Depois das óptimas notícias de ontem – duas estrelas Michelin para o Belcanto de José Avillez, em Lisboa, a entrada nas estrelas de Pedro Lemos, no Porto, e a reconquista da estrela pelo algarvio São Gabriel de Leonel Pereira, resolvi recuperar o texto que escrevi em Março passado quando fui ao São Gabriel conhecer o novo (e extraordinário) menu de degustação. Aqui fica, abaixo. E deixo também a recordação do jantar dos prémios do blogue Mesa Marcada, no Belcanto, que na altura contei aqui.
“Quatro meses de pausa – o tempo, de época baixa, em que muitos restaurantes no Algarve fecham – e neste início de Primavera Leonel Pereira está de regresso à cozinha do São Gabriel, em Almancil, com uma nova ementa e ideias originais que andou a desenvolver.
E quando dizemos originais estamos a falar de coisas como vieira cozida no vapor de citrinos, com requeijão de ovelha e maçã injectada com beterraba, num molho de citrinos e chá de lúcia-lima. É verdade que, entre a alta cozinha portuguesa, é difícil encontrar uma ementa que não tenha vieiras. Mas, se muitas delas são apresentadas de maneira que nada acrescenta, a mistura que Leonel Pereira criou é surpreendente na forma como a vieira tépida se mistura com a acidez da maçã Granny Smith e o sabor lácteo do requeijão.
O chef, que anteriormente esteve no restaurante Panorama, no Hotel Sheraton em Lisboa, mudou-se no ano passado para o Algarve para relançar o São Gabriel (que tinha uma estrela Michelin, entretanto perdida, algo que o chef questiona porque, diz, desde que assumiu a cozinha o restaurante não foi visitado pelos inspectores do célebre guia). Com uma liberdade para criar que não tinha no Panorama, Leonel Pereira diz sentir-se no auge da criatividade. E como é que isso se traduz num menu de degustação?
Tudo começa com um carapau alimado sobre uma pringle de arroz, pimento fumado e yuzu, fruto cítrico do Leste asiático. Segue-se um desses snackscom intenso sabor a mar, que Leonel já tinha apresentado no ano passado. Trata-se de uma cabeça de carabineiro “desossada”, com o sabor todo concentrado, e que se come inteira. Vem sobre uma bolacha com tinta de choco e um pequeno tubo branco que guarda no interior um creme feito, entre outras coisas, com os sucos das cabeças dos carabineiros.
O chef do São Gabriel continua a trabalhar com o plâncton e o fitoplâncton, que lhe permitem recriar “o sabor da ria Formosa”, e que desta vez usa numa base “tipo patanisca” com pequenos camarões secos e salicórnia. O último snack do menu é um tártaro de salmão selvagem com um creme de teriyaki e bergamota, de sabor muito fresco e um elemento levemente crocante que não conseguimos identificar, até Leonel nos esclarecer que se trata de cevadinha, que é cozida, seca e por fim frita. Come-se de uma só vez, com o doce do creme, cortado pelo cítrico da bergamota, a encher a boca, para rapidamente se dissipar deixando o sabor do salmão dominar totalmente.
No São Gabriel é dada uma atenção particular ao pão, servido em diferentes variedades, desde o de sementes de girassol ao de cominhos, passando pela focaccia de alecrim e pelas manteigas, que vão mudando todas as semanas – na noite em que fomos havia, por exemplo, uma irresistível manteiga de caramelo.
Antes da vieira com requeijão, surgiu na mesa um prato que pode ser feito com sarda ou cavala (neste caso era sarda) com molho de rábano, kumquat (outro citrino, pequeno, de sabor doce e ácido), e acompanhado por beterraba e aipo. Seguiu-se a vieira e depois Leonel apareceu com outra provocação: lagostim, endívia, pezinhos de coentrada e caviar Beluga. O próprio chef diz que para alguns clientes este prato pode ir longe de mais, mas não resistiu a experimentar esta mistura de sabores que, curiosamente, resulta mais harmoniosa do que se poderia imaginar.
Há ainda mais um elemento que permite que fiquemos a conhecer uma linha de trabalho que Leonel tem vindo a desenvolver: sobre o prato surgem o que parecem ser pequenas lâminas de osso. Trata-se de aipo calcificado, que ochef trata através de um processo químico, com um salitre que vai provocando a desidratação.
Leonel explica que está interessado em trabalhar os legumes com dois métodos diferentes: a calcificação e a marmorização, que não provoca uma desidratação tão grande, mas mesmo assim torna os legumes semelhantes a frutas cristalizadas, com uma concentração de todos os seus açúcares, uma capa exterior mais firme e um interior mais esponjoso e húmido.
O foie-gras, que, tal como as vieiras, não pode faltar a um menu de degustação, é aqui acompanhado por um óptimo praliné de repolho – outra técnica que Leonel tem vindo a explorar é a dos fermentados -, marmelada de cebola e açafrão. Tivemos o foie mas temos também as molejas, vindas de Barcelos (“das melhores que já trabalhei”, diz o chef) cozinhadas durante 12 horas, acompanhadas por um puré de nabo com um delicado toque de hortelã, linhaça torrada e quiabos, ainda firmes, muito pouco cozinhados, e excelentes.
O primeiro prato de peixe é um salmonete acompanhado com legumes, entre os quais uma mandioca preta, cozida durante 48 horas “para ganhar a textura certa”; e uma pescada com molho de fitoplâncton, recuperando novamente o sabor da ria. Para as carnes, Leonel apresenta um rabo de boi com a tal abóbora marmoreada, creme de batata com maçã, e gnocchi de beterraba; e um costeletão de novilho com cogumelos chanterelle, puré de batata e aipo calcificado, servido sobre um grande osso polido.
O menu termina com uma pré-sobremesa de pistachio tratado em esponja e gelado de rosas; e duas sobremesas, uma de chocolate (que não provámos) e outra de iogurte fermentado e leite de ovelha, na linha que mais interessa aochef, que é a de evitar o açúcar excessivo e trabalhar outro tipo de sabores.
O São Gabriel está de regresso, portanto, e com lugar assegurado na rota da cozinha mais criativa que se faz em Portugal.”