Há sempre algo de mágico quando escutamos o muezzin chamar para a oração. Mas na medina de Fez quase passa despercebido perante as vozes que se multiplicam nas suas ruas, ruelas, becos apertados. O mais belo que escutei foi ao pôr do sol, já na varanda do hotel, com a medina no horizonte, metade já na sombra, outra ainda a brilhar com os últimos raios de sol.
Sabe especialmente bem ouvir o chamamento depois de um dia de calor e de muito caminhar. A medina é labiríntica e enorme: 15 quilómetros de muralhas encerram 350 hectares de área e mais de nove mil ruas (algo como 30 quilómetros) que servem a população que aí vive, 120 mil, e todos os que ali vão no dia-a-dia, incluindo, claro muitos turistas.
É evidente que não vimos grande parte da medina, não temos ilusões. E na primeira tarde aí não tivemos sequer muito tempo para observar o comércio, a actividade dominante na zona antiga de Fez, que é completamente autónoma, ou seja, tem desde bancos a escolas e outros serviços públicos e equipamentos em 14 mil edifícios. Não é um museu ao ar livre, é um local onde a vida se solta por todos os poros. Temos por guia um arquitecto que nos espera na porta Bab Boujloud, uma das principais, para nos mostrar o trabalho de reabilitação que está a ser feito por toda a medina. “Estamos 24 horas de prevenção”, explica, “se nos chamam de noite, vamos ver o que se passa.”
Os locais onde leva o grupo são icónicos deste trabalho: estão concluídos, embora nem todos já a funcionar. Mas também nos leva a uma das casas sinalizadas para reabilitação: no rés-do-chão funciona uma loja de tecidos e do pequeno pátio agora coberto vemos os três andares que se erguem em madeira. O dono oferece-se para nos mostrar a casa, visita rápida, e o terraço – subimos e caímos numa das armadilhas mais comuns: no final pede-nos dinheiro pelo que julgáramos ser uma cortesia. Resistimos à pressão – mas escutámos pela primeira vez “portugueses tesos” – e tivemos a primeira visão “aérea” da medina, que se pinta de bege, embora a cor da cidade seja o azul – todas as cidades imperiais têm uma cor associada. O mausoléu de Moulay Idriss (o fundador de Fez) com o seu telhado piramidal verde destaca-se, ao lado de um minarete, também ele com pormenores verdes, que pertence à universidade mais antiga do mundo, Quaraouiyine, fundada no ano 859; mais perto de nós, um dos locais de visita do dia seguinte, o curtume Chouara: vemos os tanques onde a pele é lavada e preparada e aqueles onde é tingida.
Uma das primeiras paragens é a madrassa, Bouinania construída no século XIV para receber estudantes de todo o mundo. É uma das cinco que foram recuperadas entre 2013 e 2016 – em breve voltará a receber estudantes, como uma espécie de residência universitária, já não escola corânica. A ideia da restauração das madrassas é “mostrar a tolerância do Islão” e a Fez chegam estudantes de todo o mundo.
Outra das passagens é o kissariat Al Kifah, o mais antigo mercado da medina, que ainda cheira a novo e tem poucas lojas abertas: sucedem-se as lojas, estreitas, em madeira, na estrutura coberta revestida a azulejos. “Quisemos recuperar este espaço histórico para manter o comércio e incentivar os jovens a não deixar a medina”, explicam-nos. Nova paragem num antigo fondouk (hospedaria) que já está preparado para receber actividades de artesanato apenas feito por mulheres. Porquê apenas mulheres? Porque neste local, nos séculos XIII e XIV, vendiam-se mulheres; mais tarde, também aqui, as mulheres recolhiam órfãos que amamentavam. A história foi contada a uma fundação norte-americana, que quis recuperá-lo para dar uma nova imagem das mulheres na sociedade marroquina. Vai ter uma creche e no terraço um café para permitir gerar receitas para que as mulheres consigam garantir a manutenção do espaço.
Numa das paragens à espera da reunião do grupo, disperso pelas fotos, entretenho-me com Mohammed, não mais de seis anos, francês algo macarrónico (um pouco como o meu, na verdade), que está sentado à porta de uma loja com a Linda, uma gata bebé, “trois mois”, diz, arruivada. Quando me despeço ouço: “Compra a Linda”. “O quê?”, é a única coisa que consigo dizer, desconcertada. Repete. Tento explicar que não a posso levar no avião (mesmo que quisesse). “Então dá-me o dinheiro da compra.”
Amanhã é um novo dia em Fez.
A Fugas viaja a convite do Turismo de Marrocos em colaboração com a Solférias e os hotéis Be Live