Ia distraído da paisagem de fora, como vou tantas vezes, ou a ver para dentro olhando para fora, como será tantas vezes, quando choquei com a estátua do poeta Manuel Bandeira. Podia dizer, mesmo de testa amassada, óculos à banda e galo a despontar, foi como esbarrar com um paredão de felicidade. Era, pois, um poeta a circunstância do meu embate, um poeta de pedra, uma estátua concreta e deposta onde não se esperaria achar poetas, muito menos estátuas, isto é, na via pública onde todos pudessem tocar, bater continência ou amassar os queixos.
É preciso ser mais específico. Caminhava nessa altura na Ponte dos Poetas e se fosse um viajante atento e vigilante teria levado o olhar a ver onde estariam os poetas que davam nome à ponte. No mínimo, ter cuidado por onde andava. Para ser sincero, levar, eu levei, vasculhando como o meu beagle Camilo cada pedacinho de chão, e até onde a vista alcançava, a circunstância do nome. Procurei nos horizontes possíveis e de íris felizes, à esquerda e à direita, em cada ponto cardeal, a origem desse nome de belo efeito (poético). Procurei em vão. Se poetas houvesse, só podiam ser aqueles que faziam a ponte a pé, percorrendo o longo passeio rectilíneo com o vagar de quem sobe, a indolência dos passos errantes em volta do caminho sem fim ou rumo a lugar nenhum. Perguntei ao botão esquerdo, a quem sempre faço perguntas difíceis, se o nome de baptismo da ponte seria um elogio secreto ao poeta que havia na alma colectiva recifense, uma ode ao povo pernambucano, viveiro de poetas como não havia outro torrão no Brasil inteiro. Havia sempre a possibilidade de os poetas terem soltado amarras durante a última crise, antes do fenómeno Lula-Dilma. Quem anda em pontes, e pontes fizeram-se para unir margens separadas, olha para as águas e é levado a pensar como o engenho e a necessidade derrotam os poetas, que nunca deixaram de ver os braços de terra, e a água que os separa, unidos e inseparáveis.
Ia então curtindo a minha poética de trazer por casa quando esbarrei com o poeta Manuel Bandeira. O primeiro pensamento, esse eu lembro-me bem, foi um imediato “desculpe”, como se a corpulência do abalroado me impelisse à urgência humilde, não fora este atirar-me da ponte fruto da circunstância de ter sido perturbado da sua contemplação ociosa. Agarrado à testa e ao unicórnio e de visão embaciada, só reparei no homem ser de pedra depois de lhe dar um par de carolos. O prodígio do escultor e o lugar inusitado da estátua, a meio do passeio da ponte e a ocupar-lhe a totalidade do espaço, faziam-no parecer reencarnado, poderei dizer assim.
Era uma estátua helénica talhada para um longo e digno destino. Estava de costas para a via, de sobretudo e chapéu, mãos sobre o parapeito, mas como se de repente pudesse abrir umas longas asas e evolar-se pelos ares. Tinha sido posto ali, o poeta, para obrigar os passantes a contornarem-no ou a ladearem-no ou talvez para lhe baterem a continência. Era uma tomada de pose ambígua pois se a intenção era essa tanto podia levar à curiosidade de ser lido como enterrar de vez todas as possibilidades pela maçada de se ter que passar aquele metro quadrado de passeio pelo lado da rua.
Era uma ponte de pouco movimento onde quase não passavam carros e até frequentada por mulas e jegues, um pouco como uma ponte romana de aldeia longínqua, mas o risco de ser atropelado não estava posto de parte. Na verdade, a poesia de Bandeira merecia o risco e até o traumatismo craniano. Apesar de estar ao nível dos homens, no seu 1,80m a contar do chão e sem pedestal, parecia muito mais alto, pois a cabeçada dei-a pelo meio das costelas. Encostei-me ao poeta debruçado sobre a amurada para tentar ver o que via daquele ângulo, de olhar dirigido ao falo (de pedra) de Brennand, o mestre escultor de que vos falei há dias, esse deposto no Grau Zero. Combalido e não tendo como conversar, tentei lembrar-me de um poema, uma paródia de reza que fosse para lhe honrar a visita e as durezas do galo.
Nada me vindo à cabeça, tirando o latejar do galo, foi então que me ocorreu quem me levara ali, à ponte dos poetas, o também poeta Pedro Américo de Farias, autor da célebre Viagem de Joseph Língua, tida pela Peregrinação pernambucana. Tinha-o entrevistado na qualidade do louco mais esclarecido do Recife, leitor apaixonado de Aquilino Ribeiro, coleccionador de uma “aquiliniana” notável que lhe ocupava a casa a ponto de ter vendido toda a mobília para caberem os livros, empilhados sem estantes em nome de uma certa ideia de liberdade. “Você não deixe de ir ao largo dito da Encruzilhada, de preferência dia 14 de Março, o Dia Nacional da Poesia”, disse-me Farias. Chegaria ao largo passando obrigatoriamente pela ponte e batendo a pala ao Bandeira. O ideal era fazer-me carregar de um terceto (inusitado e concretíssimo), algo como hai conto/raconto/hai ku ou então rola guerra/rola miséria/rola bosta.
_____
Entre Agosto e Dezembro de 2011, o escritor e viajante Tiago Salazar andou por 12 estados brasileiros a recolher conteúdos para o programa Endereço Desconhecido (a exibir na RTP2). Estas crónicas são o resultado do que acontece aos viajantes quando se entregam ao princípio de que são os países e os lugares que os atravessam — e não o contrário. http://tiagosalazar.com. Endereço Desconhecido no Facebook. Com o apoio da agência Nomad