O futuro a nós pertence. A atitude pessoal e o acaso disputam um jogo em que a vitória não está prometida. As personagens de O Retrato mostram-no. “É preciso brigar pela vida”, diz o autor, Clovis Levi.
O livro O Retrato (Aquilo Que Não se Vê) parte de uma foto que capta quatro crianças, um bebé, uma cadela e uma “pipa” — em português de Portugal, um papagaio de papel. Esclareçamos já que o autor do texto, Clovis Levi, é brasileiro, carioca, mas também tem nacionalidade portuguesa.
A descrição das características e temperamento de cada retratado conquistam imediatamente o leitor. Sem muita conversa… ficamos a conhecê-los no essencial: o inventor, a mandona, o leitor, a descabelada. Mais a cadela grávida e o bebé emprestado (só para compor a foto). E, claro, o papagaio de papel, que anseia por liberdade.
Será este que nos irá desvendar as misérias e sonhos de cada personagem. Será também o papagaio de papel que nos dará a conhecer o destino de cada uma delas e de si próprio. Aliás, dois destinos para cada. E não os únicos. Já que, como se diz no livro, “a vida tem muitas possibilidades”.
Um novo retrato, dez anos depois, traz-nos ausências, por fuga ou morte, e outras crianças, filhos. Mas haverá ainda um terceiro desfecho ou retrato possível.
Genilda vai para a capital e não tem filhos? Engravida logo aos 13 anos ou vai para os Estados Unidos?
Luan inventa uma máquina gigante para regar o Nordeste? Conserta brinquedos no quintal da sua casa? Ou continua a trabalhar na roça?
Uélinton torna-se escritor e cria uma biblioteca na escola? Trabalha numa fazenda e não lê um livro desde os 12 anos? Ou, aos 20, está a terminar o seu segundo romance de terror?
Chakira consegue ser “médica de todos os bichinhos” num zoo? Tem de cuidar de humanos numa enfermaria ou estuda Teatro no Rio de Janeiro?
Gugu morre aos 11 anos? Ou sobrevive e, aos dez, é considerado músico prodígio, mas a querer ser jogador de futebol?
E a cadela Jupira, que sonhava com sombra, alimento e água? Desaparece ou chega a ter cinco cachorrinhos, que ainda vagabundeiam pelo povoado?
E o papagaio de papel (“pipa”)? Continuará a ser guiado pela mão de Uélinton? Será libertado pelo seu amor, o vento? Ou vai deixar-se apanhar pela tempestade, rasgar o celofane e morrer, perdendo o voo e a liberdade?
A origem condiciona mas não determina
Tudo isto nos é contado e perguntado cruamente. Se é sabido que os grandes escritores não fazem cerimónia com as palavras, Clovis Levis não faz cerimónia com nada nem coisa nenhuma.
Mostra a pobreza, o desgosto, a morte, o abandono, a sexualidade, a injustiça, sem infantilizar o leitor, mesmo sabendo que pode ser criança ou jovem. O mesmo para a alegria, a festa, a reconciliação com a vida. Escreve com honestidade.
Sem ignorar que a geografia física e social das nossas origens condiciona o futuro de cada um de nós, lembra e reforça que esta não o determina. Daí os vários percursos possíveis das personagens. Em suma, o exercício do livre-arbítrio.
Tudo isto torna O Retrato um livro comovente e esperançoso. O texto teve uma primeira edição brasileira, da Abacatte, em que as ilustrações de Lelis ampliam o sentido do que é dito e reforçam a atmosfera sombria e triste, numa expressão plástica quente e envolvente.
Perante a edição portuguesa, com ilustrações de Ana Biscaia, espera-se mais um êxito desta dupla, depois da colectânea de contos A Cadeira Que Queria Ser Sofá (Prémio Nacional de Ilustração 2012).
A linguagem verbal de um e a visual de outra interagem de uma forma muito eficaz. O aspecto é o de um storyboard que podia destinar-se a um livro de banda desenhada ou a um guião para cinema.
E as ilustrações de Ana Biscaia, que gosta de usar grafite e tirar partido da sujidade que produz, sem elementos bonitinhos e assépticos, adequam-se à verdade das palavras de Clovis Levi. É por isso que, juntos, conseguem tão bem pôr à vista aquilo que não se vê.
“Em vez de ter sido assim, poderia ter sido assado”
O livro, que tem formato A3 (uma inovação da Xerefé, que até agora se dizia “uma pequena editora de livros pequeninos ilustrados”) e em que o texto surge manuscrito (também desenhado), foi apresentado a 5 de Março, em videoconferência, numa iniciativa do Centro Cultural Penedo da Saudade, do Instituto Politécnico de Coimbra, e em que o PÚBLICO teve uma breve participação no final.
Nessa altura, Clovis Levi contou que a história resultou do conhecimento que teve de uma visita oficial de Lula e do seu então ministro da Educação, Cristovam Buarque, ao Nordeste brasileiro, Sertão. Quatro crianças foram escolhidas e fotografadas para simbolizar aquele projecto de melhoria de vida. A expectativa era a de que muitas crianças tivessem agora a perspectiva de um futuro melhor. Mas… as políticas e os seus actores mudaram entretanto.
Cristovam Buarque há-de voltar ao local para saber do percurso dessas (já não) crianças. Os sonhos daquele primeiro encontro não se traduziram numa realidade feliz, pois esta manteve-se dura.
Este foi o ponto de partida de Clovis para escrever sobre os sonhos e as oportunidades que a vida nos dá. Por isso, diz: “A gente não pode aceitar o destino como uma coisa fechada. Temos possibilidades de mexer no nosso destino. A vida tem muitas possibilidades.”
No entanto, não ignora que, “ao mesmo tempo, há casos em que não podemos interferir, coisas que acontecem e que não estão no nosso domínio”. Mas incita os jovens a perseverar: “É preciso brigar pela vida e pelos sonhos.”
O livro tem, portanto, várias partes, como explica o autor: “Primeira parte: os sonhos dessas crianças vão-se confrontando com a realidade miserável que elas estão vivendo. Segunda parte: dez anos depois, mostra-se o que aconteceu. E depois a gente fala: ‘Mas poderia ter sido diferente.’”
E surge outra parte ainda: “Em vez de ter sido assim, poderia ter sido assado. E aí a gente mostra como foi o assado… a gente mostra como as possibilidades são inúmeras e como cada leitor vai ter a oportunidade de propor um final para aquelas personagens.” E também para si próprio.
O Retrato (Aquilo Que Não se Vê)
Texto: Clovis Levi
Ilustração: Ana Biscaia
Edição: Xerefé Edições
45 págs., 20€
Texto divulgado na edição do Público de 17 de Abril de 2021 e no site-satélite Ímpar.
Na edição impressa, a página foi desenhada por Sandra Silva. A parte de agenda ficou a cargo de Cláudia Alpendre Marques e Sílvia Pereira. E é aquilo que se vê…