A chiadeira faz lembrar a tradição bárbara que persiste em Portugal. Eque tem os suínos por infelizes protagonistas, às mãos da insensibilidade humana. Afinal, é apenas uma criança de dois anos e tal a quem querem rapar o cabelo. Mãe e suposta tia. E a máscula cabeleireira. Parecem insuficientes para travar o desespero do catraio. Na verdade, quando vejo o resultado final, acho que devia ter berrado bem mais. Máquina zero de lado e atrás. Apenas cabelo da nuca para a frente. Estilo ‘malga’ na testa.
Pergunto porque este corte. Se tem algum significado especial. “Porque é bonito”, ripostam. Nada a argumentar. A minha viola já está no saco. Ou no cesto. O mesmo em que uma outra senhora transporta uma criança. Serena e aparentemente confortável. Partilha o espaço com as verduras e outras compras. O mercado espraia-se sobretudo numa longa rua. Infelizmente, hoje não há comércio de animais vivos. É especial, garantem-me. Fico-me pelas vendedoras em coloridos trajes étnicos. Chá. Flores. E um pouco de tudo. Não é para turista, mas para os locais. A ‘história’ nos rostos vale mais do que qualquer produto exótico.
Há um dentista a laborar em sala minúscula, aberta para a rua. Vende também itens de caráter turístico. Singular. Pergunto por preço de chapéu. Deixa a idosa cliente de boca aberta. Literalmente. E vem atender-me. O colorido barrete vem em boa altura. Sol aperta e o cabelo não abunda. Agradece os cerca de quatro euros e volta ao seu ofício. Dá o toque para almoço. Imediata barafunda com centenas de crianças e adolescentes, devidamente trajados, a sair a correr da escola. Mais sorrisos, alguns ‘hello’ e a vida continua… Aqui tudo é genuíno e tem história. Sinto que não estou neste tempo. Recebo simpatia e sorrisos. Iguais na diferença. E que privilégio…
Os segredos do lago Erhai
O lago Erhai fervilha em vida. História. Tem encantos de sobra. Nada como contorna-lo. O mercado de Xizhou é apenas a primeira paragem. Reservamos táxi para o dia. E damos-lhe sinal de paragem em imenso campo de cebolinho. Dezenas de trabalhadores espalhados no horizonte. Mal tinha abandonado a viatura e Maria já atacava de máquina fotográfica sempre atenta. Conversa de circunstância, devidamente traduzida por Jinyu Xie. Já sabemos um dos vários pratos a saborear neste dia. As árvores engolidas pelo lago são poéticas. E, sabendo disso, aves várias pousam nos seus despidos ramos. Dão-lhes ainda mais carácter. A montanha revê-se em imagem sumptuosa nas tranquilas águas…
Um grupo de jovens descalça-se e irrompe no cenário, molhando-se até aos joelhos. O efeito das fotos justifica a ousadia. Há painéis solares por todo o lado. Não apenas nas casas, mas também na iluminação pública. Um pequeno avião faz parte do ‘kit’ energético. Segue a direção do vento e vai alterando a posição do painel ao longo do dia. Há uma aldeia da etnia Bai que não tem turistas. Uma preciosidade. Fazemos a vontade à nossa curiosidade. Os homens estão para fora. Este agora é reduto exclusivo de mulheres. Que não dispensam o orgulhoso traje da sua etnia.
A conversa começa na única rua que rasga a aldeia e tem assim uma espécie de abrigado ponto de encontro. Não tarda e o grupo é reforçado. Sobra quem queira saber a curiosidade que move estes estrangeiros em aldeia sem ponta de interesse para o turismo de massas. Gostamos da gente. Apreciamos a arquitetura de um povoado que não revela carências. Rural, mas aparentemente pujante. E quando assim é, os sorrisos fluem mais facilmente. Dizem que são 19 os picos de montanha e 18 os cursos de água que brotam pelo seu corpo ate se espraiar em no lago Erhai.
O carro rosna para chegar a meio da montanha, onde nos deixa. Estamos no Tao Xi Organic Valley, precisamente entre os picos mais altos: Zhonghe Feng e Xiaocan Feng. Começámos a subir e encontramos uma espécie de pombal, com surpreendentes pinturas. Jurava que o espanhol Juan Miro tinha deixado aqui a sua marca. Os caminhos são íngremes e os picos ainda demasiado distantes. Invertemos a marcha em escondido hotel de charme. Um complexo com vasta plantação de chá, que cruzamos, e as melhores vistas para a cidade velha de Dali e o lago, igualmente abraçado por imponentes montanhas do lado oposto.
As requintadas esplanadas – ao lado da piscina, junto a cascatas naturais e uma terceira sobre um discreto estrado em cima da relva e sob esplendorosa árvore – bastavam para me convencer a ficar. As casas de apoio, em pedra cinza escura, dão-lhe o mais charmoso toque rústico, num ambiente de plena tranquilidade. Não vimos ninguém. Os três pagodas são a marca registada de Dali. Imponentes na paisagem. Mas eu ainda estava na montanha…
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Rui Barbosa Batista relata no blogue Correr Mundo a sua viagem pela China e Birmânia. No site www.bornfreee.com pode aceder a outros relatos e imagens sobre a viagem.