Um almoço desenhado ou as Garfadas Ilustradas

Este post resulta de um exercício de memória. O que fica de um encontro?

2- maisolhosquebarriga

A história começa com um email que a Ana Gil me enviou falando-me dos seus desenhos de comida, registos visuais das refeições que vai fazendo em lugares diferentes. Como não sei desenhar nem um traço, fiquei curiosa – fico sempre curiosa quando alguém utiliza uma linguagem diferente para falar da mesma coisa que eu. Pergunto-me como olham, por onde começam a desenhar, que informação é que cada um dos nossos cérebros selecciona perante o mesmo prato de comida?

Encontrámo-nos na Lx Factory e decidimos almoçar no Malaca Too. Uma mesa pequena, ao pé da janela, a Ana a perguntar-me se me incomodava que ela usasse os materiais de desenho. Não, claro que não, não era para isso que estávamos ali? Há quem fique incomodado, disse ela. E há também que não resista a espreitar para ver o resultado, e isso aproxima um desenhador das outras pessoas.

1- maisolhosquebarriga

Desenhar é a melhor desculpa para quase tudo, disse a Ana citando a minha amiga Susana Oliveira, que não chegou a ser mas podia ter sido professora dela (e depois, e isto já é batota minha no jogo da memória, mandou-me a citação por escrito: desenhar é “a desculpa perfeita para se ficar a demorar nos lugares, para esperar a conta, para se alhear, para fingir que não se está sozinho, para se sentar no chão, para parecer uma pessoa interessante, para riscar as toalhas, para atrasar os outros e para se ser desculpado de tudo isso”.

A conversa? Passou já o tempo suficiente para que os filtros fizessem o seu trabalho. Lembro-me de falarmos sobre o tempo que a Ana passou no Brasil a estagiar como arquitecta, e das dificuldades que enfrentou, e depois a minha memória salta para uma imagem (construída por mim) dela a percorrer as ruas e a desenhar, a desenhar tudo, sobretudo as frutas e os legumes de nomes estranhos nos mercados. E tenho essa imagem porque ela contou-me que foi assim o último mês que passou em São Paulo e porque me mostrou esses primeiros desenhos, o princípio de um gesto que se tornaria quase uma obsessão.

Lembro-me da sopa que chegou para mim (char siew mein, sopa de massa com porco assado, rebentos de soja e bak choi), com as fatias finas de carne sobre o caldo com vários legumes, e de ficar a pensar como é que ela ia desenhar aquilo. Recordamos melhor o que comemos se nos demorarmos a olhar para podermos desenhar, disse a Ana. E pensámos nas fotos, rápidas, que tiramos quase sem olhar porque sabemos que mais tarde teremos tempo para elas. E se calhar é porque não desenhamos que às vezes não nos lembramos tão bem do que comemos. Podia ter acontecido nesse dia no Malaca Too, distraída com a conversa, mas acabei por reparar mais na minha sopa para perceber como é que a Ana a ia desenhando. E reparei que ela fazia algum esforço para continuar concentrada na nossa conversa enquanto desenhava. A atenção dividida. E a comida (dela) a arrefecer.

3- maisolhosquebarriga

O que é que a memória reteve? Pedimos pauzinhos, e conversámos sobre a minha falta de jeito para o desenho, sobre professoras que não ajudaram, sobre os planos da Ana para o futuro. No caderno dela foi aparecendo um copo (o meu), e as fatias finas de carne sobre os legumes na tijela da sopa. E, no final, o arroz doce negro (arroz preto com açúcar de palmeira e leite de coco). Se calhar – e penso nisso só agora – recordo melhor esse arroz, até o sabor desse arroz, porque fiquei a pensar como se desenha arroz. Parece simples, são pequeninos grãos que se somam uns aos outros, não pode ser assim tão complicado, pensei, e foi então que, entusiasmada, dei o passo fatal. Sim, claro, voltaremos a encontrar-nos para almoçar. E, da próxima vez, desenho eu. A Ana terá sorrido para dentro, e não hesitou – sim, aceitava o desafio. A ela cabia-lhe escrever. Fácil, não é?

Ficámos assim. Eu publicaria este post, e depois já não haveria recuo. Da próxima vez desenho eu? Foi mesmo isto que aconteceu? Ou será que a memória me atraiçoou? Já não tenho a certeza de nada – excepto do sabor do arroz preto.

Para conhecer melhor os desenhos de Ana Gil: http://agilemdesenhos.blogspot.pt/

6 comentários a Um almoço desenhado ou as Garfadas Ilustradas

  1. Boa tarde,
    Agradecíamos muito se pudessem divulgar na vossa página este evento de apoio à pequena e média produção nacional.
    Nunca, como agora, foi tão importante e necessário “puxar” pelo que é nosso:
    Um Mercado Gourmet e Português

    Azeite – Patês – Queijos – Charcutaria – Vinhos e Licores – Chocolate – Compotas – Mel
    Ervas aromáticas – Biológico – Conservas – Condimentos – Pão – Doçaria – Infusões

    O Campo Pequeno vai recriar o espírito dos mercados antigos portugueses onde se podia encontrar um pouco de tudo, adaptando-o à temática Gourmet, entre os dias 8 e 10 de Março.
    Vamos voltar a reunir no mesmo espaço, o que de melhor se faz em Portugal nesta área. Todos os produtos presentes, são de origem exclusivamente portuguesa ou manufacturados no nosso país.

    Objectivos:
    – Contribuir para a divulgação, estimulo e sustentabilidade de micro actividades produtivas nacionais, de elevadíssima qualidade, que pela sua reduzida dimensão dificilmente chegam ao conhecimento do grande público. Muitas destas actividades são construídas com admirável persistência, paixão e engenho, nas mais variadas vertentes, constituindo notáveis exemplos de inovação e criatividade nacionais.
    – Sensibilizar o público para a aquisição de produtos portugueses, estimulando actividades da nossa micro economia, a preços justos e vantajosos.

    Entrada Gratuita

    Data: 8, 9 e 10 de Março (6.ª-feira a Domingo)
    Horário: 11h00 às 21h00
    Local: Arena do Campo Pequeno (espaço coberto)
    Adira ao evento no Facebook:
    http://www.facebook.com/events/497287550321649/

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  2. Muito giro, eu também admiro imenso quem faz estas coisas. Mas não chego a ter competência para o desafio a que te propuseste. É que não sai mesmo nada… Estou curiosa de ver o que resulta. :-)

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