Tulum: Gorilas na Bruma

Stay Present
Os paraísos não se descrevem, descobrem-se. Neste caso, porém, talvez tenha sido Tulum a descobrir-me a mim enquanto eu me empenhava em descobri-lo para vocês.
Aterrei em Cancun vindo de Madrid com bilhete só de ida. Troquei dinheiro no aeroporto e saí pela primeira vez à rua depois de 15 horas confinado a ares condicionados e a ambientes artificiais — Ganda baaaafo! — Aquele calor húmido, combinado com o rugido dos motores dos autocarros e com um burburinho atipicamente poliglota, provocou-me a sensação de estar a aterrar numa verdadeira babilónia tropical. Pelas janelas dos dois autocarros que me levaram primeiro a Playa del Carmen e depois a Tulum, consegui apenas vislumbrar, por entre o sono, as cortinas semicerradas e a escuridão da noite mexicana, as luzes azuis dos controles policiais que se sucediam pela estrada fora.

Tulum: vila

Cheguei por fim a Tulum às onze da noite de um Domingo, e arrependi-me logo de ter abandonado o smartphone em Portugal com tanta determinação. Supunha-se que nessa noite dormiria em casa do amigo de uma amiga, cujo número trazia escrito num papel mas, mergulhada num bizarro semi-silencio, a vila parecia quase abandonada, e cabines telefónicas nem vê-las. Descobri no entanto um hostel onde me deixaram aceder à net e, num rasgo de sorte, lá consegui estabelecer comunicação com o Isaac, que me deu a morada para onde me deveria dirigir em táxi. Constatei então que os nomes das ruas são uma cena que — pura e simplesmente ­— não assiste ao pessoal de Tulum, e acabei por me ver obrigado a descer do táxi num cruzamento aleatório. Estava sozinho, à noite, no México, com duas mochilas às costas, num qualquer bairro soturno, exausto e desorientado… — Onde é que eu me vim enfiar?
Noite na vila de Tulum
Depois de quase uma hora a perguntar direcções, perdido entre cães vadios, carros com vidros fumados que se deslocavam lentamente pelas ruas cheias de lixo e personagens aparentemente sinistras, consegui finalmente encontrar a casa onde, por entre acordes de guitarra, me esperava a sincera hospitalidade do Isaac e do seu mini-cão, um amável chihuahua chamado Amadeo. Aterrei no chão em cima de dois sacos-cama, ao lado dos meus anfitriões, e dormi como um rei. Acordei pouco antes das oito da manhã ao som de uma magnífica orquestra de pássaros inéditos. Abri a porta de casa, ouvi em volta e respirei fundo. — Estás no México! — gritaram-me os pássaros, as palmeiras, a estrada de terra batida e as cores berrantes das casas.
Dia na vila de Dulum
Durante a semana seguinte vivi nesse bairro que, à chegada, me parecera “soturno” e que, dia após dia, se me afigurava mais acolhedor, entre personagens que classificara à partida como “sinistras” e que agora me sorriam, por entre frases lançadas numa estirpe de espanhol que eu começava aos poucos a compreender. Aprendi onde se comem os melhores tacos do mundo, onde se compram os sumos e as águas de fruta mais frescas e baratas da zona, os mais deliciosos tamales, o ceviche mais fresco, e comecei a distinguir os sons que assinalam a passagem de cada um dos inumeráveis vendedores que cruzam as ruas de Tulum: a buzina dos gelados, o apito da fruta, o pregão do pão, o assobio dos jornais… Atento ao pulsar da vila, por entre brincadeiras com cães vadios, fui assistindo ao desvanecer dos meus — já de si escassos — medos europeus.
Amadeu o mini-cão

Tulum: praia

Primeiro dia não é primeiro dia se não se apanhar logo um escaldão, o que efectivamente me aconteceu por entre as entrelinhas de duas viagens de bicicleta de ida e volta à praia, que no total somaram uns 40km. Espraiado na areia branca e fina como açúcar de pasteleiro, embalado pelo sussurrar do vento a esgueirar-se por entre as folhas das palmeiras, percebi rapidamente a devoção dos piratas lendários ao mar das Caraíbas.

Palmeira na praia de Tulum

Foto de Anna Fishkin

 

Originalmente baptizada com o sonante nome Zama — que em Maia significa “amanhecer” — Tulum representou, na época pré-hispânica, um importante local de culto e de observação astronómica, afirmando-se como um dos principais portos comerciais do Império Maia. Séculos mais tarde, algures entre os anos 70 e 80, o governo mexicano escolheu a zona de Quintana Roo, e em especial Cancun, como localização para um centro internacional de férias que se tem vindo a expandir a uma velocidade vertiginosa, nem sempre respeitando os contextos ambiental e social.

Talvez devido à delimitação de certas áreas protegidas, como é o caso da extraordinária reserva natural de Sian Ka’an, o turismo em Tulum desenvolveu-se porém de forma mais consciente e controlada do que em outras localidades da península de Yucatan. Dotada de uma atmosfera — una vibra — muito singular, Tulum constitui assim actualmente uma espécie de refúgio para visitantes de todo o mundo, que aqui se vêm entregar à contemplação da natureza, aos mistérios da sabedoria Maia, aos rigores do yoga e da meditação, aos prazeres das massagens tailandesas ou ayurvédicas, à profundidade dos mergulhos nos cenotes [1], ao doce ondular do mar caribeño e ao travo agridoce dos mojitos vagarosamente sorvidos em clubes de praia.

Yoga no Caribe

Foto de Anna Fishkin

 

A cerca de 10km da vila, a praia de Tulum é um ecossistema à parte. De um lado da estrada, a praia propriamente dita, cujo acesso se encontra quase totalmente obstruído por uma fileira de eco-resorts, alegadamente autossustentáveis e amigos do ambiente; do outro lado a selva, à boca da qual se sucedem os restaurantes e bares de decoração eco-chic, cujas luzinhas iluminam a noite como uma espécie de feira-de-atracções permanente, carregada porém de bom gosto e inspiração tropical. Ao longo da estrada, são numerosos os geradores de electricidade, cujo ruído faz por vezes frente ao canto dos pássaros, ao murmúrio das ondas, ao som do vento por entre as palmeiras, mas que sustentam de facto esse mesmo estilo de vida tão natural e sereno que parecem querer contrariar.
Geradores
Para além dos trabalhadores locais e dos piratas internacionais que rondam as imediações em busca de aventuras e outras gemas preciosas, a praia de Tulum é frequentada sobretudo por turistas relativamente opulentos vindos dos quatro cantos do globo, entre os quais se contam muitos norte-americanos e canadianos que procuram uma escapadela alternativa aos seus ritmos de vida acelerados. Para pessoas com menos zeros na conta, a estratégia é claramente — como constatou o Meira e muito bem — trabalhar na praia e consumir na vila, onde os preços podem chegar a ser dez vezes mais baixos, superando ainda assim em larga escala os preços no resto do México.

Residência Gorila

Ao km 8,5 da estrada da praia encontramos a Residência Gorila, uma espécie de oásis das artes, pequeno manicómio criativo povoado por artistas de áreas e proveniências diversas. Liderada pelo carismático Poncho, a residência mantém-se através do aluguer de quatro deliciosos estúdios a hóspedes com um certo perfil, albergando por outro lado gratuitamente artistas e projectos que estejam de acordo com a sua estratégia de envolvimento criativo nas esferas social e ambiental locais. O meu projecto Sound Escapes foi um dos felizes contemplados.

Passarada à parte, o dia na Residência Gorila começa com o zumbido da máquina de sumos e da liquidificadora a convidarem ao pequeno-almoço. Algumas oitavas acima, o chiar dos ovos e dos vegetais que saltitam na frigideira da encantadora Carito acompanha a marcha em perfeita harmonia. Algures entre as 9 e as 10, nem os sonos mais pesados resistem ao ronco do gerador eléctrico que concede os primeiros duches. Quando a bomba de água se cala, sabemos que é hora de desligar o gerador.

 

Recuperada da eventual animação da noite anterior, a residência vai pouco a pouco resgatando as suas vibrações quotidianas: Guillaume — o mais anão de dois gigantes belgas — agita um pincel no ar e exclama “Go for it man!”; Ananda — mexicana do Norte, doce, complexa, etérea — responde às perguntas frequentes dos residentes mais imberbes enquanto faz por se concentrar num texto para o website da residência; Vish — inglês de ascendência indiana, o homem que conheci até hoje com mais ideias por minuto quadrado — desbrava linhas de código à velocidade da luz, encerrado na sua rede mosquiteira como se de um casulo se tratasse; Sun Ru — afro-americano vindo de um futuro ancestral e apaixonado pelas noites ao relento — canta, dança e espalha o seu charme aos quatro ventos; de phones nas orelhas, Alejandro — um jovem e talentoso artista mexicano — dedica-se à próxima das suas fabulosas ilustrações; Lauren — uma pintora californiana tatuada que num primeiro momento tive bastante dificuldade em ler — pinta murais, mesas, garrafas, pessoas e o que mais lhe apareça pela frente, deixando por vezes escapar um sorriso quase encantador; Elon e Emanuelle — respectivamente da Suíça e do Canadá — conseguem convencer-nos a participar nos seus circuitos de fitness, desmultiplicam-se em acrobacias e dançam como se não houvesse amanhã, irradiando breaks e alegria por toda a residência; Spencer — que garante ser do Oregon mas que mais parece ter sido abduzido a uma série sobre arte urbana passada na Califórnia — edita as últimas cenas do seu próximo filme enquanto saboreia o pequeno-almoço, dá os últimos retoques num quadro novo, brinca com Usinch (o cão de Poncho, patinador exímio e mascote oficial da residência) e conta histórias surreais sobre Jimbo the Hobo — o rei dos train hobos [2] — e outras personagens arrebatadas ao exotismo mitológico norte-americano.
Desenhos de Guillaume Desmarets
Silenciado o tilintar dos copos e as particularidades cromáticas das numerosas línguas que se cruzam sobre a mesa de jantar — em modo deitar-cedo-e-cedo-erguer ou à volta de alguma ousada incursão nocturna — a residência mergulha por fim num silêncio pontuado pelas amenidades da praia e da selva, de novo conferindo o merecido protagonismo ao ladrar dos geckos sob o céu estrelado.

Era uma vez no México

Muito embora tivesse planeado deter-me em Tulum por um máximo de dois meses, está agora claro que a minha estadia aqui se vai prolongar pelo menos outros dois: justamente quando a minha conta bancária se preparava para bater no fundo, vi-me inesperada e oportunamente contratado — Zau! — por uma agência de ecoturismo para lhes desenhar um plano de comunicação.

Tulum atrapa… — tenho ouvido dizer por cá frequentemente e, embora possa soar a chavão, reconheço-lhe hoje uma certa verdade. A omnipresença do sol, a serenidade do ritmo caribeño, vivido com o mínimo de roupa possível sobre o corpo, os mergulhos partilhados no mar verde e transparente, os banhos furtivos em cenotes misteriosos com crocodilos jovens à espreita, os escorpiões capturados com taparueres na cabana onde dormimos, as conversas inspiradoras com outros viajantes e os felizes encontros e reencontros com piratas lusos neste contexto tropical, os suculentos churrascos à noite na praia e os intermináveis margalitros [3] bebidos por palhinhas, os passeios de bicicleta com o Turco e a Melania sob a lua cheia, o dançar de pés descalços na areia em festas que sabem sempre a pouco… A vontade de partir não é muita, de facto.

Reserva de Sian Ka'an

Foto de Anna Fishkin

 

Se o plano inicial consistia em empreender uma rota por seis países da América Latina em menos de um ano, durante estes quase dois meses passados no caribe mexicano fui-me apercebendo de que a minha viagem irá provavelmente demorar um pouco mais do que o programado. Para lá de Tulum e da Cidade do México, também Chiapas, Oaxaca, Sonora, Guadalajara e Tijuana deixaram de constituir apenas pontos mudos num mapa para passarem a representar lugares concretos cujas tentadoras sonoridades não poderei deixar de descobrir. Ainda bem que, além do smartphone, deixei também a pressa em Portugal.


[1] A península de Yucatan foi abençoada com um mundo secreto e subterrâneo de lagos água doce, chamados cenotes.

[2] Estirpe rara (embora mais comum do que eu pensava) de vagabundos que saltam para comboios com o intuito de viajar à borla, onde muitas vezes os esperam seguranças armados e com predisposição para finais menos felizes. Diz-se destes praticantes da atividade conhecida como freighthopping ou train hopping que são geralmente gente dura e que não é incomum exibirem comboios tatuados no peito.

[3] Margalitro = 1L de margarita


 

Mas afinal a que soa Tulum?

Sound Escapes

“Tulum: Gorilas na Bruma” é o 2º episódio da série Sound Escapes, um projecto artístico onde a escrita de viagem se encontra com a arte sonora, e que pretende dar resposta à questão — A que soam os Lugares? — Este artigo encontra-se também publicado em inglês no website do projecto. Um grande obrigado à Anna Fishkin por colaborar neste artigo com as suas maravilhosas fotografias. Obrigado também à Casa da América Latina, à Câmara Municipal do Porto, à ESAD Matosinhos e a todos aqueles que com quem me tenho cruzado nesta viagem só de ida e que, dia após dia, me têm apontado na direcção do meu lado melhor.

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