Ana cubana

Vou contar-vos a estória de uma mulher-nuvem fugida da Cuba castrista e descida à terra da Bahia de todos os santos. Uma mulher contempladora de mundos que me chegou a flutuar ao sabor do vento. A mulheres assim, de beleza diáfana, beleza que nada mais convoca senão a contemplação casta e passiva, há quem chame ondinas, ninfas, musas ou, para os mais desconfiados, sereias fatais cujos encantos atraem para um fim trágico e inevitável.

Agora que escrevo, pondero se devo ou não contar tudo exactamente como se passou mesmo sabendo do risco de acharem que nada disto se passou necessariamente assim, porque ninguém é assim, livre, inocente e bafejado pelos dons da beleza e da bondade. N” A História Secreta de um Romance, o escritor Mario Vargas Llosa diz que “escrever um romance é uma cerimónia parecida com ostrip-tease”. Há aqui, tal como na vida do romancista e das meninas do strip, uma intenção de desnudar parte do véu e reconstituir esta estória gravada a fogo na minha memória.

Esta é sobretudo a estória de uma mulher de encantos universais por quem me apaixonei sem foros de malícia ou demónios que doravante me atormentem e obcequem.

Era fácil a paixão desatar logo ali, diante das suas obras-primas absolutas. Falo da casa na árvore levantada pelo seu próprio punho sem portas nem janelas “porque as casas também têm direito a ser livres”. A quinta edénica escondida nos ramais da mata atlântica liberta de cercas e arames farpados. Os maravilhosos cães de guarda, um quarteto de mastins dóceis e juvenis, mergulhados num estupendo transe, que guardavam apenas a lua, o sol e as ribeiras mansas onde se banhava como alguém que faz parte da selva e de nenhum outro lugar.

Ana, este era o seu nome. Ana cubana para os amigos de Serra Grande e Itacaré. Tinha deixado Cuba ainda menina logo após a revolução. O pai cometera o duplo crime de ganhar muitos pesos e de não querer doá-los à causa de Castro e seus muchachos. Fugiram logo em 1962 para Miami e Ana acabaria por escolher o Brasil como eterna morada. “Este é o meu lugar no mundo, el unico que conviene a mi felicidad“, disse-me, assim mesmo, de mão no peito cavado, saltando entre o português e o castelhano como quem salta de pedra em pedra, nessa noite que podia ser consagrada por um voto de amor de José Maria Heredia, o único poeta digno da sua ilha desolada pela ganância e a vaidade.

Ven, suspirada noche, y dirigiendo
Tu denegrido carro por la esfera
A la ciudad, el monte y la pradera
Ve con rápidas sombras envolviendo.

Este lugar de felicidade clandestina podia ser o seu próprio corpo ou Itacaré ou o Havai, onde tinha deixado um carro e uma bagageira cheia de vestidos de organdi, os seus maiores luxos além de pulseiras de ouro e colares de âmbar. Dizia isto tudo saltando de assunto em assunto como as nuvens que não se detêm e ganham formas inesperadas. De vez em quando interrompia-se para dançar, cantar e sorrir, de grande sorriso inebriado da maravilha juvenil, e dizer apenas que não sabia nada de nada mas que do pouco que sabia estava levantado ali naquele chão. Falava de pregar estacas, de dar vida nova a árvores tombadas, de cuidar de cães como filhos, de criar um filho como mãe solteira e de não se entregar aos embustes do amor disfarçado de paixão repentina.

Havia homens que lhe tinham atravessado a vida, espantados com o corpo ágil de mulher menina e sem idade, tatuada de sutras budistas e de cabeleira revolta como uma deusa das grandes liberdades. Tudo nesta mulher madura confluía no mistério, no improvável, no etéreo e não era impensável olhá-la como uma arranca-corações, uma Messalina, uma cortesã de meneios estudados. Mas Ana estava acima das satisfações imediatas, dos olhares concupiscentes, dos devaneios lúbricos.

Era uma mulher de subtilezas que não movia a sua vida pelos instintos básicos e a sedução. Era, na verdade, desde que conhecera o rastafari Stass, da ilha de Roatán, o mais próximo que estivera de alguém irmanado com o que tem de belo e redentor a natureza e a possibilidade de ser, sem vício ou volúpia. Quem a visse a flutuar numa rua de Ilhéus, onde ia abastecer a despensa da Pousada Sage Point (o negócio que tinha para ganhar a vida) podia tomá-la por uma hippie revivalista. Uma louca de pele tisnada vestida de trapos e a falar e cantar sozinha.

Era a mulher que tratava dos pássaros e das árvores como gente de carne e osso e que apesar de parecer alheia aos problemas das almas terrenas tinha uma palavra gentil para toda a gente, os descalços, os miseráveis, os excluídos ou os novos coronéis da Costa do Cacau que a olhavam boquiabertos quando lhes dizia nos olhos que estavam hodendo tudo outra vez. Tinha sido preparada na América para a civilização e embora a viver numa árvore, alimentada de sol, águas de ribeiros, orações e amores comunais não degenerara numa freakalucinada. Fumar a sua maconha, o seu baseado, plantado no jardim de casa ao lado de canteiros de orquídeas selvagens, era apenas parte do ritual de ser. Nessa altura era capaz de dizer que só tinha um livro em casa e não sabia de que falava ou qual o título, mas que tinha a vaga memória de falar de areia e de caminhos que se bifurcam.

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Entre Agosto e Dezem­bro de 2011, o escri­tor e via­jante Tiago Sala­zar andou por 12 esta­dos bra­si­lei­ros a reco­lher con­teú­dos para o pro­grama Ende­reço Des­co­nhe­cido (a exi­bir na RTP2). Estas cró­ni­cas são o resul­tado do que acon­tece aos via­jan­tes quando se entre­gam ao prin­cí­pio de que são os paí­ses e os luga­res que os atra­ves­sam — e não o con­trá­rio. http://tiagosalazar.com. Ende­reço Des­co­nhe­cido no Face­book. Com o apoio da agên­cia Nomad

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