É uma casa japonesa com certeza, é com certeza uma casa portuguesa

CastellaCastella

Juro que nem queria acreditar, mas quando o pastelinho entrou quase todo de uma vez só na minha boca rendi-me: é bom, bom, bom, é pastel de nata, é suave, cremoso e estaladiço, é português, é delicioso, derrete-se na boca em Quioto como se em Portugal. Verdade seja dita que pastéis de nata à portuguesa há muitos pelo Japão, até há mais casas de mote luso pelo país mas, desculpem-me, esta é especial. Esta nasceu em Lisboa, onde acabaria por fechar portas e mudar-se de armas e bagagens, de donos e doçarias, para Quioto.

Sabem aquela do viajante português que anda sempre com saudades de um bom bacalhau ou de um cimbalino dos nossos em qualquer viagem? Sabem, eu sei que sabem. Umas vezes é piada, outras é vontade, mas, admitamos, é muitas vezes verdade. Depois de uns bons dias no Japão, e apesar de até ter passado perto de restaurantes portugueses ou de uma casa de fados em Tóquio, quando chego a esta pastelaria e vejo a bandeira portuguesa a ondular por cima da porta por entre dois candeeiros de rua dos nossos não consigo resistir àquele orgulho. Que se há-de fazer? Nós somos assim – e ainda mais no Japão, onde Portugal faz parte da História e da lenda, para mais até com algumas boas recordações.

Castella CastellaEntro na Castella do Paulo – o nome azulejado não podia faltar à porta – e estou em Portugal, embora o corpo esteja numa reconstruída velha casa tradicional de Quioto. O sorriso de duas meninas japonesas ao balcão ainda fazem brilhar mais a montra de pastéis de nata ou tigeladas e pão-de-ló na sua versão japonesa (herança lusa, chamada castella ou kasutera), de pastéis de bacalhau e empadas, mas também pode haver brigadeiros ou tortas de Azeitão e bolas-de-berlim, muitos bolos sazonais (vem aí o pão de deus e até o bolo rei), enfim todo um doce Portugal bem acompanhado (do galão aos vinhos do Porto, Madeira, verdes…).

Castella O doceiro é o Paulo Duarte, mas quando visitámos a casa a meio da tarde era a sua merecida tarde de sono. “Ele começa a fazer doces às três da manhã”, diz-nos Tomoko, a sua mulher e responsável por gerir o Castella, num português perfeitinho e bem-disposto. Tomoko nasceu em Quioto, casou-se com Paulo, mudou-se para Portugal, onde viveu uns 30 anos e onde abriram, em Lisboa, uma casa de chá na Baixa que atingiu o estatuto de casa de culto. Paulo começou cedo a interessar-se pela doçaria e na década de 1990 viajou para o Japão para estudar pastelaria. Daí foi desenvolvendo tanto as artes portuguesas como japonesas. O resultado está à vista, numa doce harmonia de derreter qualquer visita.

CastellaEnquanto eu vou desfilando os olhos pelas decorações portuguesas, pelos pratos e cestos de vime, livros sobre fado e comidas e postais portugueses, lenços dos namorados ou galos de Barcelos, Tomoko vai falando da casa e como não foi nada fácil erguê-la a partir de uma velha adega de Quioto, que ainda tinha chão de terra e agora inclui mezanino e toda uma estrutura em madeira de qualidade imperial. Mesmo: “Tivemos que usar os carpinteiros que trabalham para a casa imperial”, conta-me. E isto que estamos em Quioto, um paraíso de templos, casas e retiros de imperadores que são obras-primas da arte da madeira.

CastellaCastellaCastella“Em Lisboa o nosso objectivo era divulgar a Castella, agora aqui queremos divulgar a doçaria portuguesa”, vai-me dizendo numa conversa que tem por banda sonora a guitarra portuguesa. “Os japoneses não conhecem, vão provando e gostam muito, só conheciam os pastéis de nata, que aqui se chamam egg tarts, porque foram chegando a toda a Ásia via Macau, mas não gosto desse nome, chamamos-lhe mesmo pastéis de nata.” Abriram em Abril do ano passado e foi uma revelação. Não faltam clientes japoneses tornados fãs nem portugueses de visita. “Às vezes aparecem pessoas que já nos conheciam de Lisboa e eu fico a olhar tipo ‘Que fazes aqui?!’. Eu próprio me lembro da Tomoko na Baixa lisboeta e há de facto um certo prazer em estarmos a conversar a mais de 11 mil kms de distância e alguns anos-luz desses tempos. Agora, folheio a ementa, onde os bolos e especialidades não são apresentados à toa, nota-se mão na obra: estão explicados por região de origem, uma a uma, com sua história e resumo.

“Chegamos aqui e tivemos como um sexto sentido, tinha que ser aqui.” Visito a cozinha, separada da sala por vidros para se poder ver a fábrica em funcionamento e onde descansam formas e tachos portugueses. Os cheirinhos fazem-me viajar. Tomoko abre o forno onde descansam os pães-de-ló japoneses de herança lusa, linhas direitinhas, metros de bolo que libertam odores maravilhosos. “Tudo ingredientes naturais, nada de químicos.” Os ingredientes são todos adquiridos no Japão, com excepções, como o azeite e sal marinho portugueses – o cimbalino também é do Japão (mas passou no teste luso com distinção), que “importá-lo de Portugal fica muito caro”. Na cozinha, ao lado do relógio que marca os tempos dos trabalhos, um papelinho tem uma carinha sorridente, caracteres japoneses e uma palavrinha portuguesa: sorriso.

O sorriso de Tomoko acompanha todo o passeio. No primeiro andar do mezanino, um grupo de jovens japonesas delicia-se com coisinhas lusas. As paredes mostram mais pratos e paninhos dos nossos. Ao centro, um manequim veste à minhota. Cá em baixo aguarda-me a minha guia japonesa, Hiroko, que não conhecia esta casa portuguesa na cidade pela qual guia continuamente turistas. O salto à Castella do Paulo foi até uma adenda à nossa apertada agenda de visita a uma Quioto bela e repleta de atracções. Hiroko estava algo stressada com este salto à agenda (respeitar horários e cumprir a agenda é essencial) mas agora, depois de degustar os nossos docinhos, beber um café, conversar com Tomoko, está mais portuguesa. Até comprou uma caixinha de bolos, ficou fã.

Castella

Aliás, quem me sugeriu este salto à Castella do Paulo – que, embora estivesse no meu bloco de notas, não estava incluída no programa do Turismo do Japão – foi uma outra japonesa, a jovem Ayano, a nossa mestre de uma cerimónia do chá numa deliciosa casa tradicional de Quioto, Tondaya. “De Portugal?, têm de ir ao Castella!”, garantia-me ela no seu perfeito quimono, mostrando fotos de pastéis de nata e outros bolinhos no telemóvel. Quando o Japão nos aconselha ir a Portugal sem sair do Japão, como poderíamos resistir?

Deixo, deliciado, a Castella do Paulo, entre o sorriso e dois beijinhos de Tomoko, as nossas fotos para mais tarde recordar e aqueles bolinhos e pastés de nata inesquecíveis. Agora que escrevo isto, por acaso ao som de um disco histórico de Amália, o Live in Japan, posso garantir-vos: fica bem esta franqueza fica bem. Uma promessa de beijos, dois braços à minha espera, é uma casa portuguesa com certeza.

Informações: Castella do Paulo, Bakurocho 898 – Kamigyo-ku, Kura A – Quioto 602-8386, tel: 075 748 0505. castelladopaulo.com -mapa: goo.gl/maps/KXg9KC57qpM2 (perto do santuário Kitano Tenmangu e a uns 20 minutos a pé do Pavilhão Dourado)

A Fugas viajou a convite do Turismo do Japão.

5 comentários a É uma casa japonesa com certeza, é com certeza uma casa portuguesa

  1. Pingback: É uma casa japonesa com certeza, é com certeza uma casa portuguesa – palheirão

  2. Coincidências: fui cliente, com alguma assiduidade do Castella do Paulo; quando morei no 118 da rua da Alfândega, na Baixa Lisboeta; estou agora a ler o artigo e encontro-me de férias em Quioto!

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    • Olá, Jorge, espero que esteja a gostar tanto de Quioto quanto eu gostei. Com tais coincidências, o melhor mesmo é dar um saltinho ao Castella… Acrescentámos algumas indicações no fim do post para facilitar o contacto e chegada. Depois diga-nos de sua justiça. Boas férias!

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