Há um lugar no Irão incrustado nas remotas montanhas Karkas em que as mulheres se recusam a ser anuladas pelo manto negro do islão. Resistem a vestir de negro, impondo as suas tradições antigas. Silenciosamente, mantêm o seu estatuto e cultura intactos perante o poder religioso, qual Asterix entre os romanos.
Em Abianeh, as mulheres distinguem-se por usar longo lenço branco com motivos florais – indiferentes aos tons monocromáticos e pesados do Islão – que usam para tapar ombros e tronco, com uma saia que insinua os joelhos. Um traje habitualmente feito pelas suas próprias mãos e que as identifica. Os homens não vestem tanta cor, optando por calças largas e casacos igualmente pouco justos ao corpo.
Aqui há um dialeto próprio e peculiar que tem resistido ao longo dos séculos. Uma paisagem humana que se espalha na montanha em tons de adobe, numa arquitetura peculiar e pitoresca reconhecida pela UNESCO, que a transformouem Património Mundial.
Estamos apenas uns 80 quilómetros a sul de Kashan, em desvio de rota rumo a Isfahan (o ‘português’ Ispaão não me convence). Na verdade, Abianeh tem uma identidade, personalidade e história que bem justificavam paragem mais prolongada. Cedo percebo que as habituais horas que os visitantes diários lhe dedicam me vão saber a pouco. Muito pouco.
Esta relíquia do Irão rural e tradicional tem gente simples, humilde e conversadora, à semelhança do que encontramos (também) no Portugal distante do litoral, que o poder político se tem esforçado por anular, riscar do mapa. Mesmo que a comunicação verbal seja complicada, há espaço para a comunicação. Nem que somente a corporal. E, aqui, o visitante também serve de atração turística para os dóceis locais.
Garantem-me na hospitaleira Abianeh que não querem saber do Islão, embora ele ande por aí: nada puderam fazer para evitar a construção de mesquitas. Zoroastrismo. É o zoroastrismo (lá iremos) que aqui professam, indiferentes às sucessivas tentativas do governo de mudar o estado das coisas. Na rua, os meus calções e os do ‘camarada’ Cristóvão (a tapar os joelhos) parecem encarados com maior naturalidade, mas quando visitamos lugar religioso para o Islão, somos convidados, com reconhecida educação, a abandonar o espaço mal tenhamos acabado de fotografar o que desejamos.
Calcorreamos as ruas por asfaltar detendo-nos uma e outra vez em casas que o adobe faz parecer sempre inacabadas ouem ruínas. Háum detalhe interessantíssimo, já que boa parte das portas têm dois batentes, com diferente sonoridade. “Assim quem está em casa sabe se é homem ou mulher e a forma como deve estar arranjado”, explicam-nos.
Para apreciar devidamente o cenário, devemos perder-nos nas ruelas e pátios da parte baixa da aldeia, até conseguirmos sair da mesma, subindo, depois, uns íngremes50 metrosde monte: é aqui que temos a ‘foto’ completa deste lugar que enfeitiça.
No caminho, idosa carcomida pelo tempo oferece maçãs ao grupo Bornfreee. Assim, sem mais nem menos. Nada desejado em troca. E ainda nos compensa com sorriso maior do que o nosso. Percebem, agora, o feitiço?
Rui Barbosa Batista relata no blogue Correr Mundo a sua aventura pelo Irão. No site www.bornfreee.com pode aceder a outros relatos e imagens sobre a viagem.