“Somos, uns para os outros, peregrinos que, com pena, prosseguem caminhos diferentes para um encontro comum”, diz Antoine Saint-Éxupery na epígrafe que Ryszard Kapuscinski escolheu para inserir nas suas Andanças com Heródoto. Também o repórter foi, digamos assim, um peregrino. O Centro Português de Fotografia recorda-o na exposição “O Poeta da Reportagem”, que, até 21 de Abril, pode ser visitada no Porto, no Edifício da Ex-Cadeia e Tribunal da Relação do Porto, no Campo Mártires da Pátria.
Como refere o Centro Português de Fotografia, o escritor e jornalista polaco, que dedicou toda a sua vida à reportagem, presenciou 27 revoluções e golpes, esteve em 12 frentes de guerra e foi, por quatro vezes, condenado ao fuzilamento. “Os seus trabalhos relatam acontecimentos que mudaram o rumo de vários países de África, da Ásia, da Europa e das Américas”. A exposição inclui informação sobre toda a obra literária do “mestre do jornalismo moderno” e fotografias do seu arquivo, tiradas no mundo inteiro.
Andanças com Heródoto (Porto: Campo das Letras, 2007) é uma leitura assaz apropriada para rentabilizar a visita à exposição. Aqui apresentamos um extracto:
“No mundo de Heródoto, o homem era o único depositário da memória. Portanto, para chegar àquilo que guardava na memória era preciso aproximar-se de outrem e, se morava longe, organizar a viagem; quando se encontravam, sentavam-se juntos para ouvirem o que se podia dizer para reter na memória e, eventualmente, anotar. Assim começa a reportagem; nasce destas situações.
Heródoto viaja pelo mundo para contactar com as pessoas e ouvir aquilo que têm para dizer. Dizem-lhe quem são e cada um conta a sua história. Mas como sabem elas quem são e de onde vêm? Dizem que têm ouvido de outros, principalmente dos seus antepassados, que lhes transmitiram o conhecimento, e elas agora fazem o mesmo com os próximos. O dito conhecimento tem a forma de histórias de diversa índole. As pessoas sentam-se em redor da fogueira e começam a contar. Depois tudo isto toma o nome de lendas ou mitos, mas no momento, quando estão a contar ou a ouvir, acreditam ser a verdade mais verdadeira e a realidade mais real.
Enquanto escutam, a fogueira arde, alguém põe mais lenha e a luz e o calor do lume avivam o pensamento e estimulam a imaginação. Torna-se quase impossível tecer essas histórias sem uma fogueira, uma vela ou um candeeiro por perto, que iluminem a escuridão da casa. A luz do fogo atrai, consolida o grupo, liberta energias positivas. Chama e comunidade. Chama e história. Chama e memória. Heraclito, mais antigo que Heródoto, considerava o fogo como a origem de qualquer matéria, como a substância mais primitiva: tudo, dizia, é igual ao fogo, vive de movimento contínuo, tudo se apaga para se reacender depois, tudo passa e, ao circular, se transforma. Com a memória acontece a mesma coisa. Algumas imagens apagam-se e são imediatamente substituídas por outras. Só que as novas não são iguais às precedentes, são diferentes; da mesma forma que não nos podemos banhar duas vezes na mesma água de um rio, também é impossível a uma imagem nova ser igual à anterior.
Heródoto compreende perfeitamente a lei destrutora do tempo e quer opor-se à sua natureza implacável para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo.
Por outro lado, que certeza, que convicção sobre a importância de uma missão, para que se possa dizer que se faz algo para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo. Feitos dos homens! Mas como saberia que pudesse existir algo denominado feitos dos homens? O seu antecessor, Homero, descrevera só a história de uma guerra, a de Tróia, e depois as aventuras de um viajante solitário, Ulisses. Mas – os feitos dos homens? É já uma nova forma de pensar, de enquadrar a realidade, um novo horizonte. Com esta frase, Heródoto não aparece como um escrivão de província, apaixonado pela sua pequena polis, patriota oriundo de uma das dezenas de cidades-estado que compõem a Grécia. Não! O autor de Histórias aparece directamente como um visionário mundial, um criador capaz de pensar à escala planetária, em breve, o primeiro globalista.
Claro que o mapa-mundo que tem à sua frente, ou que imagina, é bem diferente daquele que utilizamos hoje. O seu mundo é bem mais pequeno do que o nosso. O centro é constituído pelas terras montanhosas e pelos bosques que rodeiam o Mar Egeu. Na costa ocidental situa-se a Grécia e, na costa leste, a Pérsia. E é aqui que podemos ver a essência da questão, já que Heródoto, desde pequeno, via e compreendia que o mundo estava divido, ou se repartia, em Leste e Oeste, e que estes dois territórios estavam em discórdia, conflito, guerra.
A pergunta que lhe surgia, e que surge a qualquer pessoa que pensa, é: por que será assim? E é esta a questão que enforma a primeira frase da sua obra-prima: Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso (…) e sobretudo a razão por que entraram em guerra uns com os outros.
Ora bem. Sabemos que a questão intriga e inquieta a humanidade há milhares de anos, desde o início da história, e que é sempre pertinente: por que é que as pessoas fazem guerras? Qual é a causa? O que é que pretendem exactamente ao começar uma guerra? Qual é a motivação? Que pensam? Qual o objectivo? Perguntas, uma litania infinita de perguntas. E assim que Heródoto consagra a sua vida trabalhosa e infatigável a descobrir respostas. No meio das questões gerais e abstractas, opta por escolher as mais concretas, os acontecimentos que passam diante dos seus olhos, ou aqueles que acabam de acontecer e cuja memória ainda continua viva ou, mesmo que se tenha tornado mais pálida, continua de alguma maneira viva. O historiador concentra a sua atenção e as suas pesquisas na interrogação: por que está a Grécia (quer dizer, a Europa) em guerra com a Pérsia (quer dizer, a Ásia), por que é que estes dois mundos, o Ocidente (Europa) e o Oriente (Ásia), lutam entre si a ferro e fogo? Será que sempre foi assim? Será que continuará a ser sempre assim?”