A televisão é o tema de um texto, muito pouco conhecido, que Agustina Bessa-Luís leu no dia 20 de Novembro de 2003, no Salão Árabe, no Porto, no âmbito de uma iniciativa intitulada Encontros do Porto, dedicada, nesse ano, ao tema “Na idade da televisão: o impacto social, cultural e político do fenómeno televisivo”. Intitula-se “O crocodilo e o rato” e foi publicado na revista O Tripeiro. É a leitura certa para o dia em que a escritora celebra 91 anos de idade.
Há quem diga que alguém que se deita no divã do psiquiatra faz com que se estenda consigo um crocodilo e um rato. Nós trazemos connosco, desde há quinhentos milhões de anos, os comandos cerebrais dos répteis que agiam sobre a corrente sanguínea, a alimentação e a sexualidade. Só há dois ou três milhões de anos o cérebro do mamífero se tornou na máquina complexa que é hoje. Dizer que essa máquina prodigiosa e apta às mais sofisticadas adaptações pode ser afectada por qualquer coisa como a televisão, é absurdo se não for ridículo. Mas é certo.
A minha geração nasceu com a televisão. Foi em 1920 que ela foi inventada, ainda que só depois da II Guerra Mundial fosse comercializada e entrasse nas nossas casas. Primeiro, nos meios mais tradicionais da burguesia foi recebida com reservas, e relegada para as cozinhas essa cultura espúria cuja hiperactividade estava ainda a dar os primeiros passos. Em breve a televisão se manifestou como uma máquina de influenciar e de servir os interesses dos produtores do que não é necessário. A publicidade tomou conta da televisão, produzindo uma realidade artificial mas nem por isso completamente obscura. A mente humana não se obscurece facilmente. O crocodilo está lá para velar pela corrente sanguínea e pelas primordiais vozes da vida orgânica.
Alguns de nós se lembram daquelas preciosas sugestões da publicidade da época: a senhora esbelta, com o vestido de riscas preto e branco. O génio do anúncio estava em que o preto e branco interferia na nossa experiência da cor e estimulava a atenção. Ninguém podia deixar de associar Kodak a essa mulher elegante, sóbria, que actuava sobre os nossos centros de energia – a cor como coisa perdida e que se pretende encontrar. A fotografia precisa de luz; aquela mulher sugeria que a luz estava escondida naquela pequena caixa e que dependia de nós descobri-la. Como génese da publicidade não podia ser mais eloquente nem mais adequado para confiarmos nela de olhos fechados. Cegamente.
Outro exemplo é o do pequeno Fox-Terrier, atento à “voz do dono” que aparentemente soa no gramofone. Ainda hoje a televisão não atingiu a magia da voz do dono. O facto de nos sentarmos no espaço escuro faz, ao contrário do que se pensa, que se entre nessa maravilhosa cultura do inconsciente. A televisão alheia-nos do consciente, mas não destrói a experiência humana. Não é só para as plantas que a luz é uma forma de alimento. As pessoas recebem a luz por efeito de recordações estimuladas pelo inconsciente. Quando se julga que estamos a ser agredidos ou excitados por cenas altamente emocionais, o que se passa é que estamos a ser chamados por imperceptíveis campos visuais da infância onde a aprendizagem está arquivada, onde o tempo não a pode destruir ou deformar. O inconsciente não decorre no tempo; não há tempo no inconsciente. O ser humano não se interessa tanto assim por fazer de tudo um acto consciente. Ele só aproveita o que vai tornar a sua corrente sanguínea equilibrada. O botão de comando da televisão não vai apressar os seus movimentos nem intervir na sua energia vital. Quanto mais um espectáculo é vulgar, mais escorrega na pele e não deixa marcas. Nisso a televisão é boa condutora da vulgaridade; mas não é mais do que isso. O tom de comando de que nenhum apresentador está isento não é tomado como real; acentua o tom de brincadeira que é próprio das coisas inventadas, permitidas porque são inventadas. As guerras, as notícias catastróficas, fazem parte da diversão, não entram na memória como um tropeção dado numa pedra. Esse sim, é real, e faz-nos gritar e culpar a própria pedra.
É uma espécie de loucura querer substituir a vida natural, os laranjais carregados de frutos, as searas dobradas pelo vento, o nascer do sol e a claridade das estrelas, por um ecrã onde o que se passa não tem que ver com a sobrevivência. Há pessoas educadas que nunca viram laranjas nas laranjeiras nem sabem que as castanhas nascem dentro de ouriços. Não são infelizes por isso, a não ser que alguém interfira para lhes provar que estão erradas. Estar em erro é uma interrupção das nossas capacidades. Perecemos pela informação que não actua no nosso cérebro; ele contínua a ter a percentagem de neurónios que convêm à sua vida. Quinhentos milhões de anos nos separam dessa vida, mas se o tempo não existe no inconsciente, quinhentos milhões de anos não são nada. E o crocodilo pode bem deitar-se no divã do psiquiatra connosco e dar sinais de uma realidade que a televisão não altera, não move, não influencia. O facto de cedermos à publicidade não quer dizer que necessitemos dela. É um jogo, não uma aprendizagem.
Pierre Bordieu, um dos mais conceituados animadores do que ele chama o ideal colectivo, levanta o problema dos media de uma forma mais profunda do que o habitual. Onde está a cumplicidade entre a estrutura da imprensa e o público? – perguntam-lhe, numa entrevista. A imprensa, que já foi chamada “os novos cães de guarda”, não age apenas aproveitando o desprevenido consumidor. Ao actuar como um factor de despolitização, a natureza invisível da imprensa tem por ela, de antemão, a cumplicidade do público. Não esqueçamos que o crocodilo está presente na forma mais arcaica das suas funções vitais muito anteriores à consciência. As funções fisiológicas e vitais do homem, do público da televisão, se me permitem dizer assim, são a respiração, a circulação do sangue, a nutrição e a sexualidade. Todos os factos que apelam directamente a estas funções têm êxito garantido. Não é sem razão que as telenovelas fazem apelo às cenas de nutrição. Os personagens passam muito tempo a uma mesa bem servida e fora da realidade. Empanturram-se, sobretudo de doçaria, que simboliza o apetite infantil. O sexo é muitas vezes representado de uma forma delirante e abusadora que remete aos primeiros tempos da reprodução animal. O público está atento a estas chamadas de um passado armazenado nas suas grandes formações cerebrais, o cérebro reptíliano (o crocodilo), o sistema límbico de origem mamífera (o rato) e o neócortex humano.
Comparando a atitude de um público vulgar e de um público escolhido e que adquiriu uma cultura superior, vemos que não há grandes diferenças. Tudo confina com o desejo de encontrar a harmonia com o mundo. Um intelectual vê esse poder na literatura e pretende fazer reflectir os seus leitores no que ele considera os caminhos da salvação para uma sociedade em declínio, se não corrupta. Dificilmente se adapta a um programa televisivo, seja o caso-do-dia em estilo de diversão, seja a forma de opressão simbólica que é a publicidade e o sentimento de bolso; ou seja: a moral para os pusilânimes de opinião. Tanto o solitário pensador como o homem que preza o seu destino, bom ou mau, não arrisca uma hora de vida para ver televisão. Mas há uma inteligência da televisão. Aquele que por nada no mundo se quer reconhecer como criminoso, ou alguém que participa num erro, encontra em certas ofertas da televisão a companhia do absurdo do seu próprio ser. O letrado é um vicioso, como o jogador e o drogado. Não é atraído pela sensação de actualidade tão necessária ao público, tanto do jornal como da televisão. Dantes formava-se uma multidão seguidora de uma ideia por meio da sugestão e o contágio sem contacto. A formação de um público é mais complexa. Multidão e público são coisas diferentes. A multidão é em parte crédula, o público é em parte céptico. Encontramos ainda aspectos da multidão apocalíptica nos traços de um público que se internacionaliza. Os públicos religiosos, científicos, públicos da moda e da arte, são internacionais. Mas em cada um deles subsiste a alma do lugar, ainda que sob o nome de democracia sentimental.
Os programas da televisão são muitas vezes acusados de ser deseducativos. Em grande parte o campo da família transitou para a televisão. A geração do tabuleiro é assim chamada porque a criança come no quarto, diante da televisão que é só dela e sobre a qual tem perfeita liberdade de escolha. A instituição tradicional e fechada da família não lhe faz falta, porque afinal não condizia com os seus ideais. Era gente mandona, vulgar, que se vestia mal e não tinha apresentação. Era ignorante e em muitos casos era ridícula. As mães elegantes e jovens fazem parte da televisão e não da vida real. O público é ateu, mesmo quando se liga a um princípio místico. A religião é açucarada, tudo é uma maneira de “aspirar o chá através do açúcar”, como diz Dostoievski. O mundo do luxo é uma nova descoberta, e a sua publicidade, que era interdita, começa a ser exercida sobre o continente dos que trabalham para que estes gastem mais. Declara-se a senilidade precoce que se manifesta nos sentimentos melancólicos e na depressão dos falsos doentes. A televisão faz convergir a frustração em todos os aspectos. O reformado pobre e a criança mal-amada. Todavia, aquele que tem um objectivo pode dizer-se que dispensa a comunicação; o homem de ideias ou o jogador ou o alcoólico, por exemplo, não vêem televisão. O adulto não vê televisão ou não necessita dela.
A comunicação-mundo parte de agora. Ela pertence à ideologia do progresso e pode-se dizer que surgiu quando as ordens contemplativas se tornaram mendicantes e pregadoras. A televisão tem esse carácter mendicante e pregador, mas no sentido efémero. A lei de um apoio mútuo que parece fortalecer cada vez mais o tecido comunitário, e sempre proclamada nos programas mais populares da televisão, é, no entanto, ilusória. O homem permanece solitário e anti-selectivo. Gosta da sua anarquia pessoal, apesar de seguir uma ordem que tem de bom ser passageira, como a televisão demonstra. Desligar um botão coincide com o desejo de ficar só e ser indiferente a toda a organização de vida social. O grande sucesso da televisão reside nesse acto mortífero que é aniquilar o outro, seja uma multidão ou um simples apresentador de programas. É a campainha do mandarim de que fala Eça de Queirós. Apaga-se a voz, destrói-se a identidade que nos seduz ou hierarquiza a verdade que aprendemos, ou simplesmente nos comove e debilita.
Quem será o criador, depois disto?
A televisão não tem tanto poder sobre nós como se pensa. O que nós amamos nas máquinas é o facto de dependerem de nós. É certo que, no mais obscuro dos vasos capilares, quase ao nível de um diminuto acidente cerebral, o homem teme estar a servir de receptáculo de uma nova forma de consciência. Não se sabe se a máquina não atinge um sentido extracorporal ao homem, e então não será a criança de cinco anos a ligar e desligar a televisão, mas ela própria, a máquina, se encarrega de criar os programas e permitir a visão de um público adequado. Para já vemos como a imaginação humana se tornou repetitiva como um velho disco partido. Quem será o criador, depois disto? O homem ou a máquina?
A influência da televisão sobre o comportamento político é difícil de apreciar, disse Jean-Pierre Esquenazi no seu livro sobre a televisão francesa de 1958 até 1990. Os votos não se regem pela televisão nem pelos inquéritos de rua, nem pelos conflitos que parecem fazer História. O público é, digamos, completamente ausente da experiência dos outros. A não ser que as actividades de reconhecimento entre as pessoas se produzam. E o teste de comunicação seja de facto aprovado. Sempre de forma transitória, bem entendido.
Nós não somos animais gregários. Somos dotados de maleabilidade surpreendente que quase automaticamente vamos exercitando para melhor evitar o declínio e a morte. Sabemos que o exercício das nossas faculdades cerebrais evita as doenças mentais. As nossas faculdades mentais estão em acordo com tudo o que agride ou salva o ser humano. Não é, portanto, difícil perceber que as forças do mercado não afectam a habilidade de viver. A televisão é uma realidade à distância, o que parece diminuir o factor de risco que é a vida real. Por isso é bem recebida e indispensável até. Mas não nos engana, só nos ilude. Mais uma vez lhes falo de Dostoievski, que nos diz assim: “Contudo, devido a uma estranha astúcia, quase que animal, lembrou-se, de repente, de dissimular, por agora, a sua força, fingir, mostrar, se fosse preciso, que não compreendia e, entretanto, ouvir, a ver o que acontecia”.
Isto é tudo.
Minhas senhoras e meus senhores, muito obrigada.