Música para cabeças cansadas

Mercearia. Foto: Enric Vives-Rubio

Das voltas na noite de Sal Rei, a última acontece na curva onde pára Stephane. A noite grande foi ontem, no antigo Mazurca, hoje Ribeira – uma espécie de armazém metálico sobre a areia em cores que se foram fazendo pastel pela força do sol. Foi lá que Badoxa pôs a ilha onde nasceu a morna – a Boa Vista – a dançar kizomba e tarraxinha. “Mas [hoje] no Rabil vai ‘tar bom, de certeza, com muita gente”, garante Stéphane, de olhar firme a sustentar os maxilares. Lá atrás ficaram os resorts estrelados, o funaná ao pé da piscina e os animadores de t-shirt amarela a ensinar a remexer o corpo. Os nossos vão agora moldados num táxi reluzente à boa maneira da ilha – uma pick up preparada para a terra, com pele falsa de animal insabido sobre o tablier e luzes azuis a iluminar as sapatilhas novas do condutor. Guia-nos com algum hip-hop no gosto, braços largos sobre o volante, colares multitema e chapéu branco. O destino é o Max Clube.

Morna sabemos que não vai passar. “Um DJ que coloca uma morna é p’ra matar”, dir-nos-ia mais tarde Toy, dançarino de 23 anos, natural de Santo Antão, a quem agradou a ideia súbita de um nome internacional. “Sim, é isso, pode ser Toy com ‘y’.” Acha que “a morna é um bocado como aquela música em Portugal – como é que é mesmo? Ah, o fado… Dá até sono”.

Ao estalar da primeira hora da madrugada, ninguém é mole o suficiente para acreditar numa morna em clube de cerveja, pensamos nós, na força de não querermos ser velhos. Mas uma coladeira ou um funaná vão bem. Num banco corrido, Max, o gerente, escuta o kuduro potente do topo da sua idade estática. Se soasse fado, imaginamos-lhe a mesma postura: que contrasta em mil tons com as “surras de bunda” e agachamentos que acontecem na pista. “Enrola, s’enrola, enrola, s’enrola!” E assim que os ponteiros avançam, o DJ gira kizomba para corpos colados como que com mel de cana. “Sim, o kizomba vem de Angola, mas a maneira como dançamos aqui não tem nada a ver mesmo. Eu, por exemplo, danço muito numa perna e às vezes encontro uma rapariga que só sabe dançar na outra”, pormenoriza Toy, amante de “batidas mais aceleradas”.

“A música está a mudar em Cabo Verde”, analisa o belga Nick Wauters, há 10 anos a trabalhar como animador em hotéis do arquipélago (cinco dos quais na Boa Vista). Aprendeu a música das ilhas nas discotecas – esses lugares onde na Europa se “briga” e aqui “todos vão para dançar, estar bem, conquistar” – e percebeu que “os jovens procuram cada vez mais o rap, o hip-hop, o electro, o house, o techno, coisas mais agressivas”. “É uma pena, porque não se está a preservar a cultura local”, constata, junto à recepção de um resort cinco estrelas, com um pedaço de paradoxo na língua para quem o ouve. Hoje, a emigração das mornas de Cesária Évora e de Tito Paris e dos sons de Lura ou de Elida Almeida para a Europa cruza-se com “as muitas influências” que vêm atracar em Cabo Verde. Por outro lado, “é mais fácil pôr uma música no computador e deixar rolar do que aprender a tocar um instrumento”, afirma o animador.

Seja como for, no Max Clube, o que importa é que a batida continue a rebentar, tal como no Bairro da Barraca, em Sal Rei, se prolongam as discotecas improvisadas, de trejeitos hardcore e oxigénio denso no ar de sal. Na Boa Vista, a música guarda-se para o fim-de-semana. O resto são dias de formiga, de trabalho no hotel (o turismo é o principal garante da população local) e corpo cansado que chega a casa, como o de Aniida, funcionária no bar do complexo Iberostar. “Quando era pequena, em Santiago, a minha mãe ouvia música de gente adulta [refere-se à morna], só que já tenho 28 anos. Então é mais o zouk, o funaná, a batida que eu gosto. Agora, toda a música é boa, porque a cabeça cansada vai embora.”

MaxClube. Foto: Enric Vives-Rubio

Rute Barbedo (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos) na Boa Vista, Cabo Verde

Deixar um comentário

O seu email nunca será publicado ou partilhado.Os campos obrigatórios estão assinalados *

Podes usar estas tags e atributos de HTML:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>