Estive recentemente em Barcelona para a apresentação da nova série televisiva Os Melhores Chefs do Mundo, uma produção da FOX que vai estrear em Portugal a 1 de Outubro no canal 24 Kitchen.
Foi uma apresentação de luxo, com direito à presença de três dos “grandes”: Ferran Adrià, que é também consultor da série apresentada pela norte-americana Katie Button, Massimo Bottura (Osteria Francescana, Modena) e Andoni Luis Aduriz (Mugaritz, País Basco). Conversei, muito brevemente, com todos eles, e, curiosamente, falámos menos sobre comida e mais sobre formas de olhar para a vida.
(Foto cortesia da FOX)
O trabalho já foi publicado na Fugas e pode ser lido aqui e aqui. Mas como não consegui aproveitar na totalidade a entrevista com Aduriz, publico-a no blogue na íntegra. Como disse, é reveladora da forma como Aduriz encara a vida – e isso é importante em qualquer profissão, incluindo a de chefe. Para quem tem demasiada pressa em chegar ao sucesso, para quem desanima ao primeiro obstáculo, esta é uma entrevista que vale a pena ler.
Há uma pressão muito grande para os chefs serem criativos e apresentarem sempre novas ideias. Isto é bom ou é mau?
Como é viver? É uma coisa muito difícil ou é uma coisa fácil? Depende de como te posicionas perante a vida. A vida está cheia de momentos de conflito, de tensão. Não nos preparam para os momentos difíceis. Ninguém está preparado para as grandes crises, profissionais, emocionais. Penso sempre na minha mãe, que tem 86 anos. A minha mãe viveu a Guerra Civil Espanhola. Quem preparou a geração dela para essa guerra? Dito isto, aquilo que a minha família viveu foi, em alguns casos, tão dramático, que nos dá uma atitude perante a vida. Eu liberto-me da pressão fazendo duas coisas. Primeiro, reflectindo sobre porque faço o que faço. Dois motivos: o primeiro é que o Mugaritz pode fazê-lo. Se as pessoas que podem fazer as coisas não as fazem, quem queremos que as faça? Se aquele que pode mudar o mundo não o faz à sua escala, pequena ou grande, quem queremos que o faça? Segundo motivo: relaciono-me com a criatividade não sabendo para onde vou, mas sabendo onde não quero estar. E não quero estar no mundo pré-estabelecido, sem consciência crítica, sem questionar as coisas. A criatividade não tem que ser sempre disruptiva.
A criatividade pode ser uma mudança minúscula. Honesta e responsável. Não tem que ser mudar tudo. É um processo de reflexão e de consciência crítica. No meu olhar integro a criatividade. E a pressão somos nós que a colocamos. A outra coisa que é muito importante é que na minha forma de estar no mundo faço o que posso, o melhor que posso. A lista da revista Restaurant (dos Melhores Restaurantes do Mundo): nos dois últimos anos baixámos de lugar. Qual é o problema? Faço o melhor que posso. Se vem gente com mais talento, então vem gente com mais talento. Vai sempre haver gente com mais talento que tu. Vou pôr-me a chorar? Aproveita o que tens e não chores pelo que não tens. Isso retira-te muita pressão.
Há algo que faz com que algumas pessoas sejam mais criativas?
Trabalho com muitos neurocientistas, há muitos anos. Analisamos as emoções dos nossos clientes através dos emails que nos mandam. Mas para mim o mais importante é o que é Mugaritz e a cozinha de Mugaritz. É um ecossistema. Quando eu trabalhava no elBulli estava a acontecer a guerra dos Balcãs. Eu trabalhava na cozinha e via as notícias, Bósnia, Croácia, Sérvia, terrível. Se te recordas, a guerra tinha um grande impacto porque era na Europa, e eram pessoas como nós. E de que é que te apercebes? As pessoas diziam ´é incrível, matam-se entre vizinhos, e com ódio’. E eu pensei ‘o contexto faz com que tu, que eras uma pessoa normal, te tornes uma pessoa monstruosa”. Se o contexto faz isso, pode também fazer com que sejas uma pessoa boa. Todos temos tudo dentro. Eu sou um monstro, um assassino cruel, mas posso ser uma pessoa criativa, delicada, sensível. Como o fazes? Há um conceito que é ‘sou assim…”. Não, não és, tu fazes.
Queres ser uma pessoa criativa? Age como se fosses criativo, e o cérebro entra nas dinâmicas da criatividade. Sou um tipo rude, não sou sensível, isso é coisa de mulheres. Eu, no Mugaritz, torno os meus cozinheiros sensíveis. Como? Ajam como se fossem sensível. Engana-te a ti mesmo. E o que acontece? Acabas projectando uma imagem que talvez não seja a que tu consideras que tens de ti próprio. Mas no fundo não somos aquilo que acreditamos ser, mas o que os outros vêem em nós. Os hábitos instalam-se. Podes ser mais criativo, desenvolver uma consciência mais crítica, ser mais sensível, uma pessoa curiosa, tudo isso se pode desenvolver.
E como faz para olhar para um prato que criou e dizer ‘isto é honesto, não é pretensioso, é verdadeiro’?
Há uma parte que é o racional. Nós somos memória, tudo o que vives com consciência, registas. Um cozinheiro é memória, um cliente é memória. Como sei que uma coisa é melhor que outra? Porque comi muito e sei que na minha escala de valores esta é melhor. Quando fazes criatividade, o que fazes é que pensas no que é e no que isso vai representar. Há uma parte que é racional e outra que é intuitiva. No meu caso está no carácter. As pessoas do Mediterrânio são muito luminosas, exteriorizam muito. O elBulli era muita festa, muita loucura. Eu venho de uma cultura muito mais melancólica, muito mais do mundo do fado, mais introspectiva, venho de um céu mais cinzento.
Gosto da contenção, e isso reflecte-se na cozinha. Se posso fazer uma coisa com três ingredientes, é melhor do que fazê-la com seis. Se tens consciência crítica, estás sempre insatisfeita com o que fazes. O que nós fazemos são coisas de que gosto muito, dá-me um golpe de euforia, mas passam as semanas e começo a gostar menos. Mas temos que viver com isso, senão não faziamos nada.
É sempre mais crítico do que os clientes?
Há um perfil de cliente que é muito crítico em relação aos outros, mas não com ele próprio. Estou convencido disso. Quando alguém me faz uma crítica, eu tento entender o seu ponto de vista. E se alguém disser ‘não gosto da cozinha do Mugaritz’ porque é muito louca e está na lua e não na terra, penso ‘ah, não é uma crítica, é um elogio’. Quando alguém faz uma crítica mais incisiva, dolorosa até, eu tento entender o que se passou com essa pessoa, e às vezes descubro nas páginas web que essa pessoa que diz que no Mugaritz a comida não tem sabor gosta é de restaurantes de hambúrgueres. É pôr alguém que gosta de música heavy a fazer uma crítica de um festival de música clássica. Na gastronomia toda a gente pode opinar, mas há um universo de matizes. Um perito em tortillas de batata não pode ser júri num concurso de sushi, porque não tem referências. Na gastronomia toda a gente dá opinião sobre tudo.
A essência da criatividade é muito diferente de chefe para chefe?
No Mugaritz, sim, porque o ponto de partida é bastante honesto. Explico: somos todos esponjas, somos muito influenciados pelas coisas de que gostamos. É muito inspirador encontrar algo que gostarias de vir a ser. Mas para mim há dois tipos de cozinheiros criativos no mundo: o que põe uma antena parabólica, capta tendências e as adapta à sua personalidade. Esse faz uma colagem de coisas de terceiros. No Mugartiz partimos do zero para ver o que somos capazes de fazer novo. Isto é muito mais difícil, doloroso, e ingrato. Podemos investir 15 mil horas e de repente fazemos cinco coisas interessantes, que numa semana já foram copiadas por um desses da parabólica, que apanha apenas o destilado, a ideia, e faz a mesma coisa.
Tens que ter uma atitude perante a vida. Pensei sempre que o tempo fará justiça. O dia-a-dia poderia ser desalentador e frustrante: porque trabalho tanto para fazer uma coisa nova, quando é muito mais valorizado aquele que se limita a copiar? Saber captar o melhor dos outros é uma habilidade. Mas o nosso caminho é muito mais complicado e difícil. Mugaritz tem 16 anos, e em 16 anos de história eu posso fazer uma retrospectiva de todas as coisas que acreditamos que foram importantes e que poderão influenciar o mundo da cozinha. Isso não acontece quando se tem um ano, ou dois ou três, mas quando se tem 16, ou 20 ou 30, podemos olhar para tudo, e ver ‘o que se está a fazer hoje noutros pontos do mundo começou com o que fizemos aqui’.”
Muito boa entrevista. Gostei mesmo de ler.