(Crónica da edição de 28 de Março de 2010)
A controvérsia sobre o casamento homossexual é um tema sobre o qual o PÚBLICO decidiu adoptar uma posição clara. “O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito que deve ser reconhecido por uma sociedade que defende a igualdade e rejeita a discriminação” — lia-se no editorial de 9 de Novembro de 2009, quando o tema aquecia o debate público, cerca de três meses antes de o Parlamento decidir nesse mesmo sentido, ao aprovar a lei que o Presidente da República entretanto submeteu à análise do Tribunal Constitucional.
Tratando-se de uma posição que não é consensual na nossa sociedade, é natural que esta opção da direcção do jornal tenha desagradado a uma parte dos seus leitores. Outros, pelo contrário, terão apreciado a clareza com que foi manifestada. O que a todos importará é que seja sempre salvaguardada a distinção clara entre opinião e informação, a qual, sendo indispensável em todas as matérias, será naturalmente sujeita, em casos como este, a um escrutínio mais apertado.
Assim terá pensado o leitor Xavier Cortez, que — para “escrever sem que a emoção ganhe à razão” — deixou passar umas semanas sobre a “Manifestação pela família e pelo referendo” antes de criticar a cobertura do acontecimento pelo PÚBLICO. Essa manifestação, recorde-se, reuniu em Lisboa, no passado dia 20 de Fevereiro, milhares de pessoas em protesto contra a lei aprovada no Parlamento e em defesa de um referendo sobre o tema.
Queixa-se este leitor de que, na edição desse dia, o jornal dedicou à manifestação “apenas uma pequena nota em cabeçalho”, preenchendo depois duas páginas do Destaque com “um estudo que pretende provar que a família hoje já não é o que era, que hoje em dia é normal que os filhos nasçam fora do casamento”, seguido de “uma reportagem com uma família em que a mãe se casou pela igreja e dos três filhos dois vivem em união conjugal e o terceiro vive com um parceiro do mesmo sexo”, que pretenderia “provar” ser essa “uma família perfeitamente funcional, para não dizer moderna”. Acrescenta que, na edição seguinte, a reportagem da manifestação referia em título que “um grupo de extrema-direita provocou um grupo de gays” [não é exacto, o verbo “provocar” não foi usado], assim privilegiando em seu entender “um fait-divers completamente estranho à manifestação”.
Sem pôr em causa a legitimidade da opção editorial assumida em Novembro, afirma na mensagem que me enviou (e que poderá ser lida na íntegra no meu blogue): “Não me parece é correcto que essa opção editorial possa originar um desvio ao Livro de Estilo do PÚBLICO que a anterior direcção aprovou (…). Um jornal não pode ser tendencioso”.
Fui reler os textos citados pelo leitor, e concluí que os terá lido com alguma precipitação. Não é verdade que a referência à manifestação se limite a “uma pequena nota em cabeçalho”. A primeira peça do Destaque, assinada pela jornalista Catarina Gomes, anuncia, logo a abrir, a sua realização e objectivos. Explica o que os organizadores designam por “família verdadeira” e dedica-se, depois, à análise dos dados disponíveis sobre a diversidade actual das formas de família, num trabalho oportuno e equilibrado, que permite tirar conclusões como a que se lê no subtítulo: “O casal tradicional com filhos continua a ser o perfil dominante da família portuguesa. Mas muito está a mudar: um terço dos bebés já nasce fora do casamento”.
“O texto a que o leitor se refere teve como pretexto a manifestação”, mas o seu objectivo “foi fazer um balanço do que é a família portuguesa hoje”, esclarece a sua autora. No meu entender essa foi uma boa opção jornalística, contribuindo para o esclarecimento público de um tema que dominava a actualidade, e perfeitamente compatível com as regras editoriais e a personalidade deste jornal. E que foi bem complementada, nessa edição, por uma impressiva reportagem de Alexandra Lucas Coelho e Pedro Cunha, em que se descreve como ligações “tradicionais” e “não tradicionais” podem conviver bem numa mesma família.
Registe-se que Catarina Gomes já tivera oportunidade de referir com algum detalhe os argumentos dos organizadores da manifestação, numa notícia publicada três dias antes na edição on line, mas que só teve (e isso, sim, parece-me contestável), um eco mínimo no jornal do dia seguinte.
Reli também a notícia da edição de 21 de Fevereiro, assinada pela jornalista Maria Lopes. Confirmei que privilegia de facto, no título, o incidente que opôs um grupo de activistas da extrema-direita a um outro de defensores do casamento homossexual, obrigando à intervenção da polícia. Mas considero que essa foi uma opção compreensível (o olhar jornalístico persegue naturalmente, como diz Maria Lopes, a “novidade”, o “inusitado”), e que não pôs em causa um relato equilibrado da manifestação, no qual ficam claras as motivações, quer da maioria que ali gritava “Casamento é homem e mulher!”, quer dos que respondiam “Eu amo quem quiser!”.
Não descortino, por isso, qualquer desvio ao Livro de Estilo do jornal na cobertura deste acontecimento. A manifestação de 20 de Fevereiro foi um acontecimento relevante e o PÚBLICO não se limitou a dar voz aos seus organizadores e a descrevê-la de forma burocrática. Ouviu opiniões diversas, problematizou e aprofundou o tema, descreveu com vivacidade o que se passou na rua. Fez, em suma, o que lhe competia.
Ainda que respeitada, como penso que foi, a diferença entre informação e opinião, poderá a posição assumida em Novembro pelo jornal sobre o casamento homossexual ter influenciado ou estar a influenciar negativamente a abertura das suas páginas à expressão plural das posições divergentes que sobre esta questão se confrontam na sociedade? A esse respeito, tem a palavra o director-adjunto, Nuno Pacheco:
“Esta posição não impediu (…) que nos dias seguintes o PÚBLICO não tenha dado a devida cobertura, não apenas aos movimentos e pessoas que se manifestavam contra o casamento gay, como também aos que, aceitando-o com limites, defendiam o referendo e não a simples aprovação pelos deputados no Parlamento. Isso reflectiu-se, por exemplo, na publicação, sem reservas, de uma série de artigos polémicos de opositores ao casamento gay e apoiantes do referendo, tais como António Pinheiro Torres (14/11/2009, 24/2/2010), José Ribeiro e Castro (16/11/2009), Isilda Pegado (18/11/2009, 07/12/2009), Gonçalo Portocarrero de Almada (13/12/2009, 18/1/2010), Mário Pinto (16/12/2009), Pedro Vassalo (8/1/2010), J.J. Brandão Ferreira (01/03/2010). O PÚBLICO foi talvez o jornal que mais artigos com tais posições aceitou, apesar da sua expressa posição editorial em contrário. É isto que, para nós, significa liberdade e um debate aberto e sem preconceitos sobre o tema”.
Parece-me esclarecedor e nada tenho a acrescentar. Gostaria apenas de sublinhar um ponto: ao assumir, em nome dos valores que então citou, uma posição como a que entendeu dever tomar na querela do casamento homossexual, o PÚBLICO poderá eventualmente perder a simpatia de leitores para quem essa posição choca com as suas próprias convicções. Esse é o lado da emoção. Mas, se mantiver a clareza da distinção entre factos e opiniões, se informar com rigor e se as suas páginas continuarem abertas, como se deseja, à expressão plural das ideias, não perderá certamente o seu respeito. Esse é o lado da razão.
José Queirós
Documentação complementar
Transcreve-se, de seguida, a carta enviada pelo leitor Xavier Cortez, que deu origem à crónica publicada na edição de 28.03.10. Seguem-se esclarecimentos das jornalistas Catarina Gomes e Maria Lopes, e a resposta do director-adjunto Nuno Pacheco.
Carta do leitor
Já lá vão alguns dias que se realizou, em Lisboa, a Manifestação pela Família e pelo Referendo, e que foi objecto das peças jornalísticas do PÚBLICO publicadas nas edições dos dias 20 e 21 de Fevereiro. Tempo esse que me permite escrever sem que a emoção ganhe à razão, a minha, pelo menos.
Ora vamos aos factos tal como eu os vejo:
1) No dia 20 de Fevereiro ia realizar-se uma manifestação cujos promotores consideravam que a lei recentemente aprovada pela Assembleia da República que permite o casamento entre homens do mesmo sexo e entre mulheres do mesmo sexo, constitui, ao se tratar de um contrato inserido na parte do Código Civil dedicada ao Direito da Família de onde nascem relações familiares e de afinidade, uma alteração do conceito legal de família, sem nenhuma correspondência ao conceito social da mesma, tal como é sentido e querido pela sociedade portuguesa. Por esse motivo visava-se repudiar essa lei, defendendo o conceito histórico, tradicional, sentido e querido pela população portuguesa, e pugnar pela realização de um referendo sobre a matéria.
2) Nesse mesmo dia o PÚBLICO dedicou duas páginas à manifestação na secção nobre do jornal: o Destaque. Sobre a manifestação em si apenas uma pequena nota em cabeçalho. O resto das duas páginas foram para publicitar: a) um estudo que pretende provar que a família hoje já não é o que era, que hoje em dia é normal que os filhos nasçam fora do casamento, que essa instituição é coisa ultrapassada defendida por obtusos e vetustos conservadores ou por fundamentalistas religiosos; b) uma reportagem com uma família em que a mãe se casou pela igreja e dos três filhos dois vivem em união conjugal e o terceiro vive com um parceiro do mesmo sexo, tudo isto para “provar” que esta é uma família perfeitamente funcional, para não dizer moderna.
3) No dia seguinte, o PÚBLICO noticiou a três colunas, uma reportagem sobre a manifestação, cujo título referia que um grupo de extrema-direita provocou um grupo de gays que se encontravam no percurso da manifestação, e cuja primeira parte (mais de metade da notícia) se referia a esse fait-divers completamente estranho à manifestação. Na edição online do PÚBLICO o tratamento foi completamente diferente, quer no título “Mais de cinco mil em manifestação a favor do referendo ao casamento homossexual” quer no texto.
Confesso que tal tratamento jornalístico me surpreendeu por parte do jornal. É certo que a actual directora do PÚBLICO tem todo o direito de optar, editorialmente, pela causa dos que defendem o casamento entre homens do mesmo sexo ou entre mulheres do mesmo sexo. Não me parece é correcto que essa opção editorial possa originar um desvio ao Livro de Estilo do PÚBLICO que a anterior direcção aprovou e a actual, parece-me, ainda se mantém vinculada. Para além do mais um jornal não pode ser tendencioso, tratando as notícias de forma a criar, conscientemente, uma ideia errada nos leitores daquilo que efectiva e visivelmente aconteceu. Ao ser um leitor assíduo do PÚBLICO habituei-me a ler notícias tratadas com rigor, dando um tratamento humano mas realista, em que a ambos os lados da notícia era dado o devido espaço. Habituei-me, com o José Manuel Fernandes, a ver no PÚBLICO um jornal onde qualquer leitor, seja qual fosse a sua proveniência ideológica, se revisse no tratamento das notícias, e em que a opinião tinha um espaço próprio perfeitamente autonomizado do noticiário, em obediência aos princípios constantes do Livro de Estilo. Habituei-me mas, pelos vistos, terei de me desabituar com a actual direcção.
Como Provedor dos Leitores gostaria que fosse o garante do cumprimento dos princípios constantes do Livro de Estilo. Um abraço para essa, pelos vistos, árdua tarefa.
Xavier Cortez
Esclarecimento da jornalista Catarina Gomes
O texto a que o leitor se refere teve como pretexto a manifestação que iria ser nesse dia [20/02/2010] mas não pretendeu ser sobre a manifestação, cujos objectivos e argumentos já tinham sido explorados num artigo dessa mesma semana (17/02) da minha autoria, publicado apenas no site do PÚBLICO por opção da editoria, no dia da conferência de imprensa sobre a manifestação.
O objectivo do trabalho a que se refere o leitor foi fazer um balanço do que é a família portuguesa hoje em dia, tentando avaliar se está ou não reflectida nas reivindicações do grupo que organizou a manifestação, a Plataforma Cidadania e Casamento, que se refere a “uma família verdadeira”, heterossexual, casada e com filhos. Contactados vários sociólogos, constata-se que, embora este seja o perfil que prevalece em termos estatísticos, os especialistas notam que dizer apenas isso é passar ao lado das imensas mudanças que a família portuguesa está a sofrer e foi esse lado, o da mudança, que o texto pretendeu explorar.
Esclarecimento da jornalista Maria Lopes
A diferença de tratamento entre a edição online e a edição impressa é explicada pelo facto de na primeira ter sido publicado um texto da autoria da Lusa (http://publico.pt/Sociedade/mais-de-cinco-mil-em-manifestacao-a-favor-do-referendo-ao-casamento-homossexual_1423638) e na edição em papel o texto ser de uma jornalista do PÚBLICO.
No caso do texto da edição em papel, o título não referia que “um grupo de extrema-direita provocou um grupo de gays”, mas sim: “Activistas da Acção Nacional causam confusão com gays na manifestação em defesa da família”. O termo provocação não foi usado no texto.
Quanto à referência sobre o espaço da notícia que é dado a um “fait-divers”, lembremo-nos que esse “fait-divers” não é “completamente estranho à manifestação” como o leitor defende: ele decorre da manifestação e não teria existido sem a manifestação. O jornalismo não se pode fazer a régua e esquadro; é feito com regras – muitas subjectivas, é certo -, entre as quais impera a novidade, a importância, o inusitado, a diferença.
Presumo que a questão da opção editorial se refira à posição manifestada pela actual direcção num editorial acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Resposta do director-adjunto Nuno Pacheco
Em relação à abordagem jornalística do tema tentámos ser equilibrados, o que não nos isenta de erros neste caso. Fomos, por isso, criticados, quer pelos que defendiam sem reservas o casamento gay quer pelos que defendiam e defendem a família tradicional. Algumas opções jornalisticamente defensáveis, como a da reportagem que mostrava uma família não-tradicional, foram criticadas por “pretenderem” dar a ideia de que, agora, as famílias são todas assim. Não era, essa, obviamente, a ideia. Mas sim mostrar que as famílias já não são todas como antigamente eram. Mostrámos a excepção, não a regra, e isso estava explícito na abordagem. Era uma família “diferente”, não o paradigma das famílias portuguesas.
Quanto à posição editorial de princípio e ao Livro de Estilo do PÚBLICO:
Em editorial de 9 de Novembro de 2009, o PÚBLICO assumiu uma posição de defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos seguintes termos: “O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito que deve ser reconhecido por uma sociedade que defende a igualdade e rejeita a discriminação.” E, mais adiante: “É importante que o debate seja elevado. E que decorra no local adequado, que é o Parlamento e não o referendo. Foi um tema da campanha eleitoral e é aos deputados que compete legislar.”
Esta posição não impediu, no entanto, que nos dias seguintes o PÚBLICO não tenha dado a devida cobertura não apenas aos movimentos e pessoas que se manifestavam contra o casamento gay como também aos que, aceitando-o com limites, defendiam o referendo e não a simples aprovação pelos deputados no Parlamento.
Isso reflectiu-se, por exemplo, na publicação, sem reservas, de uma série de artigos polémicos de opositores ao casamento gay e apoiantes do referendo, tais como António Pinheiro Torres (14/11/2009, 24/2/2010), José Ribeiro e Castro (16/11/2009), Isilda Pegado (18/11/2009, 07/12/2009), Gonçalo Portocarrero de Almada (13/12/2009, 18/1/2010), Mário Pinto (16/12/2009), Pedro Vassalo (8/1/2010), J.J. Brandão Ferreira (01/03/2010). O PÚBLICO foi talvez o jornal que mais artigos com tais posições aceitou, apesar da sua expressa posição editorial em contrário. É isto que, para nós, significa liberdade e um debate aberto e sem preconceitos sobre o tema.
Não entendo, por isso, o que significa esse “desvio ao Livro de Estilo”. Na minha qualidade de fundador e elemento de todas as direcções que o jornal até hoje teve, não vejo aqui nenhuma violação, quer aos princípios do PÚBLICO quer à sua ética.