O sorriso da Karen (Restelo)

 

HO - 25 MARCO 2009 - Passaporte PORTUGUES - PASSAPORTES UNIAO EUROPEIA EUROPA

Eu vou à Índia. Amanhã. Hoje, quando falo ao telefone aqui do meu pequeno exílio no Restelo, há quem duvide. “Mas tens a certeza que vais ter o visto a tempo? Sabes que é amanhã, não sabes?” Ou: “Mas sabes que horas são? Como é que podes ter a certeza?”

Sei, sei isto tudo, mas sei que vou. As palavras que se seguem dirigem-se aos que não são como eu, não acreditam (mesmo) que vai correr tudo bem quando a lógica parece indicar o contrário, para aqueles que stressam antes de viajar, por exemplo. Eu não stresso nem quando perco um avião (e sim, já perdi alguns).

Então, para quem não é como eu – se forem, podem achar graça na mesma, mas menos –, saibam que conheço quem tenha ido para a China em vez de ir para a Índia porque o visto demorou, é um amigo, português, passageiro muito frequente. Tenho outro amigo, um professor americano ex-jornalista mais velho que até viaja bastante, em trabalho, que tentou desistir e avisar a Universidade de Deli que o contratara que afinal já não ia. Foi, mas quis desistir por causa do visto (não por causa do enjoo de caril que diz ter trazido; aparentemente, nunca mais conseguiu comer caril – a mim essas coisas de enjoos com um tipo de comida também não me acontecem). Enfim, experimentem perguntar a alguém que já tenha ido à Índia como é que é com o visto. Pois, eu também nunca tinha perguntado até precisar de um.

Não desesperem, nunca. Nem se zanguem com a Karen. Nunca.

A primeira vez cheguei demasiado cedo, a segunda não me deixaram entrar por 2m. À terceira já dominava horários (o consulado em Lisboa, na mesma moradia da embaixada, Rua Pero da Covilhã, n.º 16, no Restelo, abre das 9h30 às 12h de segunda à sexta, menos à quarta) e sabia que a fila começa bem antes da abertura. Por exemplo, se chegarem antes das 9h ao portão, um bocadinho, vá, podem conseguir a primeira senha V (visto) do dia e serem os primeiros a serem atendidos lá em baixo (entra-se, sobe-se umas escadas, descem-se outras, atravessa-se o pequeno jardim e põe-se o pé onde tudo acontece). Tem tudo para correr bem. Ou não.

Antes disso, e não é uns minutos antes de saírem de casa, é mesmo na véspera de lá irem, pelo menos, têm de fazer o pedido de visto no site da embaixada. Depois, é preciso imprimir o dito cujo, juntar-lhe duas fotografias, o passaporte, claro, e o comprovativo do bilhete de avião. Sim, não está lá escrito e se telefonarem ninguém vos diz, mas têm de levar o bilhete. E, já agora, levem tudo o mais que se vos ocorrer. Nunca se sabe.

“É relativamente recente, tem uns seis meses”, explica a vários potenciais turistas incrédulos um senhor que faz vida disto, trata dos vistos dos outros.

“Eu já fui seis vezes à Índia, nunca me tinham pedido isto”, diz um jovem português, acompanhado de uma jovem também portuguesa que nunca foi. “Eu avisei-te, eles são doidos.” E, depois, para o senhor: “O que não é novo é a burocracia indiana. Acho que nunca foi igual de nenhuma das vezes que pedi visto. E nunca foi fácil.”

Também, que exagero. As três senhoras amigas que tinham a senha V1 foram as primeiras a desistir e a ir trabalhar. Não tinham trazido os bilhetes, apesar de virem armadas de umas pastinhas que pareciam conter lá tudo o que dizia respeito à viagem. Acho que até tinham comprovativos de vacinas, reservas de hotel e extractos bancários. Nunca se sabe. Desta vez, o que era preciso era o bilhete de avião e isso não tinham levado. Aqui, no Restelo, não serve mostrar nada no telemóvel. A opção, como fizeram os dois jovens, que só tinham a senha V5, é ir à procura de uma loja para imprimir e voltar de papel na mão, com sorte ainda a tempo de chamarem a senha que nos foi dada à chegada.

É preciso paciência? Sim. Mas não vale mesmo a pena desesperar. A mim nunca me enganaram, quando a Karen deixou escapar, logo ali, no primeiro encontro, que o visto podia ficar pronto de um dia para outro (quer dizer, estando tudo bem, é imprimir um papel noutro, não é?), a legitimidade do poder da burocracia ficou logo a perder para o meu optimismo. Mesmo quando já não tínhamos um dia (o meu voo é às 8h25) e o raio do visto continuava por emitir.

O meu caso foi especial, pedi visto de jornalista. Diz-me a experiência que isso é bem pior. Aqui nem sei dizer. Foi diferente. Por exemplo, lembram-se do comprovativo do bilhete? Nunca cheguei a levar. Mas foram precisas outras coisas que na verdade eram só uma e o único problema foi que as caixas de email da embaixada não suportavam o tamanho do raio do documento que provava onde é que eu vou na Índia e de que nacionalidades são os jornalistas na mesma viagem. Tudo o que o senhor secretário me disse para justificar a necessidade desse documento (eu já tinha uma carta de convite da empresa que me… convidou) não tem justificação na realidade (“Assim que entras eles sabem automaticamente que és jornalista” – a sério?!; “Se eu souber os nomes dos outros é tudo mais rápido” – nem pensar, eu sei lá que tipo de visto é que eles pediram, ficas com as nacionalidades e já é bem bom) mas tudo bem.

20161019_112926

Ao final da manhã da véspera da minha viagem, dia em que o consulado não abre para tratar de vistos, o raio do anexo continuava sem chegar a nenhum dos emails. A Karen, que me pusera à vontade, ela nem deu por nada, foi um sorriso a fugir, mas foi o sorriso que me fez ter a certeza que o visto estava no papo, lá me sugeriu que fosse imprimir o raio do documento sem o qual o senhor secretário não podia dar a ordem para ela emitir o visto. Isto porque ela queria ir almoçar. E eu que só queria sair dali e fumar um cigarro, aceitei (já tinha desistido de insistir para ela me dar o email pessoal, qualquer gmailzinho recebia isto em 30 segundos, a vossa net, aquela que eu apanho, pelo menos, não é boa, mas chega). Mas não, à saída encontrei o senhor secretário e ele lá me conduziu a uma secretária com um computador noutro edifício, ainda encontrou a Karen e a colega antes de saírem para almoço, não podia ser ele a ligar o computador e a verificar se eu sabia entrar no meu email e imprimir um papel. A Karen apareceu, eu fiz o que tinha a fazer, fomos todos almoçar.

Depois, bem, depois de almoçados ainda levou quase hora e meia até o meu passaporte estar na minha mão com uma página nova colorida e um visto de três meses para a Índia. Fiquei cheia de dores de costas, ia ficando constipada (o segurança, a querer ser simpático, acendeu-me as luzes da parte da tarde, quando já não havia ninguém na sala comigo, e com as luzes ligou-se o raio da ventoinha), perdi tempo em que podia ter feito tantas outras coisas, como apanhar a roupa da corda, por exemplo, folheiei vezes sem conta o calendário 2016 ao lado dos livros de colorir para os miúdos. Mas tenho o visto. E vou para a Índia. Já vi gente desistir por menos. Ou ter um pequeno ataque de nervos. Eu não. É a minha paciência e crença no mundo e no melhor das pessoas. Não, foi mesmo o sorriso da Karen. Eu vou à Índia.

 

4 comentários a O sorriso da Karen (Restelo)

  1. Se tu não fosse à Índia, mais ninguem iria à face do Planeta. Quase duvidei. Se tu não conseguises, seria impossível outros conseguirem.
    Boa viagem por essa Ìndia.

    Responder

Deixar um comentário

O seu email nunca será publicado ou partilhado.Os campos obrigatórios estão assinalados *

Podes usar estas tags e atributos de HTML:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>