Uma denúncia anónima e um título inaceitável


(Crónica da edição de 25 de Abril de 2010)

“Professora acusada de plágio na tese de doutoramento”. Era este o título de uma notícia da edição de anteontem do PÚBLICO, que deu imediatamente origem a um vivo debate na área de comentários da edição electrónica do jornal. É um caso sobre o qual não irei pronunciar-me hoje de forma detalhada e conclusiva, por não possuir ainda, à hora a que escrevo, os dados e explicações pedidas sobre o processo de produção da notícia. Mas parece-me conveniente referir desde já as questões suscitadas pela reclamação que a este respeito recebi de um leitor.
A notícia em causa dá conta de que uma professora do ensino politécnico foi “acusada” de plágio na tese com que se doutorou recentemente na Universidade do Minho (UM). Nada diz sobre a origem da acusação, mas anuncia que o alegado plágio foi já denunciado às autoridades educativas e judiciais. Em abono da acusação, o autor da peça transcreve duas frases, de facto extremamente parecidas, uma retirada da tese da referida professora, e a outra de uma prova académica apresentada numa universidade brasileira. Não são citadas fontes, académicas ou outras, mas a “acusada” é identificada, tal como o seu pai (ex-docente da UM).
Este facto indignou o leitor Bruno Alves, que argumenta que “o nome da senhora não podia ter sido divulgado já, antes de haver mais bases”, e não sendo certo que não se trate de “mentira” ou “equívoco”. E apoia um comentário entretanto surgido na edição electrónica do jornal, em que se lê que a notícia “trata a autora [da tese] como culpada, com base no simples facto de a tese ter sido enviada para investigação”.
Quem seguiu o assunto na edição electrónica do PÚBLICO ficou a saber mais ao longo do dia de sexta-feira. A meio da manhã, um despacho da agência Lusa informava que a UM iria “investigar a veracidade” de uma “denúncia” de plágio que, ficava a saber-se, lhe chegara através de uma carta anónima. Algumas horas mais tarde, uma segunda notícia do PÚBLICO (que viria a ser retomada ontem na edição em papel) confirmava a existência de uma investigação ao caso, mas já não identificava a responsável pelo trabalho que estará a ser investigado. O leitor que me interpelou faz notar que “a Lusa não identificou a senhora” e protesta contra o facto de o PÚBLICO o ter feito na primeira notícia, “com base numa queixa anónima, sem o dizer”.
Como disse atrás, não vou pronunciar-me neste momento sobre todas as facetas deste caso. Mas parece-me claro, com os dados já disponíveis, que o leitor tem toda a razão, à luz das boas práticas profissionais e das normas éticas deste jornal, ao defender que a substância da notícia publicada na edição de 23/4 não deveria ter autorizado que nela se identificasse a “professora acusada”.

E há casos tão claros que falam por si. Na mesma data, o PÚBLICO reproduzia, no Local/Lisboa, uma notícia da Lusa que começava assim: “O tribunal de Leiria absolveu ontem um homem acusado de homicídio de um ourives após um assalto, na freguesia de Bajouca, concelho de Leiria, por não existirem provas suficientes do seu envolvimento”. Título escolhido pelo PÚBLICO: “Homicida de ourives de Leiria sai em liberdade”.
“Acha bem este título?”, pergunta-me um leitor do Porto, para em seguida comentar que “assim se desconstrói, dia a dia, a imagem de seriedade que tanta falta faz à Justiça”. Respondo que acho o título inadmissível, e acrescento que assim se corrompe, também, a imagem de seriedade de um jornal.

“Branqueamentos” e armas de fogo

Recordar-se-ão os leitores das notícias e reportagens que o PÚBLICO dedicou, no mês passado, à morte de Nuno Rodrigues, um jovem rapper conhecido por Snake, na sequência de disparos efectuados por um agente da PSP, em Lisboa, no quadro de uma perseguição alegadamente resultante da desobediência a uma ordem de paragem da viatura que conduzia.
Algum tempo depois, o leitor Nuno Silva insurgiu-se contra o que lera no jornal, sugerindo que nestas páginas se “branqueara” a personalidade de Nuno Rodrigues. Seguem-se excertos da mensagem que me enviou.
” (…) Um homem adulto, (…) se não me engano até um adulto com antecedentes criminais, (…) optou voluntariamente por não cumprir a lei que nos obriga a todos a parar quando a polícia nos dá indicação para tal. Por causa desta sua opção (…) foi desencadeada uma operação legal de perseguição que, infelizmente, resultou num morto mas que, ‘felizmente’, resultou apenas na morte do culpado inicial de todo o incidente. Leia-se por favor o meu ‘felizmente’ entre aspas, porque não me regozijo com a morte de ninguém. Simplesmente, sei bem que (…) numa perseguição policial (…) podem surgir vítimas colaterais (…). O que eu acho particularmente surpreendente (…) é o que me parece ser um branqueamento quase generalizado que os media nacionais, o PÚBLICO inclusive, fazem nas suas parangonas à personalidade dos mortos. (…) O fugitivo adulto que não cumpriu a lei e, por isso, desencadeou todo o desastre, passa a ser ‘o jovem’, ‘o músico’ ” — escreve este leitor, acrescentando só poder entendê-lo pelo “intuito de ‘lixiviar’ o carácter dos acidentados e as circunstâncias dos acidentes”.
Nuno Silva pergunta-me, a fechar, e antes de censurar uma “linha editorial” que vê como “pouco ou nada imparcial”: “Na sua opinião, há ou não, de forma sistemática, uma tentativa de fazer o branqueamento que referi”?
A resposta só pode ser negativa, e especialmente à luz do que no PÚBLICO se escreveu sobre este caso, ao longo de três dias, em notícias e reportagens desenvolvidas, às quais nada vejo a apontar em matéria de equilíbrio e qualidade.
O facto de o cidadão Nuno Rodrigues ter cadastro criminal (saíra da prisão há oito anos, após cumprir pena por tráfico de droga, não lhe sendo conhecidos posteriores problemas legais) foi referido nas notícias em questão, mas é, no caso, irrelevante. Como se escreveu, a desobediência à ordem de paragem, a ter acontecido, não permite ignorar que as próprias regras da PSP proíbem, e bem, a utilização de armas de fogo em situações como esta. Em Portugal não há pena de morte, e muito menos aplicada pelas polícias, e ainda menos face a ameaças, ao que indicam os factos apurados, inexistentes. Estamos a falar de um homicídio, sobre o qual os tribunais se irão pronunciar. Sem atenderem, certamente, à “personalidade” ou ao “carácter” que o leitor atribui à vítima.
Na edição de 17/3, a jornalista Mariana Oliveira informava, aliás, que o presidente da associação sindical da PSP reagiu ao acontecimento enfatizando as deficiências na formação policial para o uso de armas de fogo (“um polícia não pode aprender com os erros, porque esses erros muitas vezes são fatais”), e uma peça de José Bento Amaro analisava com detalhe esse problema de segurança pública e fornecia elementos que permitiam compreender que, neste caso, não terão sido respeitadas “as normas em vigor e a aplicar no decurso de uma perseguição”.
Convidado a comentar a interpelação do leitor em matéria de linha editorial, o director-adjunto Nuno Pacheco recorda os termos do editorial publicado no dia seguinte: “Um homem morreu em consequência de uma vulgar operação stop e isso não devia, em caso algum, ter acontecido. Tudo o mais, aqui, será acessório: o facto de a vítima ser rapper, negro, morar em Chelas, ter estado preso (…) ou sequer ter desrespeitado a ordem para parar o carro”. Esse editorial concluía: “A instituição PSP deveria assumir também as suas culpas. E corrigir rapidamente o que põe em perigo cidadãos e agentes. Que esta morte, evitável e lamentável, ajude a impor os hábitos e regras que faltam.”
Só posso subscrever. Se alguma coisa se podia temer que fosse “branqueada” no tratamento jornalístico de um caso como este (porque o é, por vezes, na comunicação social), seria precisamente a necessidade de certas formas de actuação policial terem de ser corrigidas. E o PÚBLICO não o fez, nem no plano da informação nem no da sua posição editorial.
José Queirós

Documentação complementar

Carta do leitor Nuno Silva

Há uns dias atrás um homem adulto, totalmente responsável pelos seus actos, se não me engano até um adulto com antecedentes criminais, por razões que só ele saberia em detalhe mas que, é justo pensarmos, não seriam as mais recomendáveis, optou voluntariamente por não cumprir a lei que nos obriga a todos a parar quando a polícia nos dá indicação para tal.
Por causa desta sua opção voluntária por desrespeitar a lei, foi desencadeada uma operação legal de perseguição que, infelizmente, resultou num morto mas que, «felizmente», resultou apenas na morte do culpado inicial de todo o incidente.
(Leia-se por favor o meu «felizmente» entre aspas, porque não regozijo com a morte de ninguém. Simplesmente, sei bem que nem sempre os acidentes são tão cirurgicamente selectivos na escolha das suas vítimas e que, numa perseguição policial provocada por um fugitivo ou noutro tipo de desgraça equivalente, podem surgir vítimas colaterais que, essas sim, morrem muitas vezes sem fazer a mínima ideia do que lhes aconteceu.)
Esta notícia não tem nada de particularmente especial porque, pessoas adultas que optam por não cumprir a lei e acabam por perder algo (até a vida) com essa opção, é rotina diária.
O que eu acho particularmente surpreendente, entediante e inexplicável, e que me leva a deixar-lhe as perguntas finais, é o que me parece ser um branqueamento quase generalizado que os media nacionais (o Público inclusive) fazem nas suas parangonas à personalidade dos mortos. Porque se, por um lado, «o polícia que disparou e matou», continua a ser referido como o «polícia que disparou e matou» já, por outro lado, o fugitivo adulto que não cumpriu a lei e, por isso, desencadeou todo o desastre, passa a ser «o jovem», «o músico» ou qualquer combinação destes, ou de outros adjectivos semelhantes, que só consigo entender se forem especificamente seleccionados com o intuito de «lixiviar» o carácter dos acidentados e as circunstâncias dos acidentes. E, note-se, isto é sistemático e não algo que se refira tão somente a este último caso.
As minhas duas perguntas são:
1. Na sua opinião, há ou não, de forma sistemática, uma tentativa de fazer o branqueamento que referi? Se achar que não, não precisa de avançar mais porque estamos em sintonias diferentes e a minha questão seguinte deixa de fazer sentido.
2. Se sim, para quê que se mantém esta linha editorial pouco ou nada imparcial?

Resposta do director-adjunto Nuno Pacheco

Não houve, da parte do PÚBLICO, nenhuma intenção de “branquear” a situação da vítima. Nos textos publicados a 16 e a 17 de Março refere-se, inclusive, o facto de ele ter desobedecido às ordens policiais e ter estado preso anteriormente (pena que cumpriu até ao fim). Isso não faz dele um criminoso em fuga, mas apenas alguém que desobedeceu a um sinal de paragem da polícia.
Além disso, o polícia não é tratado nos textos apenas como “o polícia que matou”, como segere o leitor. Na página 5 da edição de 17 de março, diz-se textualmente, num texto de José Bento Amaro, logo a seguir ao subtítulo “Um bom polícia”: “O PÚBLICO apurou que o polícia em causa, um elemento das brigadas de intervenção rápida da Esquadra 28, no Calvário, em Lisboa, entrou de baixa depois de ter sido ouvido na secção de homicídios da Polícia Judiciária, onde foi constituído arguido na investigação. Considerado um bom elemento na PSP, o polícia terá disparado três tiros de pistola contra o carro onde seguia a vítima.”
E, mais adiante: “A defesa irá incidir não só na desobediência à ordem de paragem, mas também no facto de o fugitivo ter, alegadamente, parado o carro e desligado as luzes em diversas situações, facto esse que terá motivado suspeitas de uma possível reacção violenta.”
Por fim, no Editorial intitulado “Lições a tirar de uma morte inexplicável”, publicado a 18 de Março, escreveu-se claramente:
“Um homem morreu em consequência de uma vulgar operação stop e isso não devia, em acaso algum, ter acontecido. Tudo o mais, aqui, será acessório: o facto de a vítima ser rapper, negro, morar em Chelas, ter estado preso (quatro anos, por tráfico, que o fizeram mudar de vidar e dedicar-se à música, onde não atingira ainda um estatuto de relevo), ou sequer ter desrespeitado a ordem para parar o carro, por razões que a autópsia, em segredo de justiça, talvez ajude a esclarecer.”
Isto é o essencial. O resto do editorial prossegue na mesma linha:
“Em primeiro lugar, a lei proíbe a utilização de armas de fogo em casos idênticos ao que provocou a morte de Nuno Rodrigues, ou MC Snake. Segundo, houve uma manifesta desproporção de meios na perseguição ao carro infractor: uma carrinha com cinco a seis guardas no encalço de uma viatura conduzida por um só homem, sem alegada suspeita de que poderia ser um indivíduo perigoso. Terceiro, um velho Lancia Y10 com problemas mecânicos devia ser fácil de parar sem recurso a armas de fogo. O que se passou arruinou duas vidas: a de Nuno Rodrigues, morto aos 30 anos; e a do guarda que efectuou os disparos, tido por bom profissional, mas com fraca experiência no uso de armas de fogo. A acrescer a isto está o facto de a instrução dada aos agentes para manejar tais armas ser insuficiente e perigosa, até para os próprios, pois além de não terem mais de 48 horas de treino de tiro num total de 1045 horas de formação global, ainda recebem em serviço armas muito diferentes daquelas com que treinam. O agente, de 27 anos, foi correctamente constituído arguido, mas a instituição PSP deveria assumir também as suas culpas. E corrigir rapidamente o que põe em perigo cidadãos e agentes. Que esta morte, evitável e lamentável, ajude a impor os hábitos e regras que faltam.”

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