O que sabemos nós sobre cortes de carne?

Comer um touro não é uma tarefa fácil, mas a verdade é que houve alguns voluntários para, no fim-de-semana passado, viajar até Pavia, junto a Mora, Alentejo, para tentar debelar (pelo menos parte do) animal que o produtor Joaquim Arnaud disponibilizou para esta experiência. O pretexto? Discutir diferentes cortes de carne – que foram cozinhados por sete chefes convidados – e o que fazer com eles.

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[ João Oliveira, do restaurante Volver de Carne Y Alma, que não abandonou o seu posto ao pé da grelha, aqui ocupado com os hambúrgueres]
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[A ocasião serviu também para ver fazer pão]

Pedro Cruz Gomes, do blogue Gastrossexual , foi um dos responsáveis pela organização do evento. Em frente a um prato de carne (claro) falámos sobre o que sabemos nós, afinal, sobre cortes. (Segue a conversa, com fotos pelo meio).

Como é que surgiu a ideia de fazer esta refeição?

O produtor Joaquim Arnaud tinha um touro que tinha sido de cobrição durante uma série de anos e já tinha atingido o limite de idade para continuar as suas funções. Arnaud tinha muita curiosidade em saber como era a carne de um touro velho e as características deste depois da alimentação que ele lhe foi dando nos últimos meses, como se comportava em termos de textura e de sabor e principalmente da gordura entremeada.

Do meu lado, desde há muitos anos que tenho curiosidade relativamente aos cortes de carne. Pergunto, e não tenho encontrado resposta, porque é que os cortes portugueses são diferentes, porque variam de país para país, sendo a anatomia do animal a mesma. Provavelmente terá a ver com uma tradição que levou os consumidores a habituarem-se a apreciar aquele tipo de corte.

Há cortes fundamentais que seguem os músculos, outros que não seguem totalmente e que têm a ver provavelmente com a maneira como cada sociedade olha para a carne e como a vê em termos gastronómicos.

Os cortes que se fazem em Portugal são piores do que outros países?

Em Portugal há uma barafunda enorme. É verdade que há cursos de cortador, que a Escola Profissional da Pontinha tem um curso de cortadores, onde este touro foi desmanchado por um professor que dá formação na área. Mas também é verdade que eles seguem o livro mais recente de que há registo que é um livro de 1959 feito pelo professor Ivo Correia, que era da Escola de Medicina Veterinária. Nem sequer é um livro virado para profissionais de corte, tem a visão de um veterinário, incide muito nos músculos e na nomenclatura.

Se uma das escolas principais na formação de cortadores desta área se inspira num livro de 59, isto quer dizer que não há livros escritos depois disso – ou não houve interesse comercial ou apetência para evoluir em relação ao que era descrito nesse livro. Ivo Correia diz que na altura havia duas escolas de corte: Lisboa e Porto. Hoje acho que há inúmeras escolas que variam em função da vontade do talhante e da óptica comercial do mesmo.

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Alguns já com influência de cortes de outros países ou não?

Não. O que conta é a maneira como cada um vê que pode ter mais rendimento. É mais fácil vender um bife constituído por vários músculos do que vender três bifes que são o resultado do desmanche dessa peça grande. Acredito também que haverá muito profissional que não aprendeu na escola mas sim com outros profissionais.

Há pouco conhecimento da parte dos consumidores?

Sim, e há pouco profissionalismo porque os consumidores não são exigentes. A minha avó falava de vários cortes que, para mim, até ter começado a estudar esta área, não queriam dizer rigorosamente nada. A minha mãe ainda me ia falando de um ou outro que tinha aprendido com a minha avó, mas a partir de certa altura começou também a limitar muito o léxico dos cortes que comprava.

Nas últimas décadas começámos a ver uma etiquetagem que fala de carne para bifes, de carne para assar, para guisar e não de uma peça ou outra. O que é sintomático, porque significa que o consumidor não se importa em saber qual a origem em termos de anatomia desde que seja para guisar ou cozer. O que é trágico, porque ainda que as técnicas sejam quatro ou cinco, fritar, grelhar, cozer, guisar, estufar, os vários cortes têm subtis sabores diferentes. Se o consumidor souber isso pode usar o seu conhecimento para variar os pratos.

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Há talhos que apresentam o desenho com a anatomia do animal.

Sim, porque o movimento começa ao contrário: há curiosos que querem fazer um serviço personalizado. Se calhar, há dez anos olhávamos para uma montra do talho e víamos meia dúzia de peças postas à balda e hoje já vamos vendo uma coisa que se usa muito em França, preparações feitas pelo talhante, rolos, etc.

Por outro lado, desapareceram coisas que eram comuns como a língua ou a mioleira

E que são peças deliciosas. Provámos aqui duas línguas, qualquer uma delas fabulosa, e muito longe daqueles fantasmas que tínhamos em criança de que a língua era uma coisa terrível. Se for bem feita, se as pessoas souberem usar a técnica certa, é óptima.

Tem também a ver com o facto de os matadouros terem deixado de separar certas peças.

A mioleira tem a ver com o prego no caixão que foi a crise das vacas loucas. A língua sempre foi mal vista. Como todos os cortes de segunda e terceira eram cortes para pobres, eram as peças menos nobres. Nós temos uma riqueza de pratos feitos com as partes menos nobres, muitos dos quais estão a desaparecer. Há talvez um complexo de enriquecimento que nos leva a abandonar aquilo que comíamos quando éramos pobres, passámos para os bifinhos.

Nunca fomos muito fortes em carne bovina. Sempre foi muito mais o porco, um animal que comia tudo e era aproveitado todo. As vacas, os bovinos eram aproveitados para o leite e o que sobrava eram vacas velhas que não sendo bem tratadas, com alimentação especial como hoje, não eram tão saborosas e tenras como seria de esperar ou como há noutros países. Penso também que geneticamente as nossas raças são mais para animais de trabalho do que de engorda para carne.

Curiosamente, as nossas raças protegidas foram-no para não se perder a memória delas, porque são muito pouco comerciais. São pequeninas, têm uma relação osso-carne desfavorável e os produtores dizem sempre que o melhor são os cruzamentos ou as raças importadas. O nosso clima, com pouca chuva, também não permite pastos, como há nos Açores, favoráveis às carnes.

Historicamente não temos um percurso muito interessante em termos de boa carne. Temos bifes que eram reservados às classes altas e que não eram nada de especial, e outra carne que é dura se não for bem cozinhada e que levou ao desenvolvimento de receitas de prolongados tempos de cozinha.

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O que concluíram com esta experiência com o touro?

Concluímos que a carne é obviamente saborosa mas que o touro precisaria de mais tempo de pousio e de uma dieta especial para ganhar gordura intramuscular. Comprovámos que as origens das carnes determinam a maior ou menos tenrura e aproveitámos para fazer umas experiências para perceber como é que os americanos fazem os T-Bone ou os Tomahawk e perceber que isso também existe em Portugal mas cortado de outra maneira.

E o que pensam fazer a seguir?

Retirámos duas peças que vamos maturar para perceber se é uma carne que funciona bem maturada. E daqui a dois meses teremos novo evento, um jantar desta vez em Lisboa.

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[Nuno Diniz ataca o touro]

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[Pormenores da casa de Joaquim Arnaud em Pavia]

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[Teresa Cabral Pessanha falou sobre queijos]

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[Aprendeu-se muito sobre mel com o produtor António Carlos, de Pavia]

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[Gianni Mannella ensinou a fazer manteiga de trufa]

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[Rabo de boi cozinhado por Joe Best, com puré de manga, gengibre confitado e picante]

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[Carne all’albese, por André Magalhães, que só tinha sido convidado para comer mas não resistiu a pôr as mãos na carne]

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