevistei. Com a expressão “idealistas sem ideário” pretendi descrever aqueles que me disseram possuir ideias como “a paz” ou “um mundo mais justo”, mas que não perfilham qualquer sistema ideológico organizado e definido.
Resta responder à questão: porque decidi incluir no texto a informação de que alguns elementos pretendiam usar a violência? Admito que tive dúvidas e ponderei várias razões (tanto quanto é possível fazê-lo na rapidez de uma reportagem escrita no próprio dia).
Por um lado:
1- É verdade que não chegou a haver violência (excepto alguns encontrões aos polícias, a que eles não reagiram), pelo que eu talvez não devesse sequer ter mencionado as intenções violentas de alguns.
2- Os que tencionavam usar a violência eram uma minoria, pelo que não era relevante falar sobre eles.
3- As minhas fontes pediram anonimato, pelo que talvez não devesse ter usado as suas informações.
4- Ter escrito que havia intenções de violência por parte de alguns pode ser interpretado como uma justificação para a atitude “musculada” da polícia.
Mas, por outro lado:
1- Não houve violência, mas poderia ter havido. Não é uma hipótese absurda ou ridícula. Acontece frequentemente em eventos deste tipo noutros países, e é de admitir e tentar compreender as possibilidades de também vir a ocorrer em Portugal, designadamente se a crise económica e as condições sociais se agravarem no futuro.
2- Os que tentam provocar a violência são sempre uma minoria, e não deixam por isso de ter a capacidade, com as circunstâncias propícias, de pôr uma cidade quase em estado de guerra (pense-se em Atenas ou Paris).
3- Informar os leitores sobre estes planos por parte de alguns activistas, se é verdade que não justifica a atitude de força da polícia, explica-a em parte. A actuação da polícia foi de facto anormal, ao circunscrever parte dos manifestantes, e achei que deveria transmitir isso aos leitores. Por isso escrevi: “A terceira [parte da manifestação] apresenta-se de forma estranha. Não por causa das raparigas de cabeleira azul (…) Mas o que torna o grupo realmente estranho é estar afastado do resto da multidão e cercado por um cordão de polícia de choque.”
Mas dito isto, achei que era pertinente deixar aos leitores algumas pistas de interpretação. Eu tenho de olhar sem preconceitos e com equidistância para as várias partes envolvidas no acontecimento da manifestação. Não posso partir do princípio que os comunistas preferem desfilar sozinhos, e que por isso isolaram os outros manifestantes, nem que os “bloquistas” ou os elementos da plataforma PAGAN são violentos e gostariam de provocar confrontos, nem que a polícia é um bando de facínoras que só tem por objectivo reprimir os verdadeiros manifestantes anti-Nato. É isto que dizem uns dos outros, por isso não reproduzi as explicações contraditórias que me foram dadas no local. Elementos da esquerda mais radical disseram-me que foi o PCP que mandou a polícia cercá-los; elementos do PCP disseram-me que não tinham nada a ver com isso; a policia recusou-se a dar-me qualquer explicação.
É claro que, em rigor, é a policia que terá de explicar porque fez o que fez. Não consegui essas explicações na altura, mas tenciono em breve tentar obtê-las, para poder compreender o que se passou.
É verdade que os anarquistas me deram uma explicação – a polícia tinha sido informada das suas intenções violentas. Mas não a usei, porque considerei que os anarquistas não estão habilitados para saber que informações a polícia tinha ou deixava de ter.
Em conclusão: restava-me deixar a informação de que alguns anarquistas tinham de facto planos de usar a violência. Seria uma pista de interpretação para os leitores. Deixei outras, como o facto de as várias tendências na manifestação desfilarem em blocos separados, de os slogans da maioria dos manifestantes se relacionarem com a crise económica e não com a natureza ou actividades da NATO, etc.
Acho que a minha obrigação é dar pistas de interpretação, e não fornecer uma interpretação final e definitiva – essa deixo-a ao critério do leitor. A ideia de que o jornalista se deve cingir aos factos, para ser objectivo, é um mito, principalmente num acontecimento altamente simbólico como é uma manifestação. Eu cingi-me aos factos, mas a própria escolha dos factos a relatar é sempre significativa.
Mas afirmar que a minha reportagem é “todo um artigo de opinião (…), todo um verter de ideologia e mero preconceito” parece-me um absurdo, sem qualquer fundamento. Admito que a expressão “os sonhos mais selvagens dos anarquistas” tenha sido desnecessária ou até deselegante. Mas corresponde ao que eles me disseram e em nada deturpa a descrição dos factos ou o sentido interpretativo de toda a narrativa.
Naquilo que são os factos importantes da manifestação, como por exemplo o número de pessoas que nela participaram, tentei ser o mais possível objectivo e rigoroso: combinei um encontro, no evento, com Steve Doig, que é especialista em contagem de multidões, usando métodos quantitativos das Ciências Sociais. Ele estimou (explicando o método usado) em 8 mil o número de manifestantes, enquanto a organização falava já em 30 mil.
Quanto às informações sobre os elementos com intenções violentas, quero acrescentar ainda que lhe atribuí uma importância relativa baixa, porquanto só as referi nos últimos parágrafos do texto, que tinha 6 mil caracteres, e não foram mencionadas nem no título nem na entrada.
(…) Espero ter-me explicado, embora nestas questões eu tenda sempre a ser humilde quanto às críticas dos leitores e dos colegas. (…) Acho que, ao contrário do que muitos pensam, uma manifestação é dos acontecimentos cuja cobertura jornalística é mais difícil de fazer. É preciso por vezes tomar rapidamente decisões difíceis e sensíveis, que me parece terem de ser analisadas na especificidade de cada caso.
P.S – Quanto ao episódio citado no blogue, relato rapidamente o que aconteceu: quando cheguei à Avenida de Pádua, onde os manifestantes deitados na rua estavam a ser detidos, e tentei obter informações, foi-me dito que só uma pessoa falaria aos jornalistas: o tal Júlio do Carmo Gomes, que estava ali perto. Dirigi-me a ele e fiz perguntas: quantas pessoas participaram na acção, a que grupos pertenciam, de que nacionalidade eram. Júlio do Carmo Gomes disse que só responderia, lendo um comunicado, quando estivessem todos os jornalistas presentes, incluindo a televisão. Insisti, mas ele não cedeu. Afastei-me, para tentar falar com os activistas que estavam algemados e com a polícia. Pouco depois voltei ao Júlio do Carmo Gomes, para ouvir as suas respostas e o comunicado, mas vejo que ele já está a lê-lo, para a câmara da TVI. Esperei que terminasse e depois perguntei-lhe por que razão não tinha falado comigo, e só falava para a televisão. Ele não conseguiu dar-me uma explicação e eu tive este desabafo: “Vim agora da sala de imprensa da cimeira, onde os jornalistas não têm acesso a nada do que se passa. Mas vocês não são diferentes”.
Júlio do Carmo Gomes respondeu, pomposo: “Somos diferentes porque não temos as mãos sujas de sangue”.
Foi isto que se passou. Para alem de ser uma anedota, não sei que outras conclusões se podem tirar.
27 de Novembro de 2010
Paulo Moura
Suplemento Primus
Non, ou a vã glória de gastar (carta de um leitor)
Não sei o que mais choca neste vosso suplemento “Primus” [edição de 14/11]. Se a insensível falta de sentido de oportunidade, em vir falar da “Arte de Bem Gastar” num país que se senta à beira do precipício da bancarrota; se o vazio de ideias associado à noção de “sonhar em tempo de crise”: jóias, relógios e carros de luxo.
Mais do que editorialmente irrelevante, este vosso suplemento confirma uma disfunção social e uma sublimação historicamente portuguesas: ignoremos o miserável estado de coisas e sonhemos por melhor… Gastando,aparentemente.
Sonhar é bom e saudável. Parece-me contudo que a fuga à neurose deprimente do nosso estado económico devia fazer-se pela criatividade e capacidade de gerar riqueza. Mas não: a fórmula da directora do Público é o consumo, e sobretudo do que vier de fora. Em vez de ser inspiradora e fazer sonhar, “Primus” releva ao estatuto de luxo a incapacidade em produzir ideias novas, que não passem pelo consumo puro e simples. Não há um conceito, um esboço crítico, uma perspectiva diferenciadora que nos faça acreditar na razão de existir deste suplemento.
A vossa ideia de luxo, lamento dizê-lo, é uma pobreza.
14 de Novembro de 2010
Rui Martins
Lisboa
Resposta da directora do PÚBLICO
Este ano, pela primeira vez em nove edições, decidimos fazer o suplemento Primus na redacção. Acreditamos que, sem preconceitos, se pode fazer jornalismo bom e rigoroso nas áreas da moda e boa-vida. Este tipo de suplemento existe em muitos jornais de referência internacionais. Inspirados nos melhores exemplos, convidámos o criador Filipe Faísca a fazer a nossa produção de moda. Estamos aliás muito orgulhosos do resultado pela sua qualidade invulgar na imprensa portuguesa.
O factor crise foi discutido na redacção, claro – não podíamos deixar de ser sensíveis a ele – mas acreditamos que a crise não deve eliminar a nossa capacidade de sonhar e sabemos que, com ou sem crise, é ingénuo pensar que o consumo de luxo nāo existe ou, se existe, o devemos ignorar.
Por último, e talvez mais importante do que as questões mais circunstanciais, o PÚBLICO é um jornal que reflecte a complexidade do mundo. E nessa complexidade cabem a moda, os hotéis de luxo e os diamantes, mas também uma entrevista a David Remnick, biógrafo do presidente Barack Obama, o cenário da “grande coligaçāo governamental, a qualidade do ar no meio urbano, a crise política francesa, a violência doméstica e o futuro do porto de Sines – os temas que escolhemos para a capa dessa ediçāo. “Chineses fazem renascer o sonho de Sines” foi aliás uma das principais apostas desse domingo (e do planeamento de 2 semanas), como se torna claro para qualquer leitor, uma vez que é o destaque do jornal e tem quatro páginas e textos assinados por cinco jornalistas.
20 de Novembro de 2010
Bárbara Reis
O Sr. Paulo Moura, dias antes, andou a perguntar a manifestantes o que era isso do black bloc e não sabia sequer se era um grupo ou uma táctica.De repente, aparece a dizer que tem informadores dentro do "movimento" anarquista, o que é tudo menos provável (e que só aparecem depois de lhe terem puxados as orelhas.O provedor diz que:""A alegada cooperação, não assumida publicamente, entre os organizadores da principal manifestação e as forças policiais, com vista a conter eventuais adeptos da violência, tem sido referida como explicação para a excepção lisboeta à regra dos confrontos que têm rodeado cimeiras como esta. Confirmá-lo, ou não, ajudaria certamente a "compreender [e noticiar] o que se passou".""Isto é fugir à verdade. A contestação de rua à cimeira começou na segunda-feira anterior. Mesmo sem cordões policiais e colaboração CGTP/PSP, tudo decorreu sem incidentes, porque a contestação foi programada nesse sentido.O cordão policial à volta de manifestantes (cortando-lhes direitos democráticos – porque é que isto não é assinalado na Público?) podia ter potenciado violência que (e agora sou eu que tenho liberdade interpretativa e até posso basear-me em fontes que preferiram ficar no anonimato) era o sonho mais selvagem de alguns agentes da polícia e do PCP e do Sr. Paulo Moura.
Sobre o jornalista Paulo Moura prefiro nada dizer porque a minha concepção de jornalismo passa honestidade na informação, o que muitas vezes me parece afastado dos seus artigos.Gostava no entanto de levantar uns pontos que me parece estranho que tenham sido referidos e outros esquecidos.- Eu estive na Avenida da Liberdade nesse dia e acompanhei uma senhora irlandesa de 84 anos que segurava uma bandeira da paz e em nenhum momento vi qualquer provocação ou violência pelo que a suposição feita pelo jornalista é um abuso- Não havia 3 manifestações convocadas para o local mas somente uma e para onde estavam convidados todos os portugueses que contestavam a realização da Cimeira da NATO. Não se percebe por isso porque foram cidadãos isolados como animais num redil sem nada terem feito que o justificasse. – Também estranho que ninguém tenha questionado as forças de segurança sobre a informação dada algum tempo antes da cimeira em que já existiam milhares de black-bloq em Portugal e depois não se tenha visto nem um. A justificação dada pelo jornalista parece mais uma anedota.- Toda esta situação criada à volta da Cimeira pelos média, talvez influenciados por cimeiras anteriores em outras cidades e pela desinformação policial, acabou por mostrar a sua falta de capacidade para ser objetiva e mais grave ainda de reconhecer o erro e repor a verdade. Espero sinceramente que de futuro os Jornais e televisões se preocupem mais em informar que em vender idéias pré-concebidas misturadas com algumas falsidades.
Excelente análise. Em ambos os casos. Obrigado.
Eram agentes provocadores aqueles que Paulo Moura diz conhecer ou ter contacto e que lhe disseram uma série de coisas de onda violenta que estariam para acontecer mas pronto, por falta de verba "os violentos" não vieram a Portugal. Haja paciência para este género de jornalismo mentiroso.As justificações que o jornalista apresenta são curiosas. Faria melhor trabalho e provavelmente ganharia mais caso funcionasse com os serviços de informação.A criação, propagação e manipulação do medo junto do público pode vender mais jornais mas tirará crédito à publicação e aniquila qualquer jornalista.