Escrevi o prefácio para o mais recente livro do Virgílio Gomes, sobre os doces que pensamos conhecer e que, às vezes, conhecemos muito mal. São livros como este, de investigação e saber, mas que se lêem como pequenas histórias, que acho que fazem falta em Portugal. Fiquei por isso muito contente com a publicação deste Doces da nossa vida – Segredos e Maravilhas da doçaria tradicional portuguesa, que chegou recentemente às livrarias. Aqui fica o prefácio.
“Uma viagem doce, das cozinhas da nossa infância para o mundo
A primeira vez que ouvi falar deste livro foi numa entrevista que fiz ao Virgílio a propósito do anterior Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional. Nessa altura ele disse-me esperar que o livro seguinte fosse sobre doçaria. E acrescentou esta frase: “A doçaria tem uma linguagem muito mais poética”.
Aqui está, então, esse livro – doce de várias maneiras. E uma delas é, sem dúvida, a linguagem. Este é também, entre muitas outras coisas, um livro cheio de memórias de infância, de imagens dessa grande cozinha familiar que se enchia de doces e de conversas sobre doces.
Há momentos em que nos é permitido espreitar para esse passado, e vemos Virgílio, ainda criança, a comer a aletria, “esse consolo caseiro de Inverno”, que aparecia muitas vezes ao lado do arroz-doce, e que também “servia de mimo quando estávamos adoentados”. Ou a pedir à Mãe que, mesmo fora da época natalícia, fizesse os Bolinhos de Arroz, receita que vinha já da família do Pai. Ou ainda, a acordar bem cedo para ir a correr até à cozinha e “espreitar o tabuleiro que continha os bolos que tinham ficado a dormir”, esses Dormidos de Bragança, que depois tinha que esperar, pacientemente, que cozessem, para o prémio final que era “devorar um ainda meio quente”.
É dentro de uma dessas cozinhas de aldeia transmontanas “com uma grande lareira onde havia sempre potes de três pés com água e ossos de presunto e alguma confecção de cozedura lenta”, que assistimos a um delicioso diálogo, num dos textos de que mais gosto do livro, o “concílio das mulheres da família” da noiva a decidir que doces se vão fazer para a festa de casamento. Somos convidados silenciosos nessa cozinha, onde ficamos a ouvir falar sobre esse tema (que subitamente descobrimos muito mais complexo do que imaginávamos) que é o arroz-doce, por um grupo de mulheres que sabem que é nos doces e não nos salgados que “se desenvolve a delicadeza dos gestos”.
Mas não é só de doce poesia que se faz este livro. A arte de Virgílio é, quando nos apanha distraídos a espreitar estas cozinhas e a ouvir estas conversas, agarrar-nos na mão e fazer-nos voar dali para fora para nos mostrar que a história dos doces é também uma história do mundo. Voltemos à aletria, como exemplo, para perceber que esse “consolo caseiro de Inverno” é uma receita que nos terá sido deixada pelos mouros e que o autor encontrou também, noutras versões, em viagens por Marrocos.
Seguimos viagem depois por livros de receitas ao longo dos tempos – neste como em muitos outros doces deste livro – como investigadores à procura de pistas, guiados por Virgílio que, no meio da sua impressionante biblioteca, já nos abriu o caminho encontrando todas as referências que nos vão permitir traçar a história deste ou daquele objecto de desejo.
É um trabalho de investigação muito sério, e absolutamente essencial para que não fiquemos apenas pelas lendas (embora elas também sejam importantes para a história) o que Virgílio Gomes aqui faz. E aqueles que, como eu, o conhecem, sabem que não é apenas nos livros que ele procura as pistas. É capaz de percorrer o país, com encontros marcados em pastelarias, conventos ou casas de doceiras para recolher mais uma informação que ajude a esclarecer mistérios ou a derrubar mitos.
E quem diz o país, diz o Brasil, por exemplo, passagem obrigatória para se fazer a história da doçaria portuguesa, porque foi para lá que ela viajou, e é lá que ainda hoje encontramos muita informação importante. Veja-se outra crónica deliciosa como é a da Expedição Gulosa Doce, em que Virgílio parte em busca dos “famosos Fartes, doces chegados à terra de Vera Cruz antes de ser Brasil” para percorrer casas de doceiras, ouvir os seus relatos, alegrar-se ou desiludir-se, mas voltando sempre sabendo mais.
Por vezes, estas viagens levam-nos a sítios menos doces, como o Engenho Livramento, no Ceará, Brasil, para recordarmos que a história do açúcar fez-se em cima do muito sofrimento dos escravos que trabalhavam nas plantações de cana. Mas para falar de açúcar, esse elemento essencial da doçaria, temos que viajar ainda mais longe, passando pela Índia e pela China, e entrando nas caravanas que trouxeram a “doce cana” para Ocidente, de onde haveria depois de atravessar o Atlântico.
E viajamos de volta a Portugal, para ouvirmos o autor fazer algumas das perguntas incontornáveis quando se trata de uma história da doçaria portuguesa: o que é exactamente a doçaria conventual? É preciso clarificar as coisas, porque muito do que encontramos nas pastelarias como sendo conventual não o é. E aí entra mais uma vez o trabalho de investigação de Virgílio, procurando nos arquivos dos conventos, nos antigos livros de receitas, para estabelecer tanto quanto possível que determinado doce nasceu realmente naquele convento, e que transformações sofreu quando depois se espalhou pelo país.
Tive a sorte de ter a companhia do Virgílio num dessas excursões pelo país, neste caso uma viagem não muito longa, mas muito interessante, em busca da história do Pão-de-ló de Alfeizerão, esse doce que terá nascido de um erro, quando um bolo destinado ao rei D. Carlos é retirado demasiado cedo do forno, e o interior fica mal cozido. Mas foi um daqueles erros sábios, porque não só o rei muito apreciou, como o bolo se tornou uma especialidade local – a cuja confecção eu e o Virgílio assistimos na Casa do Pão-de-ló de Alfeizerão, e que é um desses exemplos em que o saber e experiência, a exactidão e o rigor que se escondem por detrás da delicadeza dos gestos da doceira nos deixam, como ele escreve na sua crónica, “boquiabertos”.
É importante sabermos qual o papel do chocolate na nossa doçaria, ou dessa exótica baunilha, ou até que ponto podemos inovar sem trair o espírito original de um doce (temos o caso dos pastéis de nata, por exemplo). E é essencial prestar homenagem a todos os que continuam a manter as tradições, por mais trabalhosas que elas possam ser – é a eles que temos que agradecer o facto de muitos doces regionais continuarem a existir. É também para isso que existe este livro.
Saímos dos conventos, desse universo de tachos de cobre e complexos pontos de açúcar para entrar nas cozinhas populares, e encontrar os doces regionais e populares, aos quais Virgílio quer devolver uma dignidade que alguns foram perdendo. E vamos descobrindo também as muitas histórias de santos que estão ligados à doçaria, das “ganchas” de São Brás, bispo e mártir famoso por ter salvo uma criança tirando-lhe uma espinha da garganta, às fogaças de Palmela, votivas a Santo Amaro.
É um mundo doce, este, em que as farófias se podem chamar “nuvens”, ou “ovos nevados”, e em que as receitas viajam na cabeça de uma freira de um convento para o outro, ou são copiadas à mão de antigos livros, durante gerações – tal como o livro de receitas da Mãe de Virgílio, a partir do qual ainda hoje os filhos vão fazendo doces, preservando uma memória que pertence à história do país, mas que é, ao mesmo tempo, uma memória de cada um. É, afinal, uma memória dessa infância em que esperávamos ansiosos que a alquimia dos ovos, da farinha e do açúcar se desse mais uma vez no fundo dos tachos, e que o calor do forno fizesse depois crescer o bolo mais desejado.
Obrigada, Virgílio, por não nos deixar esquecer.
Alexandra Prado Coelho
Lisboa, 14 de Agosto de 2014″
Muito Obrigado. Bjos