Um pai que perde a filha num jogo de cartas, uma adolescente casada com um marquês sádico, um gato que é mais esperto do que os humanos, perversões, cadáveres escondidos em quartos fechados, uma vampira que se alimenta do sangue de jovens rapazes – os contos da escritora britânica Angela Carter (1940-1992) têm material suficiente para alimentar a imaginação de quem os lê. Será que alimentam também os estômagos?
Os alunos do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE) tiveram como trabalho final transformar os contos de The Bloody Chamber and other stories numa refeição – o resultado será apresentado num jantar no dia 23 (terça-feira), no restaurante da escola.
O projecto está integrado nos encontros culturais e académicos Receiving/Perceiving English Literature (que envolvem também a Universidade de Lisboa através das Faculdades de Letras e Arquitectura e ainda a Universidade da Beira Interior, cujos alunos criaram aplicações móveis a partir do mesmo tema), que abordam os contos de Angela Carter de diferentes formas – incluindo a gastronómica, na disciplina de Food Design dada pelo professor Ricardo Bonacho. O jantar acontece no final do primeiro de dois dias de debates sobre a autora na Faculdade de Letras (mais informação aqui).
Foto 1 – Coxinhas de… gato ou lebre?
A proposta de trabalhar em torno de Angela Carter (em anos anteriores trabalharam William Blake e Shakespeare, no próximo ano será a vez de Jane Austen) surgiu da professora Maria José Pires, coordenadora do mestrado e conhecedora da obra da autora britânica. Os alunos leram os contos e pensaram a melhor forma de tornar comestível o universo gótico inspirado em contos tradicionais de Carter.
Foto 2 – Alcachofra recheada com tártaro de atum.
O que poderão então comer os que se aventurarem no jantar de dia 23? Vão encontrar no restaurante da ESHTE um ambiente que os levará rapidamente para muito longe dali e inquietantemente perto de Angela Carter. Na mesa encontrarão ossos – os mesmos ossos que a vampira de The Lady of the House of Love enterra no jardim depois de se alimentar das suas vítimas – com cartas de jogar feitas a partir de sangue e beterraba.
Foto 3 – Cabidela
O primeiro prato tem como mote o conto Puss-in-Boots e brinca com a ideia de servir gato por lebre. Concebido por dois alunos brasileiros, apresenta duas clássicas coxinhas de galinha, uma de coelho e outra de legumes (foto 2). Novo prato e entramos no Bloody Chamber, o conto principal do livro, através de uma alcachofra recheada com tártaro de atum encimado por um gema curada em teriaky – a carne do atum a ser usada aqui como metáfora da forma como se sente a jovem casada com o marquês sádico.
Foto 4 – Primeira sobremesa, Capuchinho Vermelho
E, depois de uma surpresa que não será aqui revelada (sim, envolve uma cabeça de porco e rosas), o prato mais tétrico de todo o jantar leva-nos a comer uma “cabidela desconstruída” em cima da lápide funerária de Angela Carter. Se sobrevivermos à experiência (é difícil ficar indiferente), chegamos enfim às sobremesas nas quais encontramos um Capuchinho Vermelho (The Warewolf) armado com uma faca e um monstro que personifica a floresta e transforma raparigas em pássaros (do conto The Erl-King).
Foto 5 – Segunda Sobremesa, o monstro da floresta
A última sobremesa (em baixo) é um complicado exercício que concentra num único prato referências de todos os contos de Angela Carter, das cartas de jogar às chaves que fecham os quartos mais sinistros. Os alunos chamaram-lhe Suspensão da Realidade. E é tudo comestível, claro.
Só há 25 lugares (esgotados) porque foi há 25 anos que morreu Angela Carter (cuja passagem por Portugal, há precisamente 40 anos, em Agosto de 1977, será também recordada). Jantemos então sobre o seu túmulo.