Estive fora de Portugal e por isso já só consegui chegar a tempo da última noite da 4ª edição do Sangue na Guelra 2016, a noite que os organizadores – Ana Músico e Paulo Barata, da Amuse Bouche – decidiram este ano dedicar às mulheres. Havia as chefes convidadas, mas muito mais: da sommelier às produtoras de vinho, passando pela Joana Moura, que trouxe sumos, foi uma autêntica noite Girls n’Guts.
A primeira surpresa aconteceu logo com a entrada que circulava na sala antes do início do jantar, uma versão de carne de porco com amêijoas (foto em baixo) pela portuguesa Ana Moura, da Cave 23, em Lisboa. Difícil de comer à mão quando se está de pé, mas muito bem conseguida e uma confirmação de que vale a pena ir conhecer o trabalho da Ana.
Depois, e antes de chegarmos às convidadas estrangeiras, dispersámos a atenção por várias coisas que, como é habitual no Sangue na Guelra, aconteciam pela sala do Cais da Pedra, a hamburgueria de Henrique Sá Pessoa junto ao Tejo, Lisboa. Numa mesa comprida, depois usada para a montagem dos pratos, havia ostras e algas variadas.
Quem quisesse podia aprender mais sobre o assunto com Célia Rodrigues, da Neptun Pearl, que se tem dedicado ao desenvolvimento das ostras mas que também dava explicações sobre as diferentes algas, da empresa ALGAPlus – que, percebemos depois, também despertaram muita curiosidade junto das chefes convidadas. Havia sarcocórnia, beldroega do mar, funcho marítimo, salicórnia, enfim, variados sabores a mar, como convém num evento que pretende destacar o peixe e marisco das costas portuguesas.
Mas, além desta mesa marítima, havia outra com uma marca que se tornou patrocinadora do Sangue na Guelra: a Luso com Gás. E, porque a Ana e o Paulo fazem questão que nada aqui seja banal, a Luso com Gás veio com sabores, como que a querer, discretamente, ganhar o estatuto que o gin conquistou nos últimos tempo. Gostei da de malagueta e da água com gás fumada, com pinha e poejo. Achei menos conseguida a versão mais adocicada, com noz e mel (colocados na borda do copo). Por fim, estavam também na sala os alunos de design de produto finalistas do Instituto Politécnico de Lisboa com os pratos que criaram especialmente para o Sangue na Guelra.
No meio de tantas distracções não era fácil levar o público até às mesas. Parámos ainda uns minutos para conhecer as chefes Ana Ros, do Hisa Franko, na Eslovénia, Chloé Charles do francês Fulgurances e Antonia Klugmann do L’Argine a Vencó, em Itália, uma estrela Michelin (foto ao lado, com o italiano Enrico Vignoli, um dos co-organizadores e em baixo com Andrea Petrini, outro cúmplice do Sangue). A fase das entradas arrancou a bom ritmo, acompanhada pelo espumante Luís Costa (Caves S. João, Bairrada). Pele de bacalhau, manteiga, ovas de peixe e algas (Ana Ros), mexilhão, cavala e nata ácida (Ana Ros), em ambos os sabores salgados do mar amaciados pelos lácteos.
Depois, aparas de vegetais e ovas de truta (Chloé Charles) e ragu com entranhas de choco (Chloé Charles) – foi a primeira aparição do choco, que voltaria depois em dois dos pratos principais. Por fim, vieram as entradas de Antonia Klugmann, bacalhau confitado com rábano e caldo de porco fumado com medula e amêijoas.
O primeiro prato, de Ana Ros, pretendia ser um tributo às ilhas portuguesas. Chamava-se Bilhete cor-de-rosa de Lisboa para Cabo Verde e juntava mariscos portugueses com algumas frutas da Madeira e Açores (banana, ananás) numa base que, com a ajuda da beterraba, tinha uma chamativa cor rosa (foi servido com um Quinta do Pinto 2015). A ideia era boa, o resultado era, para meu gosto, demasiado marcado pelo doce das frutas. O prato seguinte (com o mesmo vinho) acabou por ser o meu favorito: choco cru e salada de alho francês, com ovo, pão torrado e alcaparras que, aqui e ali, faziam um disparo de sabor.
Ana Ros voltou com um Brodetto revival, o da foto final (percebemos que tem inclinação para os nomes mais originais), inspirado pela sopa de peixe típica dos pescadores do Adriático (com Mariposa Dão 2014). Outro prato que, pelos ingredientes usados, só podia ser vencedor foi o de Chloé Charles Gambas com foie-gras do mar, ou seja, fígado de tamboril (para comparação dois vinhos, Quinta de Santiago 2015, Vinhos Verdes, e Quinta de Santiago Reserva 2014).
Saboroso e de conforto, apesar de não ser muito bonito, era o prato seguinte, Gnocchetti com aparas de peixe, de Antonia Klugmann (a mesma comparação dos dois vinhos). No último prato, também de Klugman, o regresso do choco, agora com tinta, acompanhado por couve e cogumelos (Somnium 2012, Douro), menos marcante do que os anteriores.
Para sobremesa, Maria João Malheiro, da Confeitaria d’Alvor, trouxe um fundo do mar doce, com vários sabores, do chocolate ao caramelo, do amendoim ao creme de limão e um inesperado sabor a mar: anchova. Grande sucesso foram os sumos da Joana Moura, de cores lindissimas, que eram para ser uma alternativa para quem não bebia vinho e que acabaram por ser devorados por muito mais gente. Havia um de aipo, pepino e maçã verde, outro de papaia, curcuma e kombucha e um terceiro de toranja vermelha e alecrim.
E foi assim: como sempre, o Sangue na Guelra pôs-nos a pensar, a discutir, a discordar e a descobrir. E, claro, já a ansiar pelo próximo.
E eu que adoro comer ! Este artigo tão descritivo ,deixou-me agua na boca , isto é jornalismo de opinião muito conseguida .
Esta Alexandra Prado Coelho ,faz um excelente trabalho com esta coluna