A primeira vez que estive em Saint-Paul de Vence foi no Outono de 1994. Tinha acabado de sair “Monster”, o nono álbum dos R.E.M., e eles decidiram convidar-me a mim e a outro jornalista português para ir lá entrevista-los. Foi um dos encontros mais intrigantes que alguma vez me marcaram: Saint-Paul de Vence é uma pequena aldeia amuralhada nas alturas da Provence, um ninho de águias a 15 minutos de carro de Antibes, Nice e da frente de mar da Riviera francesa. Em resumo, um sítio completamente destituído de conotações rock ‘n’ roll.
Confesso que nunca tinha ouvido falar e até lá chegar também não quis saber – estava totalmente concentrado em entrevistar uma das maiores bandas do planeta, pelo menos naquela altura. A conversa decorreu num hotel-restaurante chamado La Colombe D’Or, que de imediato me deslumbrou pela extraordinária mistura de arquitectura medieval e obras de arte modernas. Depois de me despedir da banda também aproveitei para uma volta pela aldeia e fiquei maravilhado com as pitorescas ruelas empedradas, as vistas magníficas sobre o Mediterrâneo, os Alpes nevados nas suas costas.
A consulta de um guia fez-me compreender a escolha, aparentemente insólita de Michael Stipe e companhia: La Colombe D’Or é um lugar mítico da Côte D’Azur, que foi frequentado por alguns dos principais escritores e artistas plásticos do século XX, incluindo Braque, Léger, Picasso, Soutine e Prévert, que aqui deixaram um valioso acervo a título de pagamento de despesas. Os próprios R.E.M. vinham dos dois álbuns de maior sucesso da sua carreira, dinheiro para promoção não lhes faltava e “Monster” queria (desde o título) ser um álbum diferente. Um disco de guitarras distorcidas, mais, muito mais rude e difícil que os doces pop que antes os promoveram à ribalta internacional.
A ligação à Colombe D’Or e às vanguardas artísticas que celebrizaram St. Paul fazia então algum sentido, ou mesmo todo o sentido para os R.E.M. de 1994. Para mim foi a oportunidade de conhecer um sítio encantador, ao qual logo prometi, mas só agora consegui voltar. Com outro vagar pude apreciar a aldeia, que na verdade se resume a duas ruas: uma em que habitam os cerca de 400 habitantes, na maior parte estrangeiros e idosos, e a outra repleta de galerias de arte, na maior parte produzida a milhares de quilómetros de distância. Ainda se come bem na Colombe D’Or, mas na terra já só há turistas e galerias de arte eventualmente produzida no sítio de onde eles mais vêm.
Quando os R.E.M. lançaram “Monster”, St. Paul já deveria caminhar para isto, para se tornar um sítio a viver exclusivamente ou quase das memórias do seu apogeu intelectual e artístico. Também é verdade que o álbum de 1994, apesar de conter um par de excelentes canções (aliás, das que mais gosto), não partilha da magia pop dos seus maiores êxitos, nem da energia criativa dos seus inícios. O mesmo que, se calhar, se pode dizer do Braque, do Picasso ou do Léger que em idades já avançadas se vieram “restaurar” e semear obras de arte pelos salões da Colombe D’Or.