Abdul, para abreviar, brinca, é o guia do nosso segundo dia em Fez que é na verdade uma manhã – almoço incluído, o que em Marrocos pode significar duas ou três horas. Não caímos nesse erro e quando chegamos ao restaurante pedimos tudo ao mesmo tempo, entradas e prato principal, uma deliciosa tajine de carne de vaca que se desfaz com um garfo apenas.
Mas ainda faltam umas horas para o almoço quando saímos do hotel para uma visita a Fez-fora-da-medina. Primeira paragem: Palácio Real; primeira abordagem: vendedores (nada de novo); primeiro aviso de Abdul: não tirem fotos aos guardas reais. Estamos numa espécie de coração de Fez fora das muralhas, junto ao portão principal do palácio que, contrariando a vetustez de outras partes do enorme complexo (início da construção no século XIII, quando se tornou uma cidade imperial, se bem que a sua fundação remonte ao século IX), é bem recente, da década de 1960, inspirado no estilo marroquino-andaluz. A grande porta de bronze, “feita por artesãos da medina”, concentra todas as selfies, mas o conjunto com o trabalho de azulejaria impressiona.
O tempo aperta e Abdul não tem complacências com “a família”. É sobre rodas que atravessamos a rua que divide o bairro andaluz, com varandas nas fachadas, do bairro judeu, com portas cinzentas – explicação simplista. Fez foi o porto de abrigo de muitos muçulmanos expulsos do último reduto ibérico pelo recém-criado reino de Espanha e pouco depois chegaram os judeus sefarditas, conhecidos por venderem ouro. Actualmente, a principal comunidade concentra-se em Casablanca, a capital financeira do país, mas Fez preserva um dos maiores bairros judaicos de Marrocos e mantêm-se, por exemplo, a sinagoga e o cemitério, última morada de rabis importantes e, portanto, ponto turístico para muitos judeus.
Vamos a caminho do Borj Sud, fortaleza numa colina do lado sul da medina que tem uma irmã do lado norte – tudo para reforçar a protecção da medina. A entrada na torre está vedada, mas a vista sobre a cidade é imperdível e a subida faz-se atravessando uma espécie de Monte das Oliveiras. Apesar da polícia, em modo relaxado, quase indiferente, os vendedores não se coíbem de oferecer produtos do lado de fora do gradeamento, onde os turistas se empoleiram para encontrar os melhores ângulos sobre a medina.
Novamente regressamos à medina, para avançarmos até ao bairro dos curtumes, um dos produtos mais emblemáticos da cidade. Peles de vaca, cabra, cordeiro, dromedário transformam-se em carteiras, malas, porta-moedas, casacos e as incontornáveis babouches, os chinelos pontiagudos tão típicos destas paragens. Pelo meio, já mergulhados outra vez no dédalo da medina, a anedota mais comum entre os guias marroquinos: “Se encontrarem marroquinos de olhos azuis ou verdes não se admirem, são os turistas que se perderam e não regressaram.” Mais a sério, Abdul assume que são muitos os marroquinos que também se perdem por aqui e que nunca está longe um rapaz que se oferecerá para nos conduzir para fora da almedina – a troco de algum dinheiro, claro.
Enquanto caminhamos, passamos as ruas dos tecidos, onde o barulho seco e regular dos teares é habitual. Os vestidos aqui podem custar entre 20 e 50 mil euros, afirma Abdul – uma companheira de viagem compra um por 150 euros; o preço começou nos 450, por isso pensamos que foi um óptimo negócio. Entre as ruas estreitas, tantas vezes cobertas como se fossem corredores interiores, o “túmulo de um homem santo” sobressai numa pequena fachada, singelo mas harmonioso, mas com o arco árabe e os azulejos como decoração.
Vamos seguindo o guia até chegarmos ao curtume Chouara, que reclama o título de mais antigo de Marrocos e Norte de África (900 anos). O raminho de hortelã que oferecem à entrada pode parecer exagerado, mas rapidamente todo o grupo tem uma folha enfiada numa das narinas, pelo menos, tal a intensidade do cheiro. Subimos até ao último andar e são as vistas que cativam. Estamos quase sobre os tanques escavados (dizem que pelos fundadores da cidade) que vistos de cima parecem os favos de uma colmeia irregular: uns são brancos, do amoníaco e cal usados para o primeiro tratamento das peles; os outros são coloridos, sobretudo vermelho gasto, castanho ou amarelo, usados para tingir a pele. Os trabalhadores equilibram-se nas suas bordas para assegurar que as peles não se estragam. Mas o funcionário-guia não está interessado em que vejamos as vistas. Apressa-nos para a explicação – “Só trabalhamos com animais que comemos”, antes de passar à parte técnica debitada como se de uma metralhadora se tratasse –, que é apenas a ponte para chegar ao pragmatismo da venda. “Portugueses tesos”, escutamos novamente, com desprezo quando o grupo parte de mãos a abanar.
Não acontecerá o mesmo numa “ourivesaria”, onde parte do grupo chega antes. Várias compras e vendedor muito satisfeito com os clientes portugueses. Quem chega na segunda leva já nem precisa de regatear, os preços para os portugueses já estão mais baixos; as turistas espanholas que também estão na loja não têm a mesma sorte mas tão-pouco parecem interessadas em discutir preços.
Ainda passamos pela zona dos latoeiros, o martelar ritmado e alguma desconfiança das máquinas apontadas. O que é normal, por isso o melhor é mesmo pedir para tirar fotos – anuências e recusas escutam-se na mesma proporção. Quando se tem tempo o melhor é esperar pacientemente em localização estratégica e discreta para fotografar gente, sempre com atenção ao trânsito: não há veículos motorizados, mas os burros carregados com “alforjes” modernos (como grades de Coca-Cola, por exemplo) ou carros de mão são comuns, e os marroquinos também são apressados, seja o pai com a família, seja a velhota nas compras. Porque, mesmo estando em período de Ramadão e os muçulmanos não possam comer entre as 3h30 e as 19h30, as bancas de comida estão cheias. Dos doces tradicionais, carregados de mel, à carne e peixe, passando pela fruta e as inevitáveis especiarias – a parte dos produtos frescos é a mais difícil de atravessar devido à esquizofrenia de cheiros.
O almoço no restaurante Palais La Médina é tipicamente marroquino, mas o nome engana. Estamos fora da medina e não sei o que é mais fascinante, se o espaço, como um palácio requintado, se a comida. Só sentimos algum remorso quando vemos Abdul a esperar-nos sem se poder juntar ao repasto, onde destacamos uma das entradas, espécie de chamuça com uma massa mais fina recheada de arroz com flor de laranjeira – sabor a canela e reminiscências de sonhos. Os portugueses, de Natal, num cenário das mil e uma noites.
A Fugas viaja a convite do Turismo de Marrocos em colaboração com a Solférias e os hotéis Be Live