Ménage à trois num jantar em casa da Maria

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Quando a María Ulecia decide fazer um jantar na sua casa na Graça (micasaenlisboa, Calçada do Monte nº 49) ou cozinha ela ou convida os seus cozinheiros favoritos. Foi o que fez recentemente, no primeiro de uma série de jantares que vai lançar, em princípio uma vez por mês. E começou com uma Ménage à trois (foi ela que assim o baptizou: Hugo Brito, do Boi Cavalo, Tiago Feio, do Leopold, e David Eyguesier, de Os Gazeteiros.
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Mesa posta na varanda com vista para o Jardim da Cerca da Graça, a igreja em cima, o Castelo de São Jorge ao fundo, e os convidados foram-se sentando enquanto a luz do dia ia, lentamente, desaparecendo. Na cozinha, os três chefes e respectivos ajudantes começavam a preparar os pratos.

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A ideia era servirem toda a refeição sem dizer qual era o autor de que prato. Cabia-nos a nós provar que conheciamos suficientemente a cozinha que cada um faz para adivinhar. Tarefa que se revelou mais difícil do que parecia. Apesar de terem estilos diferentes são três cozinheiros com características comuns Tiago e David talvez mais próximos, Hugo um pouco mais rock ‘n roll – e por isso mesmo Maria lembrou-se deles (além do facto, explicou ela, de os três restaurantes formarem uma espécie de triângulo em redor da casa dela).

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Houve muitas verduras, muitas ervas, comida fresca, como pedia a noite de Verão (que foi arrefecendo, obrigando alguns dos convidados a irem buscar mantinhas) e vinhos naturais. A primeira coisa que chegou à mesa deu logo o tom do que seria o jantar: conjugações inesperadas de produtos e sabores com resultados surpreendemente bons. Foi um pão de milho torrado com ragu de berbigão e ostras pera nashi e rebentos de alho, um prato de Hugo Brito, como viriamos a confirmar mais tarde.

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O bonito prato com três tomates de diferentes cores e sabores com gel de azeite, alga de kombu em pickle e manjericão tinha toda a cara de ser do Tiago Feio (e era). Seguiu-se a entrada em cena de David com um prato muito verde: salteado de legumes com uma emulsão de azeda a “agarrar” o conjunto de folhas variadas, chouriço seco e trigo sarraceno.

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Criativos, arriscados e bem conseguidos, os três pratos de peixe. No primeiro, Hugo optou pelo contraste de sabores da anchova marinada sobre ameixa grelhada e molho de lagostim. David escolheu a cavala, para a trabalhar com abacate, pepino, beldroegas, pó de atum seco e sésamo preto, com os sabores mais fortes do peixe e do abacate a serem equilibrados pelos outros elementos. Veio acompanhado por uma menus consensual “limonada de algas”.

E, por fim, o Tiago fez um prato esteticamente minimalista (não podemos esquecer que a sua formação é em arquitectura), muito bonito e de sabores muito interessantes: enxaréu dos Açores marinado em saké com areia de boletos e molho feito com a cabeça e espinhas do enxaréu (na foto em cima).

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Depois, Hugo não resistiu e avançou para a grelha, despertando o entusiasmo dos mais carnívoros entre os presentes. Um terraço como o de Maria pede grelhados, argumentou, e temos que reconhecer que o cheiro a carne grelhada criou um ambiente diferente. Para a acompanhar vieram abóbora hokaido grelhada com escabeche de coco e coentros, puré de feijoca e beldroegas.

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Terminámos com duas óptimas sobremesas de Ana Raminhos, chefe pasteleira dos Gazeteiros, uma de sorvete de pepino e outra de granizado de cerejas com gin.

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Agora é só ficar atento ao facebook da micasaenliboa e ver quem é que Maria convida para os próximos jantares. A sua casa quer ser (e já é) um espaço de encontros. Nada melhor do que fazê-los em volta de boa comida e descobertas que nos deixam com vontade de voltar – e, já agora, de ir visitar estes chefs aos seus restaurantes que, como os próprios lembravam no final, não estão no Chiado. É sempre bom voltar a lembrar que existe mais cidade.

Um jantar sobre o túmulo de Angela Carter

Um pai que perde a filha num jogo de cartas, uma adolescente casada com um marquês sádico, um gato que é mais esperto do que os humanos, perversões, cadáveres escondidos em quartos fechados, uma vampira que se alimenta do sangue de jovens rapazes – os contos da escritora britânica Angela Carter (1940-1992) têm material suficiente para alimentar a imaginação de quem os lê. Será que alimentam também os estômagos?
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Os alunos do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE) tiveram como trabalho final transformar os contos de The Bloody Chamber and other stories numa refeição – o resultado será apresentado num jantar no dia 23 (terça-feira), no restaurante da escola.

O projecto está integrado nos encontros culturais e académicos Receiving/Perceiving English Literature (que envolvem também a Universidade de Lisboa através das Faculdades de Letras e Arquitectura e ainda a Universidade da Beira Interior, cujos alunos criaram aplicações móveis a partir do mesmo tema), que abordam os contos de Angela Carter de diferentes formas – incluindo a gastronómica, na disciplina de Food Design dada pelo professor Ricardo Bonacho. O jantar acontece no final do primeiro de dois dias de debates sobre a autora na Faculdade de Letras (mais informação aqui).

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Foto 1 – Coxinhas de… gato ou lebre?

A proposta de trabalhar em torno de Angela Carter (em anos anteriores trabalharam William Blake e Shakespeare, no próximo ano será a vez de Jane Austen) surgiu da professora Maria José Pires, coordenadora do mestrado e conhecedora da obra da autora britânica. Os alunos leram os contos e pensaram a melhor forma de tornar comestível o universo gótico inspirado em contos tradicionais de Carter.

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Foto 2 – Alcachofra recheada com tártaro de atum.

O que poderão então comer os que se aventurarem no jantar de dia 23? Vão encontrar no restaurante da ESHTE um ambiente que os levará rapidamente para muito longe dali e inquietantemente perto de Angela Carter. Na mesa encontrarão ossos – os mesmos ossos que a vampira de The Lady of the House of Love enterra no jardim depois de se alimentar das suas vítimas – com cartas de jogar feitas a partir de sangue e beterraba.

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Foto 3 – Cabidela

O primeiro prato tem como mote o conto Puss-in-Boots e brinca com a ideia de servir gato por lebre. Concebido por dois alunos brasileiros, apresenta duas clássicas coxinhas de galinha, uma de coelho e outra de legumes (foto 2). Novo prato e entramos no Bloody Chamber, o conto principal do livroatravés de uma alcachofra recheada com tártaro de atum encimado por um gema curada em teriaky – a carne do atum a ser usada aqui como metáfora da forma como se sente a jovem casada com o marquês sádico.

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Foto 4 – Primeira sobremesa, Capuchinho Vermelho

E, depois de uma surpresa que não será aqui revelada (sim, envolve uma cabeça de porco e rosas), o prato mais tétrico de todo o jantar leva-nos a comer uma “cabidela desconstruída” em cima da lápide funerária de Angela Carter. Se sobrevivermos à experiência (é difícil ficar indiferente), chegamos enfim às sobremesas nas quais encontramos um Capuchinho Vermelho (The Warewolf)  armado com uma faca e um monstro que personifica a floresta e transforma raparigas em pássaros (do conto The Erl-King).

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Foto 5 – Segunda Sobremesa, o monstro da floresta

A última sobremesa (em baixo) é um complicado exercício que concentra num único prato referências de todos os contos de Angela Carter, das cartas de jogar às chaves que fecham os quartos mais sinistros. Os alunos chamaram-lhe Suspensão da Realidade. E é tudo comestível, claro.

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Só há 25 lugares (esgotados) porque foi há 25 anos que morreu Angela Carter (cuja passagem por Portugal, há precisamente 40 anos, em Agosto de 1977, será também recordada). Jantemos então sobre o seu túmulo.

A saída da Ana Moura da Cave 23 e os debates de que precisamos

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o Instagram da Ana Moura. De repente, percebi que a chefe da Cave 23 estava a publicar o que parecia ser uma série com os seus pratos mais emblemáticos, uma espécie de balanço do seu trabalho. Pouco depois, num telefonema, ela própria explicou o que se passava: ia sair da Cave 23, onde entrou 2015, e, sim, estava a passar em revista o que tinha sido o seu percurso neste restaurante, o primeiro em que liderou uma cozinha em nome próprio.

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Nessa altura, a Ana leu-me o texto que pouco depois enviou por email explicando as razões da sua decisão. Ainda quis voltar à Cave 23 antes da saída dela, mas, infelizmente, não consegui. Fiquei por isso com a memória de duas refeições muito boas e muito interessantes que ali comi. E fico à espera, com curiosidade, para ver o caminho que a Ana vai seguir – e que, espero sinceramente, continue a passar por Portugal.

Uma das coisas que me despertou a atenção foi o facto de a Ana partilhar connosco, nesses posts do Instagram, o pensamento que a levou a criar cada um dos pratos.

Por exemplo, o Tutti Frutti da imagem em cima, vinha acompanhado por esta legenda: “Ananás, limão, açaí, laranja, toranja, gengibre, mirim, sabugueiro, cristal de limão, funcho, magnericão, hortelã. Uma imagem que nos transmita a parte mais doce da nossa cidade, possivelmente todas aquelas montras das pastelarias lisboetas cheias de cor e de sabor. Cada um dos elementos expostos na vitrine formam um precioso mosaico de cor e de texturas. Transmitir essa sensação numa sobremesa foi o objectivo, até que surgiu o conceito Tutti Frutti, aparentemente muito doce, mas com uma grande gama de ácidos, sabores e texturas.”

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Legenda: Ouriço, crista de galo, tamarindo, abóbora, anardana (sementes secas de romã), milho, sewai (massa de arroz), iogurte, lactose, sésamo preto, feno-grego, flocos de tamarindo. Rota das ìndias como ponto de partida leva à busca de produtos muito usados na Índia e ao mesmo tempo em Portugal mas muitas vezes tratados de forma muito diferente.” Entre as coisas que quis trabalhar aqui, explica ainda na continuação da legenda, estão os molhos: “Molhos como ponto de partida, busca do prazer a partir de 4 molhos num mesmo prato.”

Fica aqui em baixo o texto em que a Ana explica as razões da saída e que é revelador do que são algumas das preocupações de quem tenta fazer uma cozinha diferente hoje em Portugal. Todos sabemos que não é fácil. Mas acredito que é muito importante que existam condições para que se continue a fazer um trabalho mais arriscado. Será isso compatível com um negócio sustentável? A discussão vale a pena e deve acontecer. Se calhar, o simpósio que o festival Sangue na Guelra está a organizar no dia 5 de Abril, em Lisboa (no Hub Criativo do Beato) pode ser um ponto de partida para que se comece a discutir estas coisas cada vez mais abertamente.

“Uma saída do Cave 23

Quero seguir um caminho de excelência próprio, tenho um ponto de vista muito concreto e a disciplina é muito importante para conseguir alcançar esse objectivo.

Não se trata de atender muita gente a um preço baixo, nem de atender pouca gente a um preço caro.

Tentamos ter um negócio sustentável e criar conteúdo com valor, tanto em cozinha como em sala.

Nos últimos tempos, a disciplina foi a nossa maior ferramenta de trabalho e o que nos deu mais resultado.

Concentramo-nos na cozinha para que as elaborações sejam o mais perfeitas possível.

A nossa cozinha requer muitas horas de preparação e na hora de executar necessitamos tempo, trabalho e paixão.

Esta nossa forma de pensar é a que quero aplicar em qualquer outro restaurante onde esteja no futuro. Ter disciplina para conseguir a satisfação plena do cliente, porque é para isso que trabalhamos.

Queremos que o cliente pague o valor justo. Nem mais, nem menos.

Uma experiência de um restaurante não é um produto de fábrica. Acredito que cada qual deve fazer diferente, as cozinhas não podem tender para a estandardização.

Este é o meu discurso e estou a sentir que quem está no mesmo projecto não me acompanha em idêntica forma de pensar.

Agora continua o sonho de um dia abrir o meu restaurante e entretanto quero continuar a aprender com quem sabe.

A disciplina foi o que me fez ver que é melhor uma saída, do que viver num ambiente onde não me entendam. Não desisti, só quero é lutar por aquilo em que acredito.

Estou contente com a nossa cozinha, que quero que seja sincera, com uma equilibrada vertente económica e criativa. Gosto de sentir que somos corretos com os clientes.”

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Legenda: “Cordeiro, pimenta-rosa, pimenta da Jamaica, pimenta preta, aji, goiabadam ervilha, papaia, foie, folhas de Primavera. Um produto, três elaborações: consomé frio de cordeiro e pimenta da Jamaica, glacé de cordeiro e ‘jarrete’ de cordeiro.” Neste prato, entre outras coisas, Ana quis explorar os picantes para “fazer elaborações diferentes a partir deles” e, por outro lado, “não perder pequenos recursos da gastronomia clássica, muitas vezes já pouco usados”, explorando as potencialidades de glacés, consomés e molhos.”

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Legenda: “Pescada, spirulina, puri, poejo, folhas de caril, kashmiri, óleo de coco, manga, lima. Tradição como ferramenta de trabalho, acreditar nas elaborações próprias de receitas tradicionais para surpreender e conseguir altas concentrações de sabores e texturas.” E ainda: “Confeccionar pratos com muitos elementos em que estes poderiam ser por si só o argumento de um prato, busca do prazer puro, molhos sobre molhos, guisados sobre guisados, sabor com sabor, a nossa obsessão que o prato seja a história interminável.”

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Legenda: Gema de ovo, boletos edulis, laranja, foie, galinha, kuzu, sichuan, amêndoa. Um prato que nos leva a um classicismo ocidental perfeito e ao mesmo tempo nos lança directamente para países orientais num conjunto de novas técnicas num só prato.”

Estes textos e imagens, abrindo-nos, de forma estimulanda, a porta do processo criativo na cozinha, deixaram-me com pena de não ter voltado uma última vez ao Cave 23 da Ana e com muita curiosidade pelos passos que dará a seguir. Ficamos à espera de (boas) notícias.

Miguel Pires no Boi-Cavalo: quando o crítico faz o jantar

Só não tinham reparado os muito distraídos: o Miguel Pires (do blogue Mesa Marcada) andava há que tempos a insinuar que queria fazer um jantar à séria, num restaurante. Todos os que o seguem no Instagram tinham percebido a mensagem que vinha sob a forma de (cada vez mais) fotos e, mais recentemente, vídeos a provar as suas qualidades de cozinheiro.

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Ele diz que as doses que vemos nas fotos são só para ficar bonitinho e que, na realidade, ele depois enche mais o prato para o comer, mas não sei se acreditamos. Bom, o facto é que as fotos fazem sucesso e, como ele as identifica como Home Lisboa, houve já quem lhe perguntasse onde ficava esse restaurante que ele tanto frequentava.

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Para desfazer dúvidas a quem as pudesse ter, na semana passada o Miguel cumpriu as ameaças e passou à acção. Tudo indica que conseguiu convencer o Hugo Brito, do Boi-Cavalo, em Alfama, a deixá-lo entrar na cozinha e encher-lhe os tachos e panelas com as suas ideias. O Hugo, que gosta de abrir o Boi-Cavalo a coisas diferentes, achou graça à provocação e, com a garantia dos vinhos da Casa da Passarela e do Joaquim Arnaut, lá se juntaram alguns incautos para ver o que daqui saía. Enfim, casa cheia para perceber se o crítico sabia cozinhar.

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Como se vê na foto em cima, o Hugo Brito trabalhou. E, como se vê na foto em baixo, o Miguel Pires supervisionou.

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Mas vamos lá falar de comida, que é o que interessa. Já se sabe que, para além dos empratamentos de influência nórdica, o Miguel gosta mesmo é de bons ingredientes e de explorar algumas técnicas que tem andado a aperfeiçoar. Os pratos não foram identificados como sendo de um ou do outro e tudo surgiu como um harmonioso dueto. Primeiro veio carapau seco com fígados e pickles de maçã e pepino (na foto lá mais acima) e, ao mesmo tempo, berbigão de Aveiro, brocollini e tinta de choco, ambos acompanhados por um Casa da Passarela Encruzado 2011, do Dão. Foi bom terem vindo os dois, porque se o carapau era, talvez, um pouco seco demais, o berbigão era de lamber a taça.

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Como isto não era para principiantes, Miguel e Hugo atacaram em seguida com um fígado de tamboril com salada de ervas, que veio com o Fugitivo 2015 (gosto do nome), também da Casa da Passarela. Depois veio o grão – aqui baptizado como “le chic c’est freak” – com caldo de pezinhos de vaca  e um molho de limão concentrado cuja confecção o Miguel já tinha amplamente partilhado no Instagram. E aí, no capítulo dos vinhos, passámos para um Gilda 2015, de Tiago Teles, Bairrada.

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E se os mais sensíveis achavam que tinham sobrevivido com distinção ao fígado de ramboril, eis que os dois cozinheiros avançam com um prato de língua de vitela com puré de couve-flor, homenagem (digo eu) a quem teve avós que cozinhavam língua maravilhosamente, como foi o meu caso – “sim, e é para comer tudo”, avisava o próprio nome do prato, que se fez acompanhar pelo Origens 2015 de Joaquim Arnaut. Por fim, pão de trigo barbela da padaria Gleba e um extraordináro e potente queijo de S. Jorge – foi muito difícil parar de comer nesta parte. A sobremesa era de morangos verdes, iogurte e espuminha de batatinha e tudo terminou regado com o espumante do Joaquim Arnaut.

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Estava muito bom, sim senhor. O crítico arriscou (fígados, língua, espuminha de batatinha na sobremesa, então Miguel!?) mas safou-se e o Boi-Cavalo saiu a ganhar com esta aventura arriscada. Mas, honestidade acima de tudo: afinal, quem cozinhou foi… ela (são eles que o dizem). Quanto ao Miguel, garante que não vai trocar a escrita pela cozinha e não está a pensar abrir um restaurante. Será, então, que vai continuar a cozinhar só para o Instagram?

Às compras no Mercado Gourmet

Passei este fim-de-semana pelo Mercado Gourmet do Campo Pequeno e trouxe várias coisas boas para casa. Assim, aproveitando o espírito do “lado bom de Portugal”, a edição, que saiu hoje, do 27º aniversário do PÚBLICO, com o Miguel Esteves Cardoso como director por um dia, partilho aqui algumas das compras que fiz entre óptimas surpresas e confirmações.

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É uma vergonha, mas, apesar de conhecer a Ana Paula, não conhecia os produtos que ela faz com a mãe, Maria da Conceição (distracção minha e falta de comparência nos mercados onde elas estão todos os fins-de-semana), uma senhora extraordinária que já passou os 85 anos e que desfia à mão toda a carne para os escabeches, que são cozinhados em pequenos tachos pela Ana Paula em casa. Tudo artesanal e feito com grande cuidado e atenção.

Comprei o Coelho Vilão e fiquei fã. Mãe e filha começaram com os doces, mas entretanto lançaram-se a fazer escabeches e com enorme, e merecido, sucesso. Trouxe para casa e, com o pão da padaria Gleba (que também estava no mercado, com os pães a esgotarem a grande velocidade), o Coelho Vilão foi o jantar e não sobrou nem um pedaço.

Mãe e filha vendem também codorniz de escabeche; perdiz de escabeche; cogumelos de conserva; curd de limão e outros produtos, que podem ser encomendados em docesdapaulinha960@gmail.com ou pelo telefone 919733456. Outra hipótese é acompanhar a página do Facebook Doces da Paulinha e ver em que mercado estão em cada fim-de-semana (geralmente é ali pelo Príncipe Real).

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Outro projecto muito interessante, e bem mais recente, é o de José Moura Lupi, que decidiu produzir açafrão no Alentejo. A foto em cima mostra as latinhas de açafrão, que custam 20 euros cada, porque, explicou José, são precisas 170 plantas para reunir um grama de açafrão. Não é um trabalho fácil, mas José quis apostar em algo que fosse diferente e, garante, basta usar uma quantidade muito pequena, desfeita em água quente, para se obter cor e sabor num cozinhado. Ali, ao lado das latinhas, está uma planta de açafrão, para termos uma ideia do aspecto que tem. O projecto chama-se Açafrão da Várzea e está localizado em Portalegre.

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Não cheguei a comprar o açafrão, mas comprei dois patês na mesma banca onde estava o José Lupi. São da Patê+ e chamaram-me a atenção pelos sabores diferentes do habitual. Os que comprei são de alcachofra – a sugestão é que juntemos uma colher a uma massa, como se fosse pesto, com azeite. O outro sabor é ainda mais supreendente: amêijoas com coentros.

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Já conhecia a uvada D’Arada desde que uns amigos a trouxeram pela primeira vez da Mercearia das Flores, no Porto, com um queijo que parecia ter sido feito para ela. E, como estava no mercado, não resisti a trazer uma.

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E, para terminar, comprei o chá Milagrosa, dos Aromas d’Oureana, de Ourém. Num ano em que tanto se fala – e mais se falará, de Fátima – os Aromas decidiram fazer um chá milagroso: rosas, erva-príncipe e hibisco. Estavam a dá-lo a provar quando passei pela banca e o aroma foi… decisivo.

Café Garrett com Rodrigo Castelo, José Júlio Vintém e cozido de grão

O Leopoldo tinha avisado. “Reservem primeiro e pensem depois”. E, pronto, é isso: tinha toda a razão. Estou a falar do jantar (já esgotado) do próximo dia 31 no Café Garrett com José Júlio Vintém e vinhos do Esporão. Não podia ser melhor a escolha – Vintém vai trazer “o seu Alentejo” (e que, como se sabe, é um extraordinário Alentejo) ao restaurante do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

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Foto 1: Sopa de peixe do rio e ovas de barbo

O espaço é gerido por Leopoldo Garcia Calhau que, depois de ter feito sucesso com o Sociedade, na Parede, trocou esse projecto por este. Mas manteve o seu estilo de cozinha – alentejana mas não só, como ele diz. E como alguns se espantaram com a ideia de haver um restaurante, bem… chamemos-lhe “tendencialmente alentejano” entre as paredes do Teatro Nacional, Leopoldo não tem poupado esforços para provar que isso é não só possível como desejável.

Habituadas a que um espaço de restauração num teatro fosse para comer uma sanduíche ou um salgado antes do espectáculo, as pessoas demoraram algum tempo a entender a proposta de Leopoldo. Mas ele não se assustou. E não só manteve a ideia da cozinha alentejana como recuperou uma boa prática do Sociedade, convidando outros chefes para ali irem cozinhar. José Júlio Vintém é o próximo, mas nós estivemos no jantar anterior, com Rodrigo Castelo, da Taberna Ó Balcão, de Santarém, e foi uma experiência óptima – pela qualidade da comida e pela capacidade que Leopoldo e Rodrigo têm de criar um ambiente familiar, descontraído e de nos fazer sentir no átrio do D. Maria como se estivessemos em casa de amigos.

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Foto 2: Cornos e tentáculos (vazia de touro e lulas)

O jantar, que aconteceu no dia 10, começou com três entradas para comer à mão: o famoso croquete de rabo de boi com mostrarda que Rodrigo tem na sua Taberna; um pastel de jardineira de caracoleta, juntando o recheio de Rodrigo com o pastel de Leopoldo; e moreia de escabeche com ovas de lampreia. Excelente forma de começar uma refeição que foi sempre interessante e desafiadora nos produtos usados e nas formas de os trabalhar e – não vale a pena procurar uma maneira mais elaborada de dizer isto – muito boa.

Rio e Mar trouxe um picadinho de fataça e barriga de atum marinada, a que se seguiu a fantástica sopa de peixe do rio (achigã) com ovas de barbo. Bacalhau, grão e saramagos (uma planta silvestre) manteve o alto nível da refeição apesar de ser o prato menos surpreendente. Veio depois Cornos e Tentáculos, nome promissor para o casamento entre vazia de touro (carne muito usada por Rodrigo) e lulas, com batata doce. No menu, o prato seguinte era apresentado como … Mas o que veio foi… muito bom: bode velho capado, marinado e cozinhado muito lentamente, com puré de túberas. Por fim, feijão, javali e queijo de cabra.

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Foto 3: Feijão, javali e cabra

A sobremesa juntou os universos de Rodrigo e de Leopoldo, com o Celeste e a Joana, duas sobremesas, uma vinda do Ribatejo, sendo a outra o célebre pudim de noz, receita da mãe de Leopoldo.

Por tudo isto, e o mais que vai acontecer dia 31, é aconselhável estar atento ao Facebook do Café Garrett porque mais jantares destes virão. E, como avisa o Leopoldo, o melhor é reservar primeiro e pensar depois.

Já agora, outra notícia: o cozido de grão, que foi outro dos pratos-símbolo do Sociedade, voltou agora ao Café Garrett. O primeiro é já no domingo, dia 29, às 13h (15 euros por pessoa, sem bebidas).

Lisboa tem Muita Fruta. Vamos comê-la?

A ilustradora Cristina Sampaio chega à Cozinha Popular da Mouraria, em Lisboa, com um saco cheio de limões enormes. Outros vizinhos trouxeram laranjas. Cheira a fruta a ser cozida com açúcar.

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É domingo e dia de apresentação do projecto Muita Fruta, uma ideia de Adriana Freire, da Cozinha Popular, à qual se juntaram outros parceiros, como o Colégio F3 (Food, Farming and Forestry) da Universidade de Lisboa e a associação Locals Approach.

Vieram vizinhos, cúmplices e curiosos para ver o que é o Muita Fruta, esta ideia de recolher a fruta que existe na cidade e aproveitá-la. Tudo parte da preocupação em combater o desperdício. Adriana começou a reparar nas  árvores de fruto que existem nos espaços públicos de Lisboa mas, sobretudo, em pequenos quintais privados e na quantidade de fruta que se perde porque ninguém a apanha. Concorreu então ao programa Bip/Zip, da Câmara Municipal de Lisboa, com esta ideia e foi um dos projectos escolhidos para receber apoio.

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O primeiro passo será fazer um levantamento e mapeamento de todas as árvores que existe na zona da Mouraria (para já o objectivo é cobrir as freguesias de Santa Maria Maior, São Vicente e Arroios, e no futuro alargar ao resto da cidade). A informação será disponibilizada numa plataforma online interactiva.

O primeiro quintal a ser mapeado foi precisamente o de Cristina Sampaio, que para além do limoeiro tem um diospireiro que, na época certa, fica carregado de dióspiros. Não é fácil, diz Adriana (e Cristina confirma) apanhar e distribuir todos os frutos por amigos e conhecidos. Por isso, o Muita Fruta propõe-se reunir um grupo de voluntários interessados em ajudar os donos de árvores de fruto a tratar delas. Vai haver workshops práticos dados por Silvan, o responsável pela horta da Cozinha Popular, que começam já no dia 29 de Janeiro – o primeiro será para ensinar a podar, mas haverá outros com diferentes temas, um mais voltado para os citrinos, por exemplo, outro para o combate às pragas, etc. Estão abertas as inscrições para os workshops e para voluntários para o projecto.

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Os proprietários das árvores podem dar ou vender os frutos, ou trocá-los por um serviço de poda, e a Cozinha Popular está a criar uma Marca Social para comercializar o resultado da transformação. Quem esteve na apresentação já pôde levar para casa um frasco de polpada de laranja feita com laranjas, limões, cenouras, abóboras e açúcar e a respectiva receita.

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O projecto permite, por outro lado, que se vá conhecendo a história de Lisboa através das árvores. No encontro de domingo estava também Luís Ribeiro, do Instituto Superior Técnico, que referiu a importância de cruzar este trabalho com outro: a identificação dos pontos de água na cidade. Essa pesquisa que está já a ser feita em Alfama, localizando minas e nascentes, pode alargar-se à Mouraria, porque, disse, “há pontos de água abandonados, outros que desapareceram, mas alguns que ainda podem ser recuperados”. Existe, por exemplo, a hipótese da “reactivação de cisternas que podem ser usadas para recolha das águas da chuva”, aproveitando-as depois para a rega dos quintais. E assim, a pouco e pouco, árvore a árvore, quintal a quintal, Lisboa vai-se reencontrando com a sua natureza.

O Guia Michelin não tem sido injusto com Portugal, diz José Avillez

Hoje vão ser conhecidos os restaurantes que ganharão a primeira (e em alguns casos a segunda) estrela do Guia Michelin. O que é que isso representa para um restaurante foi a pergunta a que tentámos responder neste texto. Nele estão citadas algumas declarações de José Avillez (Belcanto, em Lisboa, duas estrelas), mas resolvi publicar aqui no blogue a conversa completa que tivemos há uns dias e na qual defende que, contrariamente ao que muita gente diz, até agora não havia muitos restaurantes em Portugal que merecessem a estrela. O Guia Michelin não tem sido injusto, afirma.

RG Rui Gaudencio - 10 Agosto 2016 - portugal, lisboa - Bairro do Avillez, novo espaco de restaurantes do chefe chef Jose Avillez (na foto)

Foto de Rui Gaudêncio

Qual a importância de ter uma estrela?

Financeiramente é importante. Cada vez mais as estrelas são um cartão-de-visita. De zero estrelas para uma o negócio cresce uns 40 % e de uma para duas cresce mais 20% mas acima de tudo ganha um estatuto diferente. Para a terceira, não sei, não tenho, mas dizem que é importante.

Toda a gente diz que não trabalha para as estrelas e muitos dizem que não querem estrelas. Eu não trabalho para as estrelas mas quero. Divirto-me muito mais no caminho que na chegada. O dia em que recebemos a notícia de que tínhamos a primeira estrela para mim não é um dia esfuziante, penso logo no que vem a seguir. Divirto-me muito mais a construir, a caminhar, do que a chegar. Talvez um dia mude isso, porque é um bocadinho cansativo, mas não sei.

Este ano dizem que há muitas novidades para Portugal. Achei que uma seria o Hans (Neuner, do Ocean) ganhar a terceira estrela, porque era muito merecida. Ia ficar muito feliz por ele, porque tenho muita estima por ele e para Portugal seria muito importante. Parece que não será porque, segundo disseram, a única terceira estrela será para Espanha.

Acho que vai haver muitas primeiras estrelas. Uma que se acontecer fico muito feliz pela pessoa que é, de quem gosto muito e que conheço desde os três anos: o Miguel Laffan (L’And Vineyards, Montemor), tenho uma amizade enorme por ele. Vai haver outros duas estrelas e é muito importante também para começarmos todos a elevar a fasquia. E vai-se ouvir dizer muita coisa, que este não merece e aquele merecia mais.

O que é que preciso fazer para conquistar a primeira estrela?

Eu sempre que abro um restaurante novo não consigo fazer pior do que já aprendi a fazer bem. Se hoje abrisse um Belcanto não faria os mesmos erros que fiz há cinco anos quando abrimos. Há alguns standarts quando se fala das estrelas, o tipo de serviço, o tipo de comida, o ter que ter trufas ou caviar. Mas de repente isso já era.

Ouvi alguns comentários com os quais não concordo e que dizem finalmente o guia este ano vai olhar para Portugal e já devia ter olhado há muito mais tempo, que tem sido muito injusto. E eu digo, mas quem é que vai ganhar? Garanto que não são restaurantes que têm dez anos, ou cinco ou seis. Ou seja, os que vão ganhar são mais recentes e que merecem pela consistência mesmo no curto espaço de tempo em que existem. Eles [os inspectores] não andaram cegos. Nós não temos de facto muitos restaurantes que se tenham mantido com uma grande qualidade durante muito tempo.

Quem vai ganhar? Não sei… o Henrique Sá Pessoa (Alma), o Alexandre Silva (Loco), o Pedro Pena Bastos (Esporão), o Tomo (Kanazawa), o Milton do Arola? Se calhar a segunda estrela para o João Rodrigues (Feitoria) e para o Yeatman. Os inspectores abriram os olhos? Não. Aconteceram coisas.

Mas hoje dá-se estrelas a restaurantes mais jovens. Há tempo para avaliar a consistência?

Mudou um bocadinho isso porque tudo está mais rápido no mundo. Porque é que eu ganho no Belcanto a primeira estrela ao fim de 10 meses? Porque já tinha dado provas no Tavares.

Vai haver sítios que as pessoas vão dizer não estava nada à espera. O Milton, posso dizer que é dos melhores cozinheiros que há em Portugal, trabalhou comigo uns anos e tenho a certeza que ao receber é merecido. É um trabalho que é dele, obviamente com o apoio do Arola, mas é um trabalho dele, de esforço e dedicação.

Senti sempre quando muita gente dizia que é uma injustiça e que devia haver muito mais estrelas em Portugal, eu não conseguia nomear mais do que um ou dois restaurantes.

Mesmo comparando com o que é estrelado nos outros países?

Eu aí só penso que os outros não deviam ter. Apanhei já noutros países restaurantes com estrelas Michelin mauzotes, mas também outros com um nível altissimo. Há três estrelas que são extraordinários, outros que são… porreiros. Se houvesse dez estrelas para dar seria mais fácil.

RG Rui Gaudencio - 18 Outubro 2016 - portugal, Lisboa - sub-chefe souschef sub-chef David Jesus (d) e chef Jose Avillez do restaurante Belcanto

Foto de Rui Gaudencio (Avillez com David Jesus, o sous-chef do Belcanto)

Como se passa da primeira para a segunda? O que é que fizeram e o que é que foi reconhecido?

Nós evoluímos muito para diminuir a margem de erro brutalmente, na melhoria das cozeduras, nos temperos, no controlo de produto. Criámos um sistema em que eu diria que uma noite que corra muito mal, não há nenhum cliente que note que correu mal. Há provas diárias de três pessoas, registo das provas, consistência, consistência.

Mas isso não é um trabalho invisível? Como é que os inspectores se apercebem?

Eu já conversei com alguns, eles sabem do que falam. Sabem a diferença de alguma coisa que é para encher o olho e o que é a consistência. Não consigo considerar um grande restaurante quando um dia faço uma grande refeição e na semana a seguir uma refeição má. Cozinhar para aquele cliente e aquele inspector não dá, tenho que cozinhar para toda a gente como se fosse a pessoa mais importante do mundo. Se não, vou estar sempre cheio de medo. Aquela pessoa que me entra pela porta e que pode não perceber nada de cozinha, vou dar 200% para se um dia falhar alguma coisa, conseguir ficar nos 180%.

Se agora o Belcanto perdesse uma estrela, e é daquelas coisas em que sou politicamente correcto e protejo-me dizendo ‘ah, nunca se sabe’ mas, confesso, se perdesse era uma surpresa gigantesca, porque sei do que a casa gasta, uma equipa que trabalha com muito rigor e dedicação, a margem de erro é mínima.

E a terceira estrela?

Acho que o negócio não aumenta, até traz algum tipo de clientes que vêm para gastar dinheiro e não é o cliente que gosta de comer. A terceira estrela é prestígio.

E não é um pouco o ‘e agora?’ Para onde vamos a partir daqui?

Eu tenho um bocadinho esse sentimento. Por isso preocupa-me. Não sei se alguma vez vamos ganhar a terceira. Mas se ganharmos, temos que tentar a “quarta”. Esta vida é sempre um exercício de tentarmos melhorar, temos sempre que nos reinventar e não pensar nas estrelas, nos 50 Best, muitas vezes são balões cheios de ar.

E o que pode levar um restaurante a perder a estrela?

Ao contrário do que toda a gente diz, não acho mais difícil manter do que ganhar. Porque, ao ganharmos já estamos naquele patamar, já sabemos o que é preciso para lá chegar. Ok, dá muito trabalho manter, mas não é o mais difícil. As pessoas muitas vezes vivem no desconhecimento do que é o nível de uma estrela, Portugal não tendo uma terceira estrela, não se sabe muito bem qual é o nível da terceira estrela.

Temos todas as condições, pelo crescimento turístico e pela visão de alguns empresários e chefs que investem nos restaurantes sem querer começar a ganhar dinheiro amanhã, temos toda a possibilidade de manter estas e vir a ganhar mais e brevemente termos um três estrelas e vários duas estrelas. Mas não foi isso que perguntou…

A pergunta era como se perde a estrela.

Ou com um grande azar, porque estamos a falar de duas, três inspecções e ter a bad day at the office três vezes só com grande azar ou um desleixo grande, falta de dinheiro, não conseguir manter a equipa. Imagine que de repente estou no Belcanto a comprar tudo o que há de melhor, com uma equipa de 20 e tal pessoas mais 10, 12 estagiários e tenho que reduzir 50% e comprar o lombo da Nova Zelândia mais barato. Assim é facílimo perder. Lembro-me de termos uma estrela no Tavares e ter ido lá um inspector e ter comido tudo mas ter deixado um pedaço de bacalhau. Fui perguntar se não estava bem e ele disse que a guarnição estava óptima, mas o bacalhau um bocadinho duro. E não foi isso que me fez perder a estrela.

Os inspectores fazem muitas perguntas?

Tentam prever mudar muita coisa: vão manter a sala assim, o número de lugares, o chefe de sala, o escanção? Tive duas ou três inspecções este ano, um dos inspectores apresentou-se. Quando reabrimos, veio confirmar como estava o restaurante depois das obras. Eu tinha feito uma carta a dizer que íamos fazer obras grandes e ele veio no primeiro dia, ainda cheirava a tinta. Pediu para ver a cozinha, a entrada do restaurante, a armazenagem, pediu para espreitar os frigoríficos, a arrumação, a limpeza, essa parte toda que é tão importante.

E é muito importante um chef estar ou não estar sempre no restaurante?

Não sei. Uma das coisas que ele me perguntou foi de quem eram as fotografias [nas paredes do Belcanto], eu disse que eram do meu pai, achou graça ser a minha mãe numa delas, e perguntou ‘agora vais ficar aqui ou tens projectos para ires para outros restaurantes?’. Querem saber esse tipo de coisas Há um lado que eles procuram, que possivelmente é um passo para uma terceira estrela – e não estou a falar de nós em concreto – que é identidade. Se vão lá e o chef nunca está e não sentem essa identidade, é mais difícil.

Sabores do Médio Oriente na Cozinha da Mouraria e no Mercado de Santa Clara

São dois projectos distintos mas muito próximos no seu objectivo principal: ajudar os refugiados vindos da Síria e de outros países do Médio Oriente a integrar-se em Portugal, dando aos que mais gostam de cozinhar uma oportunidade de mostrar o que se come nos respectivos países. Make Food Not War são almoços na Cozinha Popular da Mouraria, em Lisboa, o próximo já com data marcada: 3 de Dezembro. E, no Mercado de Santa Clara, também em Lisboa, o projecto Pão a Pão, com mulheres sírias refugiadas em Portugal, vai fazer uma série de jantares entre 1 e 22 de Dezembro.

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Em ambos os casos as receitas geradas serão para ajudar os refugiados e as suas famílias. Os almoços na Cozinha Popular da Mouraria – o projecto é uma parceria com a associação Crescer na Maior – custam 15 euros e a ementa, feita por refugiados (neste caso todos homens) vindos da Síria, Iraque, Palestina e Eritreia, inclui os indispensáveis pão árabe e hummus, além de salada com vegetais e pão frito, kofta (carne picada, feita com batatas no forno), biryani de galinha, além da sobremesa (a que se vê na foto mesmo no final do texto). A ideia é que passem a acontecer duas vezes por mês, sempre aos sábados.

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Quanto ao Pão a Pão, apresenta-se como um “espaço de encontro multicultural para a integração dos refugiados do Médio Oriente que inclui uma cozinha comunitária para a produção e venda de pão e dos pratos que geralmente o acompanham. Será mais do que uma padaria e mais do que um restaurante. Haverá também workshops – gastronomia, dança. música, escrita… – aproximando também a população local à cultura do Médio Oriente”. Para já ainda à espera de um espaço para se instalar, o Pão a Pão decidiu iniciar a sua actividade com esta série de jantares que custam 20 euros por pessoa. Marcações em: associacao.paoapao@gmail.com (só para grupos com mais de 20 pessoas)

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Ainda nos primeiros passos da aprendizagem do português, para muitos dos refugiados que chegaram a Portugal nos últimos tempos a cozinha é a melhor forma de expressão e a melhor ponte para o início de um diálogo com o país que os recebe. No almoço experimental na Cozinha da Mouraria, os cozinheiros, homens com idades entre os 22 e os 59 anos, estavam felizes ao ver como as pessoas elogiavam a comida e, apesar de muitas vezes a conversa acontecer num inglês meio coxo, não restaram dúvidas sobre o sucesso da refeição.

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No caso do Pão a Pão, foi já há alguns meses que estivemos num jantar de apresentação do projecto feito por algumas das mulheres sírias e, entre hummus, sopa de lentilhas, saladas variadas, frango, beringelas recheadas e diferentes receitas de arroz, o difícil era escolher. A avaliar pela amostra, serão mesmo jantares a não perder.

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Como se faz uma sobremesa japonesa?

O chefe japonês Tomo Kanazawa, do restaurante Kanazawa, em Lisboa, está empenhado em explicar aos portugueses as subtilezas da gastronomia do seu país. Recentemente guiou a Fugas por uma viagem ao seu menu cha-kaiseki e, já depois disso, trouxe a Portugal uma mestre de pastelaria japonesa para uma aula.

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Perante um grupo restrito (a sala do Kanazawa é pequena e já transbordava), composto por outros chefes e alguns jornalistas, Yazuko Kagetsu demonstrou como se fazem três doces que se servem a acompanhar o chá, sendo este sempre o mais importante. Ajudada pela tradução de Tomo, explicou que entre os ingredientes base destes doces (que, apesar se levarem açúcar, são muito menos doces do que os ocidentais) está um tipo de inhame (muito difícil de encontrar em Portugal, sublinhou Tomo) e o feijão doce, que pode ser branco ou vermelho.

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Fundamental é a forma de trabalhar a massa. E aí aplica-se um conceito que os japoneses muito prezam: se fizer dez vezes fica melhor do que se fizer uma; e se fizer cem vezes fica melhor do que se fizer dez. Ou seja, nada substitui a experiência. Para fazer os bolinhos, chamados Kinton, usa-se o tal inhame japonês (o outro não resulta para doçaria, tal como a batata-doce também não resulta). Primeiro é preciso avaliar a qualidade do inhame, o que se faz cortando-o e vendo se ganha uma mancha escura dos lados, junto à pele. Se tal não acontecer, pode ser cozido a vapor. Se a mancha aparecer, significa que é amargo e deve ser cozido com água. Depois de cozido, mas ainda quente, é triturado numa rede, desfazendo-se como se tivesse sido ralado e a partir daí pode ser trabalhado.

Segundo Yazuko Kagetsu, a doçaria japonesa deve ser o mais artesanal possível pelo que não exige máquinas muito complicadas, apenas alguns utensílios simples, entre os quais um pano como o que se vê na imagem acima e que serve para amassar a massa. O inhame é depois misturado com o açúcar (1kg de inhame para 300 de açúcar) até uma consistência em que já não pega aos dedos.

Importante na doçaria do Japão é a escolha dos ingredientes, que devem ser mais do que os dois que servem de base. A escolha dos restantes tem a ver com a estação em que estamos e se Yazuko Kagetsu usou feijão branco podia também ter usado castanhas, por exemplo. Outra informação a reter: o feijão branco deve ser demolhado durante dois dias e depois de cozido tem que se tirar a casca, feijão e feijão. Quem quiser dedicar-se a estes doces deve, por isso, ter consciência de que é um trabalho de muita paciência – e tempo.

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Misturadas as duas pastas (inhame com açúcar e feijão doce branco) até à consistência ideal, e dividida em pequenas bolas, é altura de introduzir cor no doce, o que se faz tocando levemente com uma ponta da massa num corante (ver foto em baixo) que depois é “engolido” pelo resto da bola de massa e novamente amassado no pano até a cor se incorporar uniformemente. Essa bola é de novo ralada e o resultado são pedacinhos de massa de diferentes cores.

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Com a ajuda de uns pauzinhos especiais, esses pedacinhos de massa são delicadamente colocados sobre uma bola de  feijão doce vermelho até ficarem com a aparência de um pompom de várias cores. Também aqui há regras: o amarelo e cor de rosa suave são cores de Outono, mas o verde e amarelo já são de Primavera. Tomo sublinhou a importância destas combinações de cores que podem ter a ver com questões mais pessoais, mas que devem sempre ter um significado – o nome da pessoa que os fez, a cidade onde estamos, ou outra fonte de inspiração.

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“É muito importante dar um significado”, afirmou Tomo. “O importante não é o cozinheiro exprimir-se e mostrar que sabe fazer isto ou aquilo. O mais importante na nossa gastronomia é as pessoas passarem tempo juntas”. E o significado das cores pode ser um bom tema de conversa. Estes Kinton são normalmente servidos com o chá e devem ser suaves precisamente para não ofuscarem o sabor do chá verde, que deve ser matcha se quisermos que tenha a qualidade máxima. A taça onde é servido é aquecida com água primeiro, limpa com um pano especial e só depois está pronta a receber o chá. Devemos então provar o bolinho, fazendo com que o seu sabor invada a boca toda. E só então devemos beber o chá.

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A aula de Yazuko Kagetsu incluiu duas outras sobremesas muito simples. Uma delas, Kiui no Awayukikan, é uma espécie de “neve” fresca feita com kiwi, água, ágar-ágar, açúcar e clara de ovo (um pouco como o merengue) e foi servida com uma gelatina de romã (ver foto em baixo). Deve ser acompanhada por espumante ou champanhe.

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O terceiro doce é ainda mais simples, apesar do nome complicado: Tsuyabosikingyoku. Feito com água, ágar-ágar, usado para solidificar, e açúcar granulado, resulta numa espécie de gelatina colorida que parece pedacinhos de vidro (Yazuko Kagetsu fê-la em vários tons de azul, em homenagem ao céu de Lisboa). A camada ligeiramente mais solidificada do exterior esconde um interior delicado, que se desfaz na boca.

O truque aqui é deixar ferver bem a água (160 cc) para derreter o ágar-ágar (4 g), deitar o açúcar (400g) quando começa a engrossar, não usando espátula para mexer (atenção, não pode caramelizar). Deixa-se solidificar e corta-se da forma que se quiser (em Portugal demora um dia a secar porque há menos humidade que no Japão, onde pode demorar três a quatro dias). Para acompanhar, uma bebida absolutamente deliciosa: um espumante de saké.