Com os olhos postos em Valência e a memória a navegar

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spaNão é fácil aproveitar todas as facilidades incluídas num navio-cruzeiro. A agenda é preenchida e não há mesmo falta do que fazer: cinema, espectáculos diferentes todos os dias, piscina interior, piscina exterior, piscina infinita, jacuzzi, ginásio, aulas… Isto para nem falar de todas as iguarias que há a provar e restaurantes a experimentar.

Mas a preguiça prega-nos uma rasteira e quando se dá conta já se adoptou um estado de dolce far niente.

DSC_4637Aliás, não é bem verdade. Porque ainda tentamos: segue-se para um pequeno-almoço reforçado e sem se dar por isso está-se numa visita ao spa; toma-se a direcção do ginásio e acaba-se a falar de Fernando Pessoa no gabinete do comandante; veste-se o biquíni para explorar a piscina e logo se está com o gerente-chefe deste enorme hotel-flutuante; pensa-se sair no porto de escala do dia – Valência – e, por razões de força maior, nem sequer se atravessa a saída do navio.

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Mesmo acordando às sete e meia da manhã com um sol intenso como foi o caso neste primeiro dia de Primavera.

A sensação de fracasso por não se ter conseguido embarcar no shuttle até ao centro da cidade é depressa substituída por lembranças.

Não só de Valência, por onde passei de carro no ano em que Portugal deixou o escudo e adoptou o euro, numa viagem de regresso de uma passagem de ano. Itinerário: Barcelona – Lisboa. Era dia 2 de Janeiro e, de forma a fugir às auto-estradas e autovías espanholas, decidimos (eu e três amigos) enfrentar o desafio de fazer o percurso por estradas secundárias, com passagem obrigatória precisamente em Valência para visitar outro amigo.

Foram 19 horas enfiados num verde Peugeot 106, durante as quais nos perdemos (várias vezes), parámos (outras tantas) para fazer amigos (e pedir direcções), infernizámo-nos uns aos outros e – não podia deixar de ser – percorremos os festivais da canção de fio a pavio, com grande destaque para as Doce ou Simone de Oliveira, mas não esquecendo outros sucessos do cancioneiro luso, como Verde vinho de Paulo Alexandre. Pelo meio do repertório entrou tudo de que havia memória.

Mas o ponto alto da nossa aventura viria a ser em Albacete, capital da província homónima, na comunidade autónoma de Castilla-La Mancha. Procurávamos um sítio para comer em ruas que pareciam desertas. Não só era dia de descanso para quem trabalhara na véspera e dia de Ano Novo, como a entrada de uma nova moeda ainda era estranha a todos. E, ainda por cima, ninguém nos parecia compreender pelas ruas. Encontrámos por fim um restaurante com um menu apetecível e em conta. E, apesar da má cara de quem nos recebeu, achámos que a nossa sorte tinha mudado.

O que se seguiu foi a mais bizarra experiência gastronómica: o esparguete à bolonhesa tinha sido posto nos pratos directamente do frigorífico e a carne (disseram-nos que era frango, mas mantemos as nossas dúvidas) era tão rija que, mesmo a esta distância temporal, a memória diz-me que ninguém conseguiu comer sequer uma garfada até ao fim. Já o café, morno, tinha um travo a lama que nos deixou nauseados. Nauseados mas bem-humorados. O estranho e horrível (não há mesmo nenhuma forma delicada de descrever a coisa) almoço deu-nos alento para mais umas centenas de quilómetros entre piadas e gargalhadas.

Hoje não saí do navio para ir a Valência. Mas, a mais de uma década de distância, lembrei-me de Albacete. E, só por isso, já valeu a pena.

pordosol

 

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Carla B. Ribeiro (texto) viaja no cru­zeiro pré-inaugural do Pre­zi­osa a con­vite da MSC.

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