(Crónica da edição de 13 de Junho de 2010)
“No dia a seguir a uma manifestação em Portugal, em mais um dia em que a BP fracassa uma manobra para tentar estancar um derrame histórico no Golfo do México assassinando fauna e flora como não há memória, em mais um dia em que Portugal se debate com o estrangulamento económico que obriga famílias inteiras a reverem os seus projectos e a recearem o futuro, o jornal PÚBLICO coloca em destaque (ocupando as suas três primeiras folhas) futebol, Cristiano Ronaldo, Mourinho, selecção e afins. Mais, como se não bastasse, inunda a revista PÚBLICA com o mesmo tema, escapando à histeria as crónicas e pouco mais. O que é feito do PÚBLICO? Um jornal que nos habituou a pensar, a sermos exigentes, a cultivar? Tenho saudades desse PÚBLICO, não deste. Eu e mais outras pessoas que comigo comentaram a estranheza de tamanha desproporcional atenção. Será este PÚBLICO representativo do público?”
Foi assim que o leitor Albergaria Pinho olhou para o seu jornal há duas semanas (edição de domingo, 30/5). Não foi o único. Chegam-me, aliás, com alguma frequência manifestações de desagrado de leitores que, neste ou naquele momento, consideram desproporcionado o destaque dado pelo jornal a temas futebolísticos. Correndo o risco de decepcionar esses e outros leitores, devo esclarecer que me faltam convicções seguras na matéria. Uma das poucas que tenho é que o assunto merece ser debatido. Começo por dar a palavra ao director adjunto Miguel Gaspar, que leu esta carta e considera importante discuti-la no plano da “filosofia editorial”.
Depois de revelar que a concentração e grande destaque das matérias ligadas ao futebol na edição de 30/5 suscitaram também um “debate interno no PÚBLICO”, Miguel Gaspar explica que, neste caso, “o tema Mundial de futebol ocupa o essencial da revista e o destaque do jornal por uma razão conjuntural: a entrevista exclusiva de Cristiano Ronaldo ao PÚBLICO chegou ao jornal demasiado tarde para ser integrada na PÚBLICA, devido aos ‘ timings’ de fecho desta”, pelo que “a opção foi fazer o destaque de domingo com a entrevista, coincidindo com o número especial da revista”. “Daí que uma certa sensação de exagero possa ter surgido”, admite, ressalvando, no entanto, que ” o destaque na primeira página teria sido igual em qualquer circunstância”.
A direcção do jornal considerou esta opção editorial “adequada”, “por estarmos em vésperas de um grande acontecimento, o Mundial de Futebol, e por termos várias mais-valias jornalísticas”, nem todas do domínio da informação desportiva, com destaque para o início da “série de reportagens de Alexandra Lucas Coelho e Pedro Cunha (…), que visam mostrar aos leitores o país onde decorrerá o Mundial, no qual vive uma ampla comunidade portuguesa “.
Quanto à data escolhida, decidida “com muitas semanas de antecedência”, e que “coincidiu com um grande acontecimento nacional, a manifestação convocada pela CGTP-IN”, diz o director adjunto: “Compreendemos que poderia haver um conflito potencial com a actualidade nessa capa e admitimos a hipótese de a mudar, em função da dimensão da manifestação. Mas decidimos privilegiar o tema em que tínhamos investido mais editorialmente e demos à manifestação a manchete do jornal e uma foto na capa. Não creio que se possa dizer que desvalorizámos o acontecimento”.
Miguel Gaspar responde a seguir à questão central levantada pelo leitor: “No meu entendimento, o desporto não é uma área secundária do jornalismo. Este jornal privilegia, como sempre o fez e continuará a fazer, outras áreas que não o desporto, como a política, a economia, o internacional ou a sociedade. Mas o desporto não deixa por isso de ter um lugar relevante no equilíbrio de um diário generalista como o PÚBLICO. E concorre, em pé de igualdade, com todos os outros, quanto a destaques de primeira página”.
No que me toca, já expliquei que me escasseiam certezas neste domínio. Mais importante que o espaço concedido à informação desportiva (que está longe de dever confinar-se ao futebol), parece-me ser a falta de espaço de que sofrem, por vezes, outras áreas temáticas. Mais importantes que uma análise quantitativa do peso das matérias ligadas ao futebol, parecem-me ser a competência e a credibilidade dessa informação. Não considero que a boa informação desportiva deva de modo algum ser menorizada em relação a outras áreas, mas penso, por exemplo, que alguns folhetins em que abunda o futebol-espectáculo não se adequam ao perfil deste jornal.
Sei, pelas mensagens que recebo, que uma parte dos leitores gostaria de “menos futebol”, especialmente na primeira página: as queixas sobre a capa são as mais frequentes neste domínio, e admito que o PÚBLICO possa ceder por vezes à tentação comum na imprensa de recorrer às imagens do jogo da bola, sobretudo se não abundam fotografias de qualidade sobre os temas mais fortes da actualidade diária. Mas também sei que as notícias do futebol são das que mais intervenções suscitam aos leitores da edição on line. O que não sei é qual destes segmentos tem mais peso entre os que preferem este jornal. E também ignoro quantos dos que têm por hábito comentar os episódios futebolísticos na edição electrónica são de facto leitores fiéis do PÚBLICO.
O que não me parece muito arriscado presumir é o que posso definir em duas ideias. Primeira: entre os leitores de um jornal de referência haverá muitos que se interessam pelo futebol e querem naturalmente ter acesso à qualidade na informação e análise dos temas desportivos. Segunda: a proporção razoável que esperam que tenha o espaço dedicado ao desporto de massas e às suas emoções é um dos pontos que os distinguem dos consumidores da chamada imprensa popular.
O leitor que hoje citei considera que o destaque dado ao futebol em edições como a de 30 de Maio é excessivo, e vê-o como contraditório num jornal que, refere, “nos habituou a pensar, a sermos exigentes”. Mesmo admitindo que o início de mais um Mundial com a presença da selecção portuguesa possa não ser o momento ideal para um debate sobre a matéria, penso que seria útil saber até que ponto essa posição é representativa dos que escolheram este jornal. A resposta seria certamente do interesse da direcção do PÚBLICO — não porque um projecto editorial como este deva guiar-se por simples expressões numéricas do mercado, mas porque a sua constante afinação não deve dispensar o conhecimento e análise desses dados.
Ao “debate interno” referido por Miguel Gaspar poderia pois juntar-se com vantagem um debate alargado aos leitores. Pela minha parte, fica aqui o convite.
Uma rectificação necessária
Critiquei, na minha última crónica, o facto de o PÚBLICO ter ignorado a realização de uma iniciativa religiosa incomum, que levou dezenas de milhares de pessoas a desfilar em procissão na Baixa do Porto na noite de 31 de Maio passado.
Disse, na ocasião, que não se tratara de uma omissão deliberada, já que me fora garantido, pela direcção do jornal, que o PÚBLICO não tivera conhecimento da iniciativa. Embora estranhando essa falta de informação, aceitei que não tinha havido, neste caso, uma decisão editorial contestável, e sugeri até que a diocese do Porto teria vantagem em rever os seus “métodos de divulgação noticiosa”.
Sucede que a publicação da crónica levou a uma nova e mais aprofundada pesquisa na redacção do Porto, permitindo concluir que o anúncio da iniciativa chegou de facto ao PÚBLICO e à sua agenda de acontecimentos locais. Posteriormente, foi-me assegurado pelo gabinete de comunicação diocesano que a iniciativa fora devidamente divulgada, inclusivamente em conferências de imprensa. Ou seja, a informação anteriormente prestada à direcção do jornal sobre este caso, que me foi transmitida e eu retransmiti aos leitores, não correspondia à verdade dos factos.
Devo assim rectificar duas conclusões constantes dessa crónica, em que defendia (e mantenho) que a manifestação católica em causa deveria ter sido noticiada. Deixa de fazer sentido considerar que “não houve critério editorial contestável, apenas ignorância”, como escrevi no passado domingo. E retiro, com as devidas desculpas, por se ter revelado impertinente, o comentário sobre os “métodos de divulgação noticiosa” da diocese.
José Queirós
Documentação complementar
O último dia em que comprei o PÚBLICO? (carta de um leitor)
“No dia a seguir a uma manifestação em Portugal, em mais um dia em que a BP fracassa uma manobra para tentar estancar um derrame histórico no Golfo do México assassinando fauna e flora como não há memória, em mais um dia em que Portugal se debate com o estrangulamento económico que obriga famílias inteiras a reverem os seus projectos e a recearem o futuro, o jornal PÚBLICO coloca em destaque (ocupando as suas três primeiras folhas) futebol, Cristiano Ronaldo, Mourinho, Selecção e afins. Mais, como se não bastasse, inunda a revista PÚBLICA com o mesmo tema escapando à histeria as crónicas e pouco mais. O que é feito do PÚBLICO? Um jornal que nos habituou a pensar, a sermos exigentes, a cultivar? Tenho saudades desse PÚBLICO, não deste. Eu e mais outras pessoas que comigo comentaram a estranheza de tamanha desproporcional atenção. Será este PÚBLICO representativo do público?
Albergaria Pinho
Esclarecimento da direcção editorial
O destaque dado a Cristinao Ronaldo, à selecção nacional de futebol e ao Mundial da África do Sul suscitou debate interno no PÚBLICO e suscitou um debate externo, de que a carta do leitor é exemplo. Merece sem dúvida uma reflexão. E, em primeiro lugar, uma explicação. O tema Mundial de futebol ocupa o essencial da revista e o destaque do jornal por uma razão conjuntural: a entrevista exclusiva de Cristiano Ronaldo ao PÚBLICO chegou ao jornal demasiado tarde para ser integrada na PÚBLICA, devido aos timings de fecho desta. Portanto, a opção foi fazer o destaque de domingo com a entrevista, coincidindo com o número especial da revista. Daí que uma certa sensação de exagero que possa ter surgido.
De qualquer maneira, essa foi a opção tomada e é sobre o jornal concreto que nos devemos pronunciar. Até porque o destaque na primeira página teria sido igual em qualquer circunstância.
Pareceu-nos adequada, do ponto de vista, editorial, esta opção por estarmos em vésperas de um grande acontecimento, o Mundial de Futebol e por termos várias mais-valias jornalísticas, entre as quais destaco a entrevista exclusiva a Ronaldo e os trabalhos de reportagem feitos por Alexandre Lucas e Pedro Cunha na África do Sul, sobre o pós-apartheid e sobre o pianista português Luís Magalhães e a sua mulher, Nina Schuman, a reportagem de Hugo Daniel Sousa sobre o estágio da selecção e os trabalhos de Hugo Daniel Sousa sobre a Costa do Marfim e de Marco Vaza sobre o Brasil e a Costa do Marfim (os países adversários de Portugal).
Por outras palavras, e à semelhança do que aconteceu com a visita de Bento XVI, escolhemos falar sobre um dos grandes acontecimentos do ano (o mais importante, no plano desportivo) procurando ângulos de profundidade e que transcendessem a simples dimensão desportiva. Por isso iniciámos aqui a série de reportagens de Alexandra Lucas Coelho e Pedro Cunha – que representa um investimento considerável para este jornal – e que visam mostrar aos leitores o país onde decorrerá o Mundial, no qual vive uma ampla comunidade portuguesa, que consideramos como de grande qualidade e abordando matérias de evidente interesse jornalístico.
Existiu, portanto, uma oportunidade jornalística. Podia ter sido outro o fim-de-semana escolhido, mas foi este. A qualidade do trabalho jornalístico que produzimos e a relevância do tema parecem-nos inquestionáveis. Outros temas ficaram ocultados pelo relevo dado ao futebol? Teria acontecido nesse ou noutro fim-de-semana (esta data foi decidida no quadro de um planeamento feito com muitas semanas de antecedência).
A data planeada coincidiu com um grande acontecimento nacional, a manifestação convocada pela CGTP-IN. Compreendemos que poderia haver um conflito potencial com a actualidade nessa capa e admitimos a hipótese de a mudar, em função da dimensão da manifestação. Mas decidimos privilegiar o tema em que tínhamos investido mais editorialmente e demos à manifestação a manchete do jornal e uma foto na capa. Não creio que se possa dizer que desvalorizámos o acontecimento.
Finalmente, e compreendendo o ponto de vista sublinhado pelo leitor, não queria deixar de referir que, no meu entendimento o desporto não é uma área secundária do jornalismo. Este jornal privilegia, como sempre o fez e continuará a fazer, outras áreas que não o desporto, como a política, a economia, o internacional ou a sociedade. Mas o desporto não deixa por isso de ter um lugar relevante no equilíbrio de um diário generalista como o PÚBLICO. E concorre, em pé de igualdade, com todos os outros, quanto a destaques de primeira página. Importa a relevância da notícia e do trabalho editorial. Foi o critério que seguimos.
Miguel Gaspar
Director-adjunto do PÚBLICO