Um título errado e uma rectificação inútil



(Crónica da edição de 10 de Outubro de 2010)

Quem tenha lido a peça de abertura do Local/Lisboa na edição do passado dia 30 de Setembro ficou a saber que se arrasta há anos, no concelho do Cartaxo, uma controvérsia em torno da legalidade da construção e funcionamento de um complexo comercial conhecido por Casa das Peles. É um caso semelhante a muitos outros em que está em causa o respeito pelo ordenamento do território. O empreendimento não terá cumprido as normas urbanísticas em vigor, arriscando-se a vir a ser encerrado — um resultado que o presidente da autarquia quer evitar, por se tratar de uma das principais empresas da zona, que assegura o emprego a muita gente. E por isso está em curso, como é frequente nestes casos, um processo de alteração do plano director municipal.



A Inspecção-Geral da Administração Local (IGAL), com competências de fiscalização nesta área e uma perspectiva diferente da do autarca, solicitou à administração municipal que repusesse a legalidade, procedendo eventualmente ao encerramento do complexo, num despacho homologado há cerca de dois meses pelo secretário de Estado da Administração Local, José Junqueiro. Em resposta, a Câmara do Cartaxo decidiu não fechar a Casa das Peles e recorrer à intervenção do ministro da Presidência, Silva Pereira.

Foi este último desenvolvimento que o PÚBLICO noticiou a 30/9, num texto assinado por Marisa Soares e Jorge Talixa, que explica o caso com algum detalhe e de forma no geral equilibrada, mas é encabeçado por um título errado, susceptível de lançar a confusão: “Câmara do Cartaxo não vai respeitar ordem do Governo para encerrar empresa ilegal”. Neste domínio, não há ordens do Governo: a competência é do município, cabendo à administração central uma tutela inspectiva, que poderá conduzir ao recurso à justiça para, se for o caso, ser imposto à autarquia o cumprimento da lei.

O erro repetia-se no subtítulo e na abertura da peça, apesar de o texto citar mais adiante um esclarecimento do gabinete de José Junqueiro, que deveria ter bastado para que não se falasse, em título, de uma “ordem do Governo”. Foi o que pensou, e com razão, a assessora de imprensa do ministro da Presidência, Ana Margarida Valada, que classifica de “enganador e falso” o título escolhido pelo jornal. A referida assessora fez-me chegar um protesto dirigido a Marisa Soares, acompanhado pelo texto com que a Secretaria de Estado da Administração Local respondera, antes da publicação da peça, às questões colocadas pela jornalista do PÚBLICO. Nele se explica, nomeadamente, que “a decisão de encerrar ou não encerrar o estabelecimento comercial em causa é, nos temos da lei, da exclusiva competência do Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo”, e que “a eventual não reposição da legalidade é da competência do Ministério Público”.

Não recebi uma explicação concreta sobre a causa do erro cometido. Simples incompreensão, efeito perverso da procura de um título com maior impacto, edição menos atenta? O editor do Local/Lisboa, Victor Ferreira, diz concordar com “uma parte substancial da crítica” feita pela assessora governamental. Ele próprio, quando o questionei sobre o assunto, tinha já tomado a iniciativa de promover uma rectificação. De facto, na secção “O PÚBLICO errou”, de 2 de Outubro, podia ler-se que “não fica claro que a proposta de encerramento é da IGAL e não do Governo, tendo este apenas homologado, por despacho, as conclusões da acção inspectiva”. E mais não se dizia.

Considero que se tratou de uma rectificação de utilidade mais que duvidosa, pois passa ao lado do que importava esclarecer. A IGAL depende do Governo, e o membro do Governo que a tutela homologou as suas conclusões neste caso, o que tornaria até aceitável, ainda que menos rigoroso, atribuir ao Executivo o que foi descrito como “proposta de encerramento”. O que está errado no título, no subtítulo e na abertura da peça é a referência a uma “ordem do Governo” para o “encerramento imediato” do complexo, que não existiu nem poderia existir, como deveriam saber os responsáveis pelo acompanhamento jornalístico da administração local. Do ponto de vista da qualidade da informação prestada aos leitores, era esse o ponto que deveria ter sido corrigido.

Consoante muda

“Os otimistas falam em salvar a democracia”. Abria com estas palavras, na última página da edição de 5 de Maio passado, a coluna de opinião de Rui Tavares, que dá pelo nome significativo de “Consoante muda”. No mesmo dia, um leitor de Lamego enviava-me uma mensagem intitulada “Ortografia e senso comum”. Não estranhem os leitores que refira agora uma carta recebida há cinco meses. O seu tema — que suscitou um esclarecimento na altura pedido à direcção do jornal, mas cuja publicação neste espaço fui adiando face a outras prioridades — continuou, em alguma da correspondência que recebo, a ser objecto de dúvidas que valerá a pena esclarecer.

O caso é que a falta da consoante muda na palavra “otimistas” caiu mal ao leitor Pompeu Barros Viseu, que concluiu precipitadamente (ou, como julgo pelo teor da mensagem, fez de conta que concluíra…) que o colunista não teria “tido a suprema fortuna de ter frequentado uma boa escola primária”, pois nesse caso “saberia que ‘óptimo’ se escreve assim mesmo”, e “se, além disso tivesse feito o liceu, saberia que a palavra vem do latim ‘optimus’, superlativo de ‘bonus, bona, bonum'”. Admitindo que os defensores do acordo ortográfico acharão “que escrever ‘ótimo’ é um ‘ato’ ‘correto'”, este leitor de Lamego propunha “um armistício”: “Nós, os que amamos a bela língua de Camões e Bernardim, calamos a boca e continuamos a escrever correctamente”, e “em troca”, o PÚBLICO faria “o favor de enviar o sr. Tavares a lançar a sua prosa nos periódicos de Jacarépaguá, de Inhambane, do Rovuma “.

Inclinados ou não a saborear a escrita que envolve tal proposta de “desterro”, os leitores terão já compreendido que o autor da reclamação desconhecerá (ou fará por desconhecer) que Rui Tavares escreve, por opção própria, de acordo com as normas do novo (e controverso) acordo ortográfico. Como o facto terá escapado a outros leitores, a quem, por exemplo, a queda da consoante muda em certos textos de opinião do jornal continua a causar estranheza, pedi à direcção do PÚBLICO para explicar a sua política nesta matéria.

Respondeu-me o director adjunto Nuno Pacheco: “A política do PÚBLICO face ao Acordo Ortográfico é clara: não será aplicado enquanto tal for possível. Essa posição foi defendida, em tempo oportuno, em editorial. Tal como se apresenta, o Acordo é um acto (não um “ato”) que devia envergonhar os que o assinaram, além de não contribuir para uma pretensa unificação da língua, quimera que jamais se fará à custa do sacrifício de um punhado avulso de consoantes. O acordo é uma mistificação e um embuste, já denunciados de várias formas no espaço público, e assume características meramente políticas e de um oportunismo inqualificável. Dito isto, se no espaço noticioso o jornal mantém como regra não acatar tal acordo enquanto tal for legalmente possível, já no espaço de opinião, que é um espaço livre por excelência, aceitámos que os dois únicos colunistas a solicitar o respeito pelo Acordo o pudessem fazer. Vital Moreira e Rui Tavares, enquanto assim o entenderem, respeitam a nova grafia. Como é óbvio, para quem os ler, mal se nota. Por cada texto afecta umas cinco a dez palavras, no total. No entanto, se os textos que ambos escrevem se destinassem, por exemplo, a ser publicados num jornal brasileiro, teriam que mudar muito mais do que isso para se fazerem entender correctamente. No vocabulário, no uso dos verbos, na construção das frases, etc. Basta pensar nesta mera hipótese para entender até que ponto vai o português ‘unificado’ em que nos querem fazer acreditar…”.

Fica dada a explicação. A política do jornal neste domínio não oferece dúvidas. Foi anunciada na edição de 30 de Dezembro do ano passado. Não sendo claro que possa ou não vir um dia a ser reequacionada (a fórmula usada por Nuno Pacheco, segundo a qual o acordo “não será aplicado enquanto tal for possível”, deixa essa questão em aberto), seria interessante saber se ela é, ou não, do agrado da maioria dos leitores. Entretanto, poderá discutir-se se não seria útil, em atenção ao leitor desprevenido, fazer acompanhar as crónicas de Rui Tavares e Vital Moreira da explicação de que escrevem de acordo com a nova grafia, tal como fazem, em sentido inverso e em relação aos seus colunistas, algumas publicações que adoptaram o normativo do acordo ortográfico.

José Queirós

3 comentários a Um título errado e uma rectificação inútil

  1. Enviado para Correio do Provedor em 15/10/10Sou um leitor assíduo da coluna do Provedor do Leitor e se agora aqui venho a dirimir argumentos é porque estou inteiramente de acordo com as análises que o Provedor José Queiroz tem produzido.De resto, nem é bem ao Provedor que desejo dirigir-me mas a um anónimo «leitor de Lamego», citado na sua crónica do passado 10/10/10, por isso lhe solicito que lhe envie o meu esclarecimento.Diz o Provedor que o «leitor de Lamego propunha “um armistício”: “Nós, os que amamos a bela língua de Camões e Bernardim, calamos a boca e continuamos a escrever correctamente” e, “em troca”, o PÚBLICO faria “o favor de enviar o sr. Tavares a lançar a sua prosa nos periódicos de Jacarépaguá, de Inhambane, do Rovuma”.»Passo por cima do tom acintoso do «leitor de Lamego», mas não posso deixar de lhe dizer que está profundamente errado quanto ao proclamado amor da «bela língua de Camões e Bernardim». Aconselho-o a dar uma saltada à Biblioteca Nacional, onde está patente uma pequena exposição de homenagem póstuma ao filólogo José Vitoriano Pina Martins, para poder observar a obra editada em 1972 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, com introdução, selecção e notas bibliográficas do ilustre académico, com o título “Luís de Camões – Os Lusíadas”, correspondendo ao Catálogo da Exposição Bibliográfica de Camões (1572 – 1972). Vai perceber que o trabalho de pôr “Os Lusíadas” em linguagem ortográfica acessível ao leitor actual, a partir do original, foi um esforço que levou anos ao insigne medievalista. Quanto a Bernardim Ribeiro devia o «leitor de Lamego» saber que a adaptação ortográfica feita no séc. XIX por Teófilo Braga, nome grande das letras portuguesas, ainda hoje é polémica, dada ela poder ter originado interpretações polémicas sobre quem era Bernardim Ribeiro, aquele que «menina e moça levaram de casa de [seus] pais».O «leitor de Lamego» partilha a originalidade da direcção do PÚBLICO quanto à adaptação ortográfica prevista no Acordo que se tornou em arma de arremesso político de retaguarda. Mas deve exigir-se-lhe que se coloque nessa plataforma e só nessa. É deslocado recorrer a argumentos errados para atacar a idoneidade de alguém que optou por aceitar o novo Acordo Ortográfico.Uma última observação – experimente o «leitor de Lamego» escrever na «bela língua [ortográfica] de Camões e Bernardim». Diga ao Provedor, depois, qual a resposta que recebeu dos seus correspondentes.Sinceros cumprimentosAntónio Melo

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  2. Deixo apenas um reparo: não é admissível que um jornal que tanto pretende defender a Língua Portuguesa, um texto assinado pelo director adjunto não tenha sido alvo de uma revisão cuidadosa: ter-se-ia evitado o erro da preposição associada ao ver "ter", no sentido de "obrigação, dever": " …teriam DE mudar muito mais do que isso…", não "… teriam QUE mudar muito mais do que isso…". E, já agora, peço um pouco mais de atenção às concordâncias verbais:" …se se destinassem a SEREM* publicados" e não a "…ser publicados…".Nós, os que somos contra a imbecilidade deste acordo ortográfico, temos de ter cuidados redobrados na defesa da nossa Língua.ANS

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  3. Com a devida vénia (e referências), tomámos a liberdade de transcrever o seu texto "Consoante muda" no site da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico.Parabéns pelo texto e, principalmente, pela firmeza e coerência que o Público demonstra nesta matéria.

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