Dilemas, dogmas e responsabilidade



(Crónica da edição de 19 de Setembro de 2010)

O PÚBLICO agiu de boa-fé no processo de constituição do jornalista José António Cerejo como assistente no processo Freeport, não escondendo das autoridades judiciais o propósito com que requereu tal estatuto. Esta era uma das dúvidas que pairavam na polémica gerada pela iniciativa do jornal, e por isso peço a compreensão dos leitores para voltar uma vez mais a este tema, que suscitou há dias uma tomada de posição do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

Eu próprio, nesta coluna, tinha insistido em que a direcção do PÚBLICO desse conhecimento aos leitores dos termos em que esse estatuto fora requerido ao juiz de instrução, considerando que se tratava de um dever de transparência para com os leitores e de um elemento necessário para avaliar a pertinência das suspeitas levantadas sobre o eventual uso de um disfarce, artifício em regra condenado pela deontologia profissional.

José António Cerejo enviou-me agora, com o acordo da direcção editorial, alguns documentos, que aliás constam do processo, visando desfazer as dúvidas que subsistiam. Da sua consulta, ressaltam dois factos. Primeiro: na procuração obrigatoriamente anexa ao requerimento da sua constituição como assistente, em Fevereiro de 2009, que foi aceite pelo juiz, Cerejo identifica-se como jornalista. Segundo, e mais esclarecedor, num documento posterior, em que explica as razões de não querer partilhar o necessário patrocínio jurídico com outros assistentes no processo, o jornalista comunica ao juiz, através do seu advogado, que “tem interesses incompatíveis com os dos restantes assistentes, dada a sua qualidade de jornalista”, e que, “na verdade, o que o move (…) é a noção do interesse público subjacente ao direito e dever de informar, com o natural respeito pelo regime legal do segredo de justiça, não tendo, por isso mesmo, até à data, solicitado a consulta dos autos”. Foi essa argumentação que o juiz acolheu, com pleno conhecimento de causa, como decorre de um despacho proferido nos últimos dias do ano passado.

A opção de Cerejo e do PÚBLICO foi contestada, nas últimas semanas, nos planos jurídico, deontológico e ético. Alegações iniciais de que seria ilegal chocavam com a sua validação pelos agentes da Justiça, o que por sua vez retirava sentido à acusação de que fora violada a norma deontológica segundo a qual “o jornalista deve utilizar meios legais para obter informações”. Note-se que o mesmo artigo do Código Deontológico proíbe o jornalista de “abusar da boa fé de quem quer que seja” e dita como regra a sua identificação. Também nestes pontos, as dúvidas que pudessem existir estão agora esclarecidas.

Num plano ético mais geral, Cerejo e o PÚBLICO foram criticados por estarem alegadamente a servir-se de um expediente contrário ao espírito da lei. Argumentou-se que, ao criar a figura de assistente, aberta a qualquer cidadão em processos como os de corrupção ou tráfico de influências, o legislador não teria previsto a sua utilização por jornalistas apenas interessados em informar sobre os processos. No que aqui respeita ao universo da interpretação jurídica, constato que as opiniões se dividem, aconselhando futura clarificação legal, desejavelmente favorável ao direito à informação.

Mas, admitindo como legítima a interpretação de que se terão “torneado”, sem violar a lei, as eventuais intenções do legislador, e reconhecendo — como já o fiz — que se recorreu a um expediente controverso para obter informação, o dilema que subsiste no plano da ética jornalística é o de uma ponderação de valores entre o recurso a esse expediente e o interesse público e oportunidade da informação em causa. Não creio que haja dogmas para resolver dilemas como este, que devem ser enfrentados caso a caso, responsavelmente, por quem dirige um jornal, cabendo aos seus leitores julgar do acerto da decisão.

No que me toca, já tornei clara a opinião (que os novos dados reforçam) de que neste caso deveriam prevalecer o direito e o dever de informar, pelo evidente interesse público do tema, em que estava em causa a suspeita publicamente disseminada do possível envolvimento do primeiro-ministro num caso criminal. Insisti na importância de esse dever ser exercido com redobrado rigor profissional, o que seria sempre facilitado pela maior facilidade no acesso ao processo, uma vez libertado do segredo de justiça. Mantenho uma crítica relevante à direcção do PÚBLICO: tudo isto deveria ter sido explicado aos leitores, com clareza e em tempo oportuno. Por razões de transparência, mas também de responsabilidade.

Numa detalhada exposição que me enviou e será publicada no meu blogue, o leitor e advogado José Augusto Rocha (que acusa Cerejo de “tentar incriminar um inocente, José Sócrates”) considera que o dilema que referi deveria ter sido resolvido ao contrário, “sob pena da invocação da liberdade de imprensa acabar por neutralizar o bem jurídico da honra e da inocência” (do primeiro-ministro, presumo). Não creio que a divulgação do despacho final de acusação do caso Freeport possa ser assim interpretada, antes pelo contrário — e é da divulgação que aqui se trata, independentemente do que cada cidadão possa pensar sobre elementos concretos do despacho. Mas ainda que assim não fosse, o conhecimento da acusação, tão cedo quanto possível e nos termos da lei, seria sempre de relevante interesse público, devendo neste caso concreto ser visto como um direito, que me cumpre defender, dos leitores deste jornal. No seu texto, José Augusto Rocha critica também longamente as peças em que o PÚBLICO foi dando conta do conteúdo da acusação no caso Freeport. Em crónica anterior, já aceitei como válidos alguns reparos feitos a uma parte dessas peças, que poderei analisar com maior detalhe, sem que isso anule o que já escrevi acerca da utilidade global desse trabalho jornalístico.

Aqui chegado, já os leitores estarão cientes de que discordo do teor do comunicado divulgado na passada quarta-feira pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDSJ), em que este órgão sindical, invocando “princípios éticos e deontológicos”, critica, embora sem referência ao caso concreto que obviamente o determinou, o recurso por jornalistas ao estatuto de assistente em processos judiciais. O CDSJ fala de uma “deriva profissional” que consistiria em o jornalista se associar ao trabalho do Ministério Público como “parte processual” — o que não sucedeu no caso, e é uma ideia contrariada por declarações públicas de Cerejo e pelos termos com que a actual direcção do PÚBLICO condicionou o apoio à sua iniciativa.

O CDSJ invoca a despropósito a norma deontológica segundo a qual “o jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional” e “não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse”. Ora a José António Cerejo não foi proposto, nem ele aceitou, nada que mereça tal qualificação. O jornalista tornou claro que não interviria no processo em caso algum, e afirma que o seu único interesse “são as notícias que lá estão”. Como é óbvio, esse interesse profissional distingue-se de qualquer tipo de interesse particular que o devesse impedir de escrever sobre o tema.

Considera ainda o CDSJ que a situação configura “uma desigualdade de acesso às fontes entre jornalistas”. Para além do que decorre dos tantas vezes violados deveres da administração pública na matéria, essa é uma preocupação corporativa que nada dirá aos leitores, devendo até tal desigualdade ser interpretada, geralmente, como resultado do maior ou menor mérito profissional de jornalistas e jornais. Na opinião do próprio José António Cerejo, em comentário que me fez chegar, “o que cria ‘desigualdade no acesso às fontes’ é o tráfico de influências que toda a gente conhece”, e que tem por consequência que “a informação que devia ser pública (…) seja mercadejada a torto e a direito por jornalistas, editores e directores com magistrados, polícias, políticos, empresários e por aí adiante”.

Cerejo contesta também a ideia, sustentada pelo CDSJ, de que a posição de assistente “afecta, sobretudo, o estatuto de independência do jornalista”. E contrapõe: “O que afecta o ‘estatuto de independência’ não é o recurso a uma figura regulada por lei, mas as dependências que são muitas vezes criadas pela angariação de fontes privilegiadas que cobram à sua maneira as notícias que dão em primeira mão”. Negando que o estatuto de assistente o obrigue “a colaborar seja com quem for”, o jornalista do PÚBLICO conclui: “A deriva do jornalismo é a sua cada vez maior sujeição a esquemas de distribuição da informação que têm tudo menos transparência e primam”, esses sim, “pela permanente violação da lei”.

A polémica pública em torno deste caso tem sido claramente contaminada por crispações políticas, de ambos os lados da discussão. O que é natural, mas deve ser ignorado no plano da discussão sobre as práticas jornalísticas. E quanto a essas, como provedor dos leitores deste jornal, ponderando os seus direitos e todos os valores envolvidos, penso que os argumentos de José António Cerejo são certamente preferíveis aos do conselho sindical, que gostaria de ver valorizar mais o papel dos jornalistas no escrutínio dos poderes públicos. De todos os poderes públicos.

José Queirós

Documentação complementar





Testemunho de um jornalista



Do jornalista Nelson Morais, que acompanha profissionalmente assuntos judiciais, recebi a seguinte carta acerca da polémica do “jornalista-assistente”:



“Escrevo-lhe a propósito da sua crónica de domingo passado (…), com a qual globalmente concordo, e para chamar a atenção para um aspecto que, parece-me, reforça o seu (e o meu) entendimento sobre a legitimidade do colega José António Cerejo para se constituir assistente do Freeport (…).

A 27 de Julho, dia em que o DCIAP anunciou o resultado do inquérito Freeport, requeri, enquanto jornalista, uma cópia do despacho de acusação e o acesso aos autos. Três dias depois, a 30 de Julho, recebi uma reposta do DCIAP, que dizia assim: ‘Considerando o período de férias judiciais e os consequentes e necessários turnos de trabalho, a secretaria do DCIAP está ao serviço exclusivo dos actos processuais urgentes. Não há condições humanas para se garantir a consulta do processo a todos quantos os Sr’s jornalistas, arguidos, assistentes e advogados que solicitarem a consulta do processo do Freeport’.

Não sei se outros jornalistas-requerentes-não-assistentes já tiveram acesso aos autos, embora não me pareça que tal tenha acontecido, atendendo ao que (não) tenho visto publicado. E as dificuldades colocadas pelo DCIAP, no acesso a um dos processos-crime mais importantes dos últimos anos, não surpreenderão ninguém que acompanhe ‘assuntos de Justiça’. O sistema não é nem quer ser transparente – sobretudo, em processos de criminalidade económica.

De resto, essa dificuldade da Justiça em prestar contas e ser transparente é evidenciada pelo próprio procurador-geral da República, no caso particular do Freeport. No livro ‘Justiça à Portuguesa’ (de Fernando Contumélias e Mário Contumélias), publicado em Setembro de 2009, Pinto Monteiro afirmava, sobre o Freeport: ‘No dia em que os investigadores me disserem que não há inconveniente, eu mando imediatamente torná-lo público; é a forma de acabar com os julgamentos dos jornais. O processo será público, completamente público, da primeira página à última página’.

O inconveniente a que Pinto Monteiro aludiu, interpretou quem o leu, seria a perturbação do inquérito pela divulgação de informação sob segredo de justiça. Visto que a investigação já foi encerrada, há quase dois meses, somos obrigados a desconfiar de que haverá mais algum inconveniente. No dia 28 de Julho, dirigi um e-mail ao PGR, perguntando-lhe, para publicação de um trabalho sobre o assunto, se ele mantinha o sentido das declarações supracitadas e, na afirmativa, quando seria o processo Freeport disponibilizado ao público através da Internet. Pinto Monteiro respondeu no mesmo dia, (só) assim: ‘O processo será disponibilizado, tal como afirmei, devendo a sua consulta ser requerida à Senhora Directora do DCIAP’. A consulta tinha sido requerida no dia anterior, com o resultado de que já dei conta, e a divulgação do processo na Internet deve aguardar melhores dias.

Por isso, fez muito bem o Cerejo em constituir-se assistente do processo, e fez muito bem o José Queirós em apoiá-lo. Era o que faltava, perante um sistema judicial opaco e truculento, um jornalista não poder procurar caminhos alternativos para aceder à informação, ainda para mais sem infringir a lei! E pouco me importa, perante a dimensão que o lodaçal atingiu, quem vem gritar ‘ai Jesus, que foi desvirtuado o princípio que preside à figura do assistente’.

De resto, esse princípio do assistente-coloborador-do-MP parece-me curto demais para as necessidades do país. Com um Ministério Público como o nosso, tantas vezes incompetente, de coragem e independência duvidosas, o que é realmente necessário é garantir, sem peias, que o assistente possa assumir um papel fiscalizador sobre a acção desse mesmo Ministério Público (e eu acho que, apesar de tudo, a lei permite que assuma esse papel, não obstante as machadadas que se têm visto no processo Portucale…). Mas isso, enfim, é outra conversa, que não vale a pena aqui alongar.”

21 de Setembro de 2010

Nelson Morais

Comunicado do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas



O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas divulgou no dia 15 de Setembro de 2010 o seguinte comunicado sobre o estatuto de assistente em processos judiciais obtido por jornalistas com fins profissionais:



“Há jornalistas que recorrem ao estatuto de assistente em processos judiciais com o propósito de aceder a fontes de informação que lhes são negadas. Há diversos casos de jornalistas que se constituíram assistentes em processos, uns assumidos publicamente e outros não.

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, cujo presidente já se pronunciou sobre o caso em declarações prestadas ao «Diário de Notícias» em 2009, considera que este recurso questiona o exercício profissional e os princípios éticos e deontológicos.

Cria, desde logo, uma desigualdade de acesso às fontes entre jornalistas. Mas afecta, sobretudo, o estatuto de independência do jornalista.

O Código Deontológico regula os princípios e práticas do jornalismo. Além dos valores aí estabelecidos, que rege a conduta dos jornalistas, o exercício profissional deve pautar-se pela ética da responsabilidade.

O Conselho Deontológico já em 2007 tinha reprovado à assumpção por parte de jornalistas de papéis que não fossem os seus. Tratava-se então da participação de jornalistas na Assembleia Geral de accionistas do BCP caucionada por procurações de uma associação de investidores ou por acções detidas por empresas proprietárias de órgãos de comunicação social.

Nesse caso, o jornalista vestia o fato de accionista do banco, comprometendo a sua independência e arriscando-se a ser instrumentalizado pelas fontes que lhe facultavam acesso.

Hoje, a deriva profissional consiste em associar-se ao trabalho do Ministério Público como parte processual.

O ponto 10 do Código Deontológico esclarece a conduta a assumir pelo jornalista para preservar a sua independência e integridade profissional. Como estipula que o jornalista não deve noticiar assuntos em que tenha interesse.

A investigação jornalística deve fundar-se na metodologia da profissão e a restrição de acesso às fontes não pode servir de justificação para a descaracterizar.

A acção colectiva dos jornalistas só se concretiza caso a sua generalidade assuma por inteiro os deveres da profissão bem como exija o respeito pelos direitos que lhes estão consagrados.

As restrições de acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de informar e ser informado justificam o seu combate e denúncia. Justificam o recurso a instâncias que têm o dever de assegurar os direitos constitucionais e o cumprimento da lei.”

Lisboa, 15 de Setembro de 2010

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas

Comentário de José António Cerejo ao comunicado do Conselho Deontológico

A posição assumida por este órgão do sindicato a cujos corpos sociais também pertenço peca fundamentalmente por desconhecimento daquilo que é, hoje em dia, a realidade da profissão, designadamente na área da informação sobre assuntos de justiça e em particular de criminalidade económica. E como não conhece nem se deu ao trabalho de ouvir quem conhece, nomeadamente aqueles que condena, o conselho em causa fez asneira grossa. Não vou por isso perder tempo a contestar tal posição em detalhe, mas sempre direi que não tem qualquer sentido, para ser simpático, escrever que o facto de um jornalista se constituir assistente num processo “cria, desde logo, uma desigualdade de acesso às fontes entre jornalistas” e afecta o seu “estatuto de independência”

O que “cria desigualdade no acesso às fontes” é o tráfico de influências que toda a gente conhece, provavelmente à excepção do CD, e que faz com que a informação que devia ser pública e como tal difundida em simultâneo para todos os jornalistas (e órgãos de informação) seja mercadejada a torto e a direito por jornalistas, editores e directores com magistrados, polícias, políticos, empresários e por aí adiante. O jornalista/assistente o que faz, no caso concreto do Freeport, é recorrer a um meio que está à disposição de toda a gente, sem enganar ninguém, sem oferecer nem receber seja o que for em troca, e conseguir que há um mês e meio se saiba um sem número de coisas importantes sobre esse processo que, de outro modo, continuariam escondidas em milhares de páginas que deixaram de estar em segredo de justiça no dia 27 de Julho.

(…) O que afecta o “estatuto de independência” não é o recurso a uma figura regulada por lei, mas as dependências que são muitas vezes criadas pela angariação de fontes privilegiadas que cobram à sua maneira as notícias que dão em primeira mão. Dizer que o jornalista que é assistente num processo tem “interesse” nele e por isso não o pode noticiar é uma burrice pura e simples. O meu único interesse no processo Freeport são as notícias que lá estão. O facto de a lei dizer que o assistente colabora com o Ministério Público é um formalismo que não faz com que eu tenha “interesse” no processo, não me condiciona em coisa alguma e não me obriga a colaborar seja com quem for, nem a fazer seja o que for. O que impede é que os burocratas, os ignorantes e os mercadores prolonguem indefinidamente e a seu bel-prazer um segredo que não existe e façam com que apenas seja notícia aquilo que a alguns interessa.

A deriva do jornalismo é a sua cada vez maior sujeição a esquemas de distribuição da informação que têm tudo menos transparência e primam pala permanente violação da lei.

18 de Setembro de 2010

José António Cerejo

Carta do leitor José Augusto Rocha

O advogado José Augusto Rocha, autor de um artigo condenando o estatuto de assistente obtido por José António Cerejo no caso Freeport (PÚBLICO, 29 de Agosto), enviou-me a seguinte exposição, em que discorda dos pontos de vista defendidos nas minhas crónicas sobre este tema (de 15 de Agosto e 12 de Setembro), desenvolve os seus argumentos contra a figura do “jornalista-assistente” e critica o trabalho jornalístico de J. A. Cerejo sobre o despacho de acusação do referido caso Freeport. Enviou-me ainda um segundo texto (Adenda) em que se regozija com a tomada de posição do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, contrário à constituição de jornalistas como assistentes em processos judiciais.

A constituição espúria e fictícia de assistente do jornalista José António Cerejo no inquérito ao Freeport e os artigos por ele escritos no “Público”, na sequência dessa iniciativa, têm dado lugar a uma polémica de grave discordância quanto às consequências emergentes dessa posição processual no âmbito do direito e dever de informar.

A questão subiu à alçada da vossa competência e tratamento, na edição do “Público” de 15 de Agosto, onde para além de considerações judiciosas e pertinentes, se conclui por um juízo final global que merece o nosso incontornável dissenso. Na edição do “Público”, de 12 de Setembro, o assunto é retomado e nele refere-se o meu artigo de 29/8, seguido de resposta de José António Cerejo (JAC) e, no dia posterior, de um texto de José Manuel Fernandes (JMF), de socorro àquele. Aliás, a polémica já tem outra continuação, com a minha resposta “As veredas do jornalismo JAC X JMF ou uma fórmula inquietante do exercício de liberdade de imprensa”, estranhamente ainda não publicado, até à data em que escrevo.

Escrevo-lhe, hoje, para que possa ponderar o mérito das considerações objectivas divergentes que seguem, sempre do ponto de vista da competência e jurisdição que lhe é própria, quanto a dois aspectos distintos. Por um lado, para assinalar a pertinência e aguda sensibilidade de algumas considerações feitas na última peça, mas também a minha discordância e alguma perplexidade quanto a algumas das conclusões a que chegou nas suas duas intervenções; por outro lado, a paradigmática violação de elementares regras ético-deontológicas na peça que JAC fez publicar na edição do “Público” de 10 de Agosto, sob o título “Autor do DVD onde se fala de corrupção no caso Freeport não foi ouvido na investigação”.

Desde logo, assume -se muito simplista e redutora a afirmação de que “ (…) no conflito de valores aqui em causa, devem prevalecer os direitos de informar e ser informado…” conjugada com a de “(…) que foi o acesso do jornalista do “Público” aos autos que permitiu conhecer, logo que possível, elementos relevantes que lá se encontravam.” É que, nesta matéria, vigora o princípio fundamental da necessidade da concordância prática entre bens jurídicos potencialmente conflituantes, no caso, os da honra e da inocência/ versus o da liberdade de informar, onde são visíveis as exigências da sua metódica interpretação e concretização constitucional, ou seja, uma interpretação de acordo com o efeito recíproco de mútuo condicionamento entre normas protectoras de diferentes bens jurídicos, sob pena da invocação da liberdade de informar acabar por neutralizar o bem jurídico da honra e da inocência, no seu núcleo essencial, objectivo sistematicamente procurado por JAC, nos seus artigos.

Ao invés do também afirmado, ao constituir-se assistente, JAC violou o preceito ético- deontológico segundo o qual “o jornalista deve utilizar meios legais para obter informações”. Na verdade, ao constituir-se “assistente atípico”, infringiu, de forma incontornável, este princípio, já que é hoje entendimento comum que a obtenção e publicação de informação por meios ilícitos, não pode ser protegida pela lei. Aliás, resulta improvada e não verosímil a alegação justificativa do comportamento de JAC no sentido de se arrogar discriminado na recolha de informação judicial e, “in extremis”, essa circunstância só poderia assumir relevo depois de se saber se o jornalista esgotou todas as vias possíveis de acesso legal, antes de recorrer ao tortuoso expediente da conduta assumida. Tanto mais que a lei dispõe e garante, na sua previsão normativa e uma vez verificados os adequados pressupostos, esse acesso transparente e igual a todos os jornalistas.

Aliás, o processo de contradições da constituição de assistente, tão bem salientado nas duas peças do Provedor, ilustra as indisfarçáveis tensões políticas no interior do poder do “Público” e as insanáveis contradições práticas de justificação, pelas suas duas Direcções sucedidas no tempo, demonstram a ambiguidade e a dificuldade da construção de uma doutrina minimamente aceitável de constituição de assistente em termos de liberdade abusiva de acesso a informação no interior do inquérito e na posição de auxiliar subordinado ao Ministério Público.

E se isso acontece com a Direcção do jornal, no referenciado artigo de JMF encontram-se indicações ambíguas e hesitantes sobre o papel de jornalista assistente, de que a sua inefável formulação de “assistente no fio da navalha” é concretização eloquente. JMF é no interior do poder do Público um personagem de ambíguo doutrinador de sextas-feiras de trevas, sem prenúncio de madrugadas de aleluias.

É certo que o senhor Provedor, num explicável jogo simbólico de pesos e contrapesos, onde cruza e entrecruza argumentos, acto contínuo, acentua “(…) o dever de o fazer [informar] com rigor.” Só que a actuação de JAC foi tudo menos rigorosa, como deflui, destes títulos exemplificativos: 1 “Cândida de Almeida travou equipa mista liderada pela PJ para investigar o Freeport”;2 “Procuradores quiseram ouvir Sócrates mas não tiveram tempo”;3 “afinal José Sócrates não pode afirmar «finalmente», como fez anteontem…”;4 “Autor do DVD onde se fala de corrupção no caso Freeport não foi ouvido na investigação”.

No primeiro, “travou” é no contexto do título sinónimo de “sabotou”; no segundo, o título refere-se ao já célebre “despacho das 17 perguntas”, onde o tempo chegava e sobrava numa investigação que fosse assumida minimamente competente e diligente, não devendo, assim, o título relevar a circunstância falsa da falta de tempo; no terceiro, ao seu tom assertivo e isento de dúvidas falta o “ quod demonstrandum”…; no quarto, o título refere-se a um almejado e sôfrego desejo do jornalista no sentido da realização dessa audição obviamente ilegal.

Nesta telenovela de artigos, ainda por cima opulenta com o excesso de manchetes e chamadas de primeira página, intencionalmente virada para a incriminação do ilibado de qualquer suspeita José Sócrates, cabe perguntar: onde se antolha o rigor de que tanto se fala, a imparcialidade que deve ser timbre da profissão do jornalista, e a exigência de que a dignidade da pessoa humana não se transforme num instrumento conceitual livremente manipulável pelos jornalistas, sob a omnipresente invocação do interesse público da liberdade de informar?

Têm todo o sentido as considerações jurídicas/ deontológicas sobre a constituição de assistente por parte dos jornalistas, já que a efectivação do direito de acesso a documentos está sob reserva da lei, daí que esse acesso não coloca os jornalistas acima da ordem jurídica, nem lhes confere uma indiscriminada disponibilidade sobre os meios e os métodos susceptíveis de serem utilizados. Para além de que é incontornável que a constituição de assistente em processo penal, com a exclusiva intenção de obter documentos da instrução, colide com o princípio de que ela não pode ser sobre – interpretada de forma a ter um efeito irradiante para o âmbito extra – processual.

O conceito moral de pessoa autónoma (liberdade de opção, responsabilidade por actos) constitui o fundamento de qualquer conceito de pessoa portadora de direitos. A existência de direitos exige o reconhecimento moral e jurídico dos indivíduos como pessoas, os direitos públicos subjectivos não podem ser separados dos indivíduos naturais. A posição do indivíduo em relação ao estado é formulada na categoria de estatuto. JAC enquanto pessoa pode ter o estatuto de assistente, mas enquanto e na qualidade de jornalista, não tem nenhum. JAC não existe enquanto jornalista assistente. É, por isso, que o “Público” não desvenda os solicitados termos em que JAC formulou o requerimento de assistente, já que, se o tivesse formulado enquanto jornalista, nunca teria sido deferido pelo juiz.

Neste enquadramento, não faz sentido o Senhor Provedor afirmar “… que tendo a sua [ JAC] condição de assistente sido validada pelo juiz competente, o que afasta a infracção deontológica… colocou-se numa posição de acesso privilegiado e directo à fonte de informação no caso que se propõe reportar, e esse é, por definição, um bom serviço prestado aos leitores do seu jornal.” Esta afirmação é duplamente controversa, senão mesmo, irrealista, pois que, por um lado, o privilégio da informação é, como se viu, ilegítimo na origem, e mesmo que o não fosse, a informação produzida não foi rigorosa e imparcial, antes teve, manifestamente, intuitos justiceiros.

Quanto ao segundo aspecto, objecto do nosso recurso ao Provedor dos leitores, ele tem a ver com a infracção de regras deontológicas elementares do jornalista visado, na citada peça “Autor do DVD onde se fala de corrupção no caso Freeport não foi ouvido na investigação”. Como se sabe, e a própria peça jornalística refere, a gravação clandestina da palavra em suporte magnético ou outro é uma prova proibida por lei, é absolutamente proibida como meio de prova, em homenagem ao princípio da confidencialidade da palavra ou da confiança e intimidade na exclusividade da palavra não proferida em público. Não obstante o rigor desta proibição, que fere de inexistente tal prova, JAC ousou colocar no texto um subtítulo “prova proibida?” e fazer esta afirmação inaudita: (…) “um juiz que acompanhou de perto algumas fases da investigação e um procurador – geral adjunto, que pediram para não serem identificados, manifestaram ao “Público” a opinião de que essa questão podia ter sido ultrapassada a bem da investigação. Nada obrigava a questionar Perkins e Cabal sobre o DVD – « que é indiscutivelmente uma prova proibida» e não é preciso ser um ás da investigação criminal para saber como o fazer, disse, em síntese, um deles.”

Como é possível que JAC atribua a dois tão qualificados intervenientes no inquérito – um juiz e um procurador-geral – palavras tão escandalosamente graves, sob a forma de citação anónima? Ao fim e ao cabo, ao que estes personagens se afoitaram foi ensinar como de maneira indirecta, ínvia e em fraude à lei, se poderia introduzir o conteúdo comunicacional do DVD na investigação, ou melhor dito e denunciado pelo Prof. Costa Andrade: “… provas que não podem entrar no processo de forma directa, também não podem entrar de forma indirecta nem enviesada, por mais engenhoso que o expediente se revele”. E que dizer da expressão “(…) não é preciso ser um ás da investigação…” Um “ás”? Os “ases” trunfam em jogo limpo e não no jogo batoteiro consubstanciado pelas fontes de informação anónimas citadas por JAC, principalmente quando no caso se jogam os direitos de personalidade da honra e inocência de um arguido!!!

Com esta afadigada e tão sofrida pretensão, JAC põe sob grave suspeita a sua imparcialidade enquanto jornalista ao utilizar expedientes engenhosos e enviesados de intromissão no inquérito do caso Freeport, para à viva força e contra toda a evidência, mesmo perícias ambientais e outras nele realizadas, que nada concluíram de irregularidades, tentar incriminar um inocente, José Sócrates.

Refira-se, por último, e de forma essencialmente esclarecedora, que o nobre voto do senhor Provedor, no sentido da existência de um regime legal de acesso transparente e objectivo à informação de um processo judicial, por parte dos jornalistas e da comunicação social, já existe, em capítulo próprio, no Código de Processo Penal, e é por isso que ele não prevê a solução tosca e espúria da constituição de assistentes nas suas específicas qualidades profissionais, sejam quais forem, antes e só como pessoas cidadãos. Só o abuso de direito e fraude à lei e ainda um incontido desejo de perseguir um cidadão inocentado e a quem já tinha, sem êxito, movido um processo judicial, pode explicar tão perverso comportamento, onde a distanciação e o dever de cuidado objectivo, de que tão eloquentemente fala o Livro de Estilo do “Público”, foram pura e simplesmente postergados.

Permita-se que numa consideração final assinale quanto é excruciante que se permitam tais métodos justiceiros de raiz tão totalitária e inquisitorial que nada têm que ver com o tão propalado interesse público, e, não obstante, são reivindicados como de boa prática jornalística e se abra, em consequência, espaço a tão graves violações dos direitos de personalidade, valores basilares e irrenunciáveis da sociedade democrática do Estado de Direito.

15 de Setembro de 2010

José Augusto Rocha (advogado)

Adenda ao texto anterior



O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas acaba de emitir juízo desvalioso sobre a constituição de assistentes jornalistas, facto que, penso, vai ser objecto da sua sempre aguardada abordagem, na coluna do “Público.” Regozijo-me com a posição ora assumida institucionalmente e que, creio , está na linha das injunções deontológicas do Livro de Estilo do “Público”, onde com toda a propriedade se escreve que “…«.A honra, a dignidade e a reputação de pessoas individuais e colectivas devem ser escrupulosamente respeitadas (…) Todos os temas que envolvam aspectos desta natureza reclamam previamente uma investigação própria muito cuidada, prudente e imparcial. Está em causa, no mínimo, o direito à imagem de pessoas individuais e colectivas. (…) A boa-fé, a lisura e a transparência dos processos utilizados pelo jornalista devem ser claros e indiscutíveis (…)»]

16 de Setembro de 2010

José Augusto Rocha



Nova carta do leitor José Augusto Rocha

Do advogado José Augusto Rocha, autor dos textos acima publicados, recebi no dia 21 de Setembro mais uma carta, em que analisa criticamente o conteúdo e conclusões da minha crónica “Dilemas, dogmas e responsabilidade” (PÚBLICO, 19 de Setembro), sobre o caso do “jornalista-assistente”. Tal como o autor da carta, não vejo vantagem em prosseguir a polémica, “para evitar a circularidade da argumentação produzida e por pensar que tudo está dito”. Juntarei apenas, no final, algumas observações respeitantes a interpelações directas que me faz neste último texto, que a seguir se transcreve:



“Continua intensa a polémica sobre a constituição de assistente de JAC, no inquérito Freeport. A sua última abordagem conheceu o título “Dilemas, dogmas e responsabilidade”e, em minha modesta opinião, ela só veio reforçar a minha perspectiva sobre a questão. Absolva-me de minha impertinência em de novo vir junto de si, mas as exigências de rigor e probidade intelectual a tanto obrigam.

As informações que presta sobre a constituição de assistente por JAC no inquérito do caso Freeport assumem uma maior gravidade do que aquela que antes era pressuposta e reforçam a censurabilidade do seu comportamento.

Há em toda a argumentação dos defensores da constituição de assistente de JAC uma petição de princípio que consiste em supor que a actividade informativa deste jornalista na divulgação do despacho judicial, que nem sequer constituiu arguido José Sócrates, se reivindica do interesse público. Tenta-se provar esta conclusão com base em premissas que já pressupõem esse interesse como verdadeiro ou verificado. O que é totalmente falso, como se demonstra pelo teor dos artigos publicados e que objectivamente refutei. Lamento que o senhor Provedor não tenha levado em linha de conta a denúncia crítica que deles fiz no artigo que lhe enviei, merecendo-lhe uma simples referência e a possibilidade – benfazeja – de isso vir a acontece, o que me torna expectante quanto a nova intervenção. Como disse e repito, a divulgação do despacho do caso Freeport, nos concretos termos em que foi tratado por JAC – e só disso se trata – revela uma intenção justiceira e o propósito de uma agenda política que, além do mais, fere o “dever de verdade” e a “obrigação de cuidado” que constituem o princípio fundamental de que entre os cidadãos e os meios de comunicação social em geral, dado o seu relevo na estruturação da esfera pública da discussão, deve existir uma relação de verdade e confiança.

Salvo melhor opinião, existe um grave equívoco na análise absolutória e complacente que fez das informações prestadas por JAC. Desde logo, o facto de relevar que na procuração consta a profissão de jornalista, isso é um requisito e formalismo genérico imperativo em todas as procurações, que não exclusivo dos jornalistas. JAC pode ter muitos defeitos, mas não é certamente nenhum pária ou pessoa sem profissão. Por outro lado, ao contrário do que se afirma, fica mais uma vez demonstrado e, se possível reforçado, o carácter fictício e esdrúxulo da controversa constituição de assistente e, mais do que isso, sai reforçada a tese do carácter clandestino e de espionagem processual de JAC, logo, a sua falta de transparência. Senão vejamos em duas linhas.

Deflui do que informa, que JAC, ao constituir-se assistente, não invocou expressamente a sua condição de jornalista, reflectida na fórmula: “ F—-, estado e profissão, na qualidade de jornalista…, vem requerer a sua constituição de assistente….”. O que ele disse, foi antes: “ F——, estado, profissão, jornalista, residente —.” Ou seja, uma coisa é alguém dirigir-se a um tribunal e indicar os seus imperativos elementos de identificação civil, inclusive a profissão, outra coisa é invocar a expressa qualidade em que requer e que é requisito da sua legitimidade. Uma coisa é ser jornalista, outra é requerer na qualidade de jornalista. Se JAC requeresse ao tribunal reivindicando a sua legitimidade na qualidade específica de jornalista, o requerimento teria de ser necessariamente indeferido. Ser jornalista e expressar a necessidade de informar, isso não é requisito de qualquer legitimidade de constituição de assistente.

Serenamente repito: o jornalista pelo facto de ser jornalista, não deixa de ser cidadão. Como cidadão, tem legitimidade para se constituir assistente, nos termos da lei; como jornalista, JAC nunca existiu como assistente e nunca formulou esse pedido e se quer ter acesso às fontes de informação e documentos num processo, a lei faculta isso a todos os jornalistas, em preceito específico do Código de Processo Penal, que não o de assistente, e de obediência imperativa e tratamento igual para todos eles.

Pelo que o senhor Provedor ainda informa, mais tarde, – certamente já questionado – JAC veio a produzir no processo esta delirante afirmação: “ (…) tem interesses incompatíveis com os restantes assistentes, dada a sua qualidade de jornalista” e que “ na verdade, o que o move é a noção de interesse público subjacente ao direito e dever de informar, com o natural respeito pelo regime legal do segredo de justiça, não tendo, por isso mesmo, até à data, solicitado a consulta dos autos.” Pergunta-se: o que dizer de um cidadão que se constitui assistente e que no processo nada promove, porque é jornalista, ficando – presume-se – só à espera da primeira oportunidade para do processo sacar e espionar informações que depois vem no Público” tratar, opinadamente e sem espírito de produzir notícias e informação, de forma descontextualizada? E, ademais, sem observação das regras específicas da sua produção, subvertendo a realidade absolutória de um cidadão e pugnando pele sua pronúncia, obliterando as provas objectivas favoráveis das perícias realizadas, nomeadamente a de natureza ambiental? Ele que tinha, já antes, instaurado um processo judicial contra a mesma pessoa e que veio a perder. E com a agravante de que só neste processo se constituiu assistente, não obstante outros de teor mediático. Não será isto revanche e vindicta? Onde está o dever objectivo de cuidado e o distanciamento? Será isto jornalismo de referência e prossecução do interesse público?

Uma nota final de dupla interpelação. Interpelo o Senhor Provedor a pronunciar-se sobre o bom jornalismo dos artigos produzidos por JAC e criticados e identificados na peça que lhe enviei e que possa esclarecer onde neles se prossegue o interesse público do dever de verdade. Por outro lado, informa na sua abordagem sobre a matéria controvertida, que o juiz do inquérito avalizou, em despacho posterior à constituição de assistente, a posição de JAC. Devendo ser-lhe creditada a proba preocupação de obrigar o “Público” a divulgar as razões da constituição de assistente formuladas por JAC e aceites pelo jornal, referindo-as, agora que as conhece, só abstractamente e de forma imprecisa, entendo que é seu dever imperativo divulgar os termos precisos e textuais desse mesmo despacho – para que fiquemos objectiva e imparcialmente informados em questão tão central.

Por mim, dou por terminada a minha intervenção nesta polémica, para evitar a circulariedade da argumentação produzida e por pensar que tudo está dito. Ainda, por pensar que, na verdade, é dilemática a posição de JAC: não tem saída. Vou retomá-la ao abrigo do direito de resposta que formulei ao “Público”, quanto à específica resposta que dei a José António Cerejo e a José Manuel Fernandes e até hoje não publicada.

Lisboa, 21 de Setembro de 2010

José Augusto Rocha (advogado)


Algumas observações

Alguns trechos da carta acima publicada merecem-me as seguintes observações:

1) “Há em toda a argumentação dos defensores da constituição de assistente de JAC uma petição de princípio que consiste em supor que a actividade informativa deste jornalista na divulgação do despacho judicial, que nem sequer constituiu arguido José Sócrates, se reivindica do interesse público. Tenta-se provar esta conclusão com base em premissas que já pressupõem esse interesse como verdadeiro ou verificado” (J.A. Rocha)

Repito-me, citando o que escrevi em 19/9: É para mim evidente o referido interesse público, por se tratar de dar a conhecer, em primeira mão, e por via do acesso, directo e legal, ao processo (o que confere credibilidade às notícias produzidas e as torna verificáveis), o despacho de acusação num caso “em que estava em causa a suspeita publicamente disseminada do possível envolvimento do primeiro-ministro num caso criminal”.

2) “Sai reforçada a tese do carácter clandestino e de espionagem processual de JAC, logo, a sua falta de transparência” (J.A. Rocha).

Não vejo como. J.A. Cerejo não esteve no processo clandestinamente, nem como espião. A sua admissão como assistente foi validada pelo juiz e este foi informado dos seus objectivos jornalísticos, como se demonstra pelos documentos que citei na minha crónica.

3) “Se JAC requeresse ao tribunal reivindicando a sua legitimidade na qualidade específica de jornalista, o requerimento teria de ser necessariamente indeferido”. (…) “Mais tarde – certamente já questionado – JAC veio a produzir no processo esta delirante afirmação: ‘ (…) tem interesses incompatíveis com os restantes assistentes, dada a sua qualidade de jornalista’ e ‘na verdade, o que o move é a noção de interesse público subjacente ao direito e dever de informar’ (…)Pergunta-se: o que dizer de um cidadão que se constitui assistente e que no processo nada promove, porque é jornalista, ficando – presume-se – só à espera da primeira oportunidade para do processo sacar e espionar informações (…)?” (J.A. Rocha)

Não só o requerimento inicial, em que J.A.Cerejo revela a sua condição de jornalista — e a identificação da profissão é de facto “um requisito e formalismo genérico imperativo em todas as procurações” —, foi deferido sem qualquer questionamento por parte da autoridade judicial, como J.A. Cerejo comunicou depois ao tribunal ter por única motivação para ser assistente no processo “a noção de interesse público subjacente ao direito e dever de informar”, isto é, o objectivo (e só esse) de utilizar essa posição, profissionalmente, como jornalista. Se seguisse o entendimento de J.A. Rocha, o juiz poderia ter retirado a J.A. Cerejo a condição de assistente. Não o fez, o que significa que revalidou esse estatuto com pleno conhecimento de causa. Acresce que J.A. Cerejo não deu essa informação ao tribunal por ter sido “certamente já questionado”, mas porque, como expliquei na minha crónica, quis fazer valer o direito a um patrocínio jurídico próprio, precisamente por nada ter em comum com outros assistentes, e ter por único objectivo aquilo a que J.A. Rocha chama “sacar e espionar informações” e eu chamo “obter, por via legal e segura, informação de natureza pública e de interesse público”. A argumentação do jornalista foi acolhida pelo juiz, que escreveu nomeadamente: “Atentei nos motivos invocados pelo assistente José António Martins Cerejo, admitindo, pacificamente, a eventual existência de interesses incompatíveis com os demais assistentes constituídos nos autos, decorrentes da sua qualidade de jornalista”.

4)Se [JAC] quer ter acesso às fontes de informação e documentos num processo, a lei faculta isso a todos os jornalistas, em preceito específico do Código de Processo Penal, que não o de assistente, e de obediência imperativa e tratamento igual para todos eles.” (J.A.Rocha)

Chamo a atenção de J.A. Rocha para o testemunho do jornalista Nelson Morais, acima publicado. Aquele jornalista, que acompanha profissionalmente assuntos judiciais, requereu a consulta do processo a 27 de Julho, dia em que foi anunciada a conclusão do inquérito no caso Freeport. Mais de dois meses depois, ainda não teve resposta positiva. O que a opinião pública soube em tempo oportuno, soube-o através da iniciativa tomada por J.A.Cerejo.

5)”Interpelo o Senhor Provedor a pronunciar-se sobre o bom jornalismo dos artigos produzidos por JAC e criticados e identificados na peça que lhe enviei e que possa esclarecer onde neles se prossegue o interesse público do dever de verdade”. (JA.Rocha).

Já respondi genericamente a esta questão nas minhas crónicas, sem aceitar misturar esse tema com a questão do estatuto de assistente. Como já disse, poderei voltar a abordá-lo, apesar de o tempo já decorrido tornar menos premente essa análise.

6) “Devendo ser-lhe creditada a proba preocupação de obrigar o ‘Público’ a divulgar as razões da constituição de assistente formuladas por JAC e aceites pelo jornal, referindo-as, agora que as conhece, só abstractamente e de forma imprecisa, entendo que é seu dever imperativo divulgar os termos precisos e textuais desse mesmo despacho – para que fiquemos objectiva e imparcialmente informados em questão tão central”. (J.A.Rocha)

Só posso divulgar o que conheço. E o que conheço é o que referi atrás, no final do ponto 3. São termos precisos e textuais de um despacho proferido em finais de 2009 pelo juiz de instrução criminal responsável por este caso.

José Queirós

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