Sob o signo de Capricórnio

Somos ou não vítimas (ou carrascos) das primeiras impressões de um indivíduo ou lugar? Por exemplo, qual o pensamento sincero que nos atravessa diante de um homem posto ali pelos atalhos do destino para nos receber como guia encartado que mais parece um candidato a vagabundo, de roupa coçada, cabelo oleoso pelo meio das costas e perfumado a mofo e terebintina? Um homem porém que mal abre a boca de dois molares e três caninos devemos bater continência por ali estar um poço (um abismo, um canyon) de sabedoria ambulante.

Eu, viajante burguês, como somos todos, cães e gatos, me confesso. Quando vi Manuel Pacheco, antes de saber quem era Manuel Pacheco, o guia avisado eleito o maior guia do Brasil pelo insuspeito Guia 4 Rodas, o desbravador, o pioneiro da Chapada dos Veadeiros, o homem gentil e de grandes asas abertas para o mundo, vi nele o último exemplar de mendigo brasileiro, antes do fenómeno de abolição do pobre quase conseguido por Lula da Silva.

Percorria o nosso homem em Brasília o aeroporto de Brasília zaranzo como um peru ou um pedinte intruso apanhado a circular em aposentos palacianos. Era um homem-barata a querer enfiar-se na primeira sarjeta, movido por ímpetos de fobia social. Fui o primeiro da comitiva a apertar-lhe a mão calosa e logo fiz o que faz meio mundo de ignorantes da palavra justa. Julguei-o e ao seu hálito corporal de gambá enfiado durante uma semana num guarda-fatos de um antiquário falido. E continuei, de caderninho em punho, a tirar notas do figurão que tinha de sobra tanto um fedor ancestral como um carisma da cabeça aos pés.

Apresentou-se de fugida como “Pacheco”, falou de uma filha a viver em Lisboa (na outra banda) e de conhecer, de ouvir falar, um par de Pachecos famosos na Lusitânia, um dos fados, que lhe dava água pela barba sempre que tinha portugueses de visita (pois queria que cantasse fados e ele fado só o do 31), e outro, da família das pitonisas.

Antes de nos fazermos à cidade, resumiu que Brasília era um “terror de excesso de beleza” e não via hora de a gente chegar na Chapada e no Alto Paraíso, a terra onde chegara há trinta anos, ou talvez onde nascera há mil anos. Enquanto já todos a bordo lhe tinham inventado nomes de baptismo e alcunhas a preceito, de Tiradentes a corcunda de Notre Dame, que Pacheco disfarçava com um caminhar altivo, eu entretinha-me a desafiar-lhe a timidez.

Assim fui sabendo da sua história mirabolante, de como se tinha instalado no meio do mato com a sua patroa (patroas há-as lá como cá, dizia) ainda o paraíso não era o Alto Paraíso, nem os hippiestinham feito daquela a sua última morada antes do fim do mundo chegar (nessa altura, marcado para o derradeiro dia de 1999, agora para 21 de Dezembro de 2012). Montara a tenda no Monte da Lua, o lugar mais belo do mundo, segundo ele, e segundo o vosso escriba, a par do Fish River Canyon da Namíbia, mas dormia ao relento e saía todas as madrugadas “à cata de trilha”, como quem vai à caça ou à pesca ou, por estes dias, à procura de trabalho.

Chamava-se a si próprio um chifrudo feliz ou um cabra macho, embora a alusão cornuda fosse apenas ao facto de ter nascido sob o signo de Capricórnio, o que podia não dizer nada como podia dizer muita coisa, como por exemplo a sua predilecção por rochas altaneiras onde se colocava, de pé e meio despido, senão como um bode expiado de todos os pecados como um afoito índio guarani. Aí, no Alto Paraíso, o lugar mais provável do mundo para um homem ser feliz (com a sua patroa) montara primeiro a tenda e depois a casa de pedra onde fazia questão de me levar a provar o seu prato de antologia, umas migas jamais vistas no Pantagruel e excelentes para terminar com o meu masoquismo vegetariano.

Graças a esta promessa, andei três dias em Brasília possuído por uma vertigem salivar, uma misturada da receita do Pacheco com as obras do dueto amoroso não sexual mais conseguido da História (Lúcio Costa e Óscar Niemeyer). Para ser sincero, até sonhei com as migas e o meu regresso à grande família dos carnívoros. Tive apenas um pesadelo com o estado das panelas.

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Entre Agosto e Dezem­bro de 2011, o escri­tor e via­jante Tiago Sala­zar andou por 12 esta­dos bra­si­lei­ros a reco­lher con­teú­dos para o pro­grama Ende­reço Des­co­nhe­cido (a exi­bir na RTP2). Estas cró­ni­cas são o resul­tado do que acon­tece aos via­jan­tes quando se entre­gam ao prin­cí­pio de que são os paí­ses e os luga­res que os atra­ves­sam — e não o con­trá­rio. http://tiagosalazar.com. Ende­reço Des­co­nhe­cido no Face­book. Com o apoio da agên­cia Nomad

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