O que tem de especial criar para crianças?

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Público exigente e que não finge gostar, as crianças têm agora mais ofertas culturais de qualidade. Sem condescendências nem infantilismos. Davide Cali [foto em cima, o dos óculos…] e Serge Bloch [foto em baixo], ambos autores e ilustradores, estão em Lisboa para falar disso.

Escritores, ilustradores, músicos, cineastas e programadores com experiência de criação e produção para o público infantil reúnem-se na Gulbenkian nesta segunda-feira [9 de Fevereiro] para tentar responder à pergunta: é então isto para crianças? Palavra-chave do colóquio: “partilha”.

“Queremos cruzar experiências de várias áreas – literatura, música, cinema e artes de palco –, partilhando percursos, saberes e dificuldades na abordagem ao universo infantil”, diz Inês Fonseca Santos, jornalista e comissária do encontro. Nesta linha, os participantes são também convidados a recordar-se de uma criação artística que os tenha influenciado durante a infância. “Pode ser um livro, uma canção, um filme ou qualquer outra memória.”

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O que tem então de diferente a criação artística para crianças? O público. “Mais exigente e aberto”, segundo Davide Cali, escritor e ilustrador italiano que abrirá o colóquio, e “que compreende mais rapidamente devido aos seus neurónios ainda tão frescos”, de acordo com o francês Serge Bloch, também escritor e ilustrador, que o acompanhará na conferência de abertura, marcada para as 10h, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Mas nem um nem outro se preocupam muito com a idade dos leitores.

(Texto divulgado na edição de 9 de Fevereiro do Público)

“Eu escrevo para todos, por isso talvez as minhas histórias continuassem a fazer sentido” num mundo onde hipoteticamente não existissem crianças, “pelo menos assim o espero”, disse Davide Cali ao PÚBLICO numa entrevista via email. Já Serge Bloch, que também faz cinema de animação e publicidade, afirma: “Não há grande diferença entre pequenos e grandes, a não ser no tamanho.”

Inês Fonseca Santos gosta da expressão que o músico Fernando Mota usa no lugar de “para crianças”. É ela: “Para todas as infâncias.” Autora do livro infantil A Palavra Perdida (edição da Abysmo), acredita que “os autores não se sentam a pensar assim: ‘Vou escrever para crianças.’ Começam a escrever e depois a história toma esse rumo”. O que considera fundamental é que as criações para a infância “não sejam consideradas menores”, lembra que “não deve haver infantilização nem condescendência” e avisa quem não sabe que “as crianças são exigentes e implacáveis”.

Sobre tudo isso se vai debater durante dois dias, com contributos de convidados que comunicam em vários registos, como Afonso Cruz (escritor, ilustrador, cineasta e músico), António Jorge Gonçalves (criador de novelas gráficas, autor de cartoon, ilustração editorial e cenografia/performance visual) ou André da Loba (ilustrador e animador).

O colóquio irá dividir-se em quatro grandes painéis, a que correspondem quatro perguntas: “É então isto um livro?”, “É então isto um filme?” (segunda-feira); “É então isto uma canção?” e “É então isto um espectáculo?” (terça-feira). A completar o programa, haverá o espectáculoÉ pr’a Meninos? (B Fachada, André Gonçalves e Manuela Azevedo, e André da Loba) e depoimentos filmados de José Miguel Ribeiro, Fernando Mota e Sérgio Godinho, e Aldara Bizarro e Maria de Assis Swinnerton.

Espectáculos “para e com crianças”
Para Madalena Victorino, coreógrafa e programadora do festival Todos, “um espectáculo pode ser aquilo que faltava acontecer entre uma criança e um adulto…”. A fundadora do primeiro espaço em Portugal de fruição artística internacional para um público jovem, no CCB, participará no congresso e resumiu assim a sua apresentação: “Em certas experiências de espectáculo, é possível às crianças observarem os adultos como alguém que se engana, que chora e que ri, que lhes mostra o que sente e até se transforma e cresce ao longo do espectáculo, como elas… Um espectáculo pode dar-lhes essa dimensão do humano… São esses espectáculos para e com as crianças e onde os adultos finalmente se revelam que mais me interessam.”

Na música, Manuela Azevedo, vocalista dos Clã, fala dos miúdos como “ouvintes francos, generosos, curiosos” que ajudaram a sua banda “a ter confiança na rota decidida para a viagem” que foi a criação do Disco Voador. “Foram muitas as vezes em que nos questionámos: ‘É isto para crianças? É isto uma canção para crianças?’”

Já o que mais inquieta o artista B Fachada (Bernardo Fachada) são “os perigos de uma cultura dogmática aplicada às crianças”, aquilo a que chama “infantilização da infância”. No seu texto de síntese para o encontro, mostra preocupação com “a ética de negócio na produção cultural infantil”  e com “o volume desse negócio”. Em 2010, criou B Fachada É P’ra Meninos.

A autora Patrícia Portela defende queum espetáculo experimental para um público mais jovem deve assemelhar-se a um projecto científico e não a um projecto pedagógico, pelo que o nível de risco e experimentação deve ser máximo”.

A cineasta Regina Pessoa diz que a questão que o colóquio lhe propõe, é então isto um filme?, “encaixa como uma luva” no trabalho que tem vindo a desenvolver há vários anos com Abi Feijó. “Apesar de as nossas curtas de animação nem sempre se destinarem a um público infantil, um filme de animação é sempre o cruzamento de várias disciplinas e meios de expressão artística, englobando a linguagem do cinema, o desenho e a pintura (se for um filme em desenho animado), a música, a fotografia, a literatura e podendo ainda ser alargado à área da ciência, se pensarmos nos fenómenos da óptica, percepção, psicologia, etc.”

Um dos seus propósitos é o de dar a conhecer aos miúdos (ou adultos) como funciona “a imagem em movimento”. A criança pode “aprender a tirar partido dela e talvez possa vir a ser menos ‘manipulada’ pelas avalanches de conteúdos que absorve diariamente”.

Este livro é para que idade?
Davide Cali lembra como é um problema para os pais e professores identificar a idade dos leitores a quem o livro se destina: “Sempre que estou a autografar livros, alguém me pergunta: ‘Este livro é para uma criança de quatro anos?’ É difícil responder. É suposto que as crianças não se interessem por temas que consideramos ser para a idade adulta. No entanto, quando vou a encontros em escolas, noto que as crianças gostam de conversar sobre o amor, a guerra, o significado da vida… O que podemos, então, considerar um livro para crianças?”

Quando lhe perguntamos se pensa no destinatário do livro, responde: “Nunca ou quase nunca. Estou quase a terminar um pequeno romance. É para pré-adolescentes, pelo que tenho de ter alguns cuidados com a linguagem (nada de palavrões, mesmo se os pré-adolescentes os dizem bastante). Senão, apenas conto histórias, que podem agradar também aos adultos. Normalmente, escrevo para mim. Depois, para o meu público, mas não penso forçosamente em crianças, ainda que teoricamente eu faça livros para elas.”

Serge Bloch diz: “Faço desenhos e escrevo textos. Também faço desenhos animados — para crianças e para adultos. Haverá diferença quando se trabalha para uns e para outros?” Além da característica dos “neurónios mais frescos”, acrescenta: “Talvez se possa falar de tudo com uns e com outros, mas certamente não importa como. ‘Podemos rir de tudo, mas não com toda a gente.’”

Recorda a colecção Max e Lili, de há mais de 20 anos, em que se abordaram temas então tabu para os mais jovens, como a morte, a droga, os maus tratos. Para concluir que, “com Davide Cali, a abordagem é semelhante, apesar de menos pedagógica”.

Acrescenta ainda: “Os nossos livros podem ser lidos por todos, crianças e adultos, e, como estão traduzidos em vários países, circulam por todo o mundo: pela Europa, pela Ásia, pela América… Os temas dos livros que fiz com Davide são ‘humanistas’: o amor, a vida, a paz…”

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Em Portugal, assinado pelos dois só está traduzido Eu Espero… (Bruaá Editora). “Identifico-me completamente com estes temas e essa é a razão por que fizemos estes livros sem sequer nos encontrarmos.” Vão estar juntos pela primeira vez “ao vivo”, em Lisboa.

Davide Cali espera que esteja muita gente na Gulbenkian e espera também muitas perguntas. “Não gosto de fazer monólogos e muitas vezes é o que acontece quando me encontro com adultos. Eles nunca põem questões porque são muito tímidos. Com as crianças, é ao contrário. Em cinco minutos, somos como velhos amigos: eles fazem muitas perguntas.”

Na edição em papel, o texto saiu assim:

CaliEBlochPapel

Não Fiz os Trabalhos de Casa Porque… é o mais recente livro de Davide Cali editado em Portugal, pela Orfeu Negro. As ilustrações são de Benjamin Chaud. (Letra pequena falará dele por estes dias, mas ainda não fez os trabalhos de casa…)

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