Quando os deuses se zangaram

Antes de mais gostaria de deixar aqui o mapa com alguns dados sobre a minha viagem. Inclui todos os locais que visitei, e inclui alguns dados tais como distâncias, nomes das cidades, etc.

http://www.travellerspoint.com/member_map.cfm?user=FilipeTeix&tripid=330533

Chegara a Vientiane com alguns amigos que arranjara durante a épica viagem de autocarro desde Luang Prabang até à capital do Laos, e o cansaço após 22h de viagem era mais do que aparente. Era como que a chuva que se entranhava nos ossos, por melhor que fossem os impermeáveis que usávamos.

Tuk-tuk até ao centro da cidade e lentamente lá tentava eu procurar o hotel onde supostamente Sarah me esperava. Sentia-me confuso com tudo o que se passava à minha volta. Vientiane é uma cidade vibrante, cheia de coisas e pessoas. Nada que se compare às restantes cidades que visitara no Laos. Pergunto na recepção por uma rapariga chamada Sarah, ao que me respondem que ela já se tinha registado algumas horas antes.

Começo por colocar as minhas coisas no quarto onde cabem 8 pessoas, e tento mudar de roupa. Sinto que mergulhei para uma piscina, sendo que apenas mudara para uma agradável sauna. O quarto era humilde, com beliches de metal pintado de azul. Algumas mantas, e cobertores encontravam-se dobrados sobre as camas vazias de gente. As restantes, faziam-se dessa mesma gente que as ocupava. Pessoas e coisas que só algumas pessoas carregam, pintavam uma história. Todos somos o que carregamos recordava eu.

Alguém batia à porta e era Sarah.

Senti de imediato o coração a bater mais depressa, e algum alívio por ter uma razão para abandonar o “colega” de quarto que me bombardeava com histórias. Um iraniano de perto de 30 anos, que aparentemente tinha fugido do seu país após ter escrito alguns textos sobre o regime, fugia agora para o Laos, bem longe do seu país natal. Não eram no entanto as suas histórias que me incomodavam, mas sim as palavras que usava para se classificar como vindo do país dos terroristas. Achei desnecessário e ainda mais confuso para a minha mente débil.

Trazia um sorriso nos lábios e um beijo inesperado para um dia cada vez mais pesado para mim. Era altura de passear um pouco e tentar sorrir com Sarah. Sentámos-nos numas escadas perto do rio, enquanto lá do outro lado daquele rio cheio de lama chamado Mekong, uma tempestade vibrava sobre a Tailândia. Passámos horas a relembrar o momento em que nos conhecemos, o que ficou para trás, o que poderíamos vir a ter um dia e o que iríamos estar a perder. Lentamente os nossos corpos aproximaram-se um do outro e daí nasceu mais um beijo.

Tinha um sorriso grande nos lábios. Sorriso esse que levei comigo para o restaurante, onde nem mesmo um dos pratos tradicionais do Laos e quase toda a Ásia o faria desaparecer. Admito que após esta refeição, acabei por ver ovos cozidos de uma forma completamente diferente. Ninguém espera vir a ter pesadelos com algo tão simples e banal como ovos cozidos. O ovo parecia normal desde o início, até que quando após desferir um pequeno golpe com a minha colher, ele começou a sangrar. Se estivesse num filme de terror, ou algo de natureza semelhante, admito que este cenário seria bem possível, mas na realidade, a minha tolerância de vegetariano por pouco que me levou ao vómito. No entanto após ter trabalhado um ano com animais lá respirei fundo e coloquei de lado tamanha “iguaria”.

Após um curto passeio pela cidade, decidimos regressar aos nossos quartos e discutir para onde iríamos seguir viagem. Ambos tínhamos pensado em visitar uma das maiores grutas existentes no sudoeste asiático, e assim o fizemos. Sabíamos que perto das grutas de Kong Lor, poderíamos ficar em casa de locais, trocando os quartos de hostel onde tínhamos vivido nos últimos tempos por algo completamente diferente.

9h nunca pareceram tão curtas. Admito que recordo com alguma emoção aquele momento em que os músculos rígidos nas pernas, o não ter tempo para usar uma casa de banho, ou as senhoras que se passeavam pelo autocarro agitando bizarros chupa chupas de carne, faziam cada vez mais parte da rotina do dia a dia. Há muito tempo que não me ria tanto com Sarah. Fora sem dúvida uma viagem divertida, onde cantámos, contámos piadas, e apesar de sentir que estaríamos perto dum fim há muito anunciado, restava-me alguma esperança.

Chegámos a uma pequena vila, onde existia um hotel, e pouco mais do que meia dúzia de casas. Algumas crianças corriam pela estrada de terra batida na nossa direcção, para receber mais alguns turistas. A temperatura baixava drásticamente, forçando-me a vestir o casaco e a colocar o meu lenço vermelho à volta do pescoço. Apesar de sentir que precisava de um quarto de hotel, talvez por sentir a paranoia a crescer em mim, acabei por concordar com Sarah e lá decidimos seguir para uma experiência de “home stay”. Após meia dúzia de metros, lá encontrámos uma família disposta a receber-nos por apenas 50.000 kip (pouco mais de 5 euros). As condições não eram nada o que eu esperava. No topo de uma estrutura de madeira, com cerca de 6m de altura, encontrava-se uma casa sem paredes e chão de madeira. Veio-me de imediato à cabeça a ideia parva de quão aborrecido seria se deixássemos cair algo por entre as tábuas de madeira no chão.

Era claro que não existia casa de banho, ou duche. No entanto a generosidade das pessoas era maior do que todos os luxos do mundo, e nem um Hilton poderia dar o que ali viríamos a receber. Aquele fim de tarde era confuso para mim. Sei que usei demasiadas vezes a palavra confuso neste texto, mas realmente não existem outras palavras para descrever o que se passava.

Após um passeio curto, decidi “enfiar” o pé numa poça de lama de proporções épicas. O dia fechava-se lentamente sobre nós, enquanto o sol se escondia por detrás das montanhas que abraçavam os vastos campos de arroz que dançavam com o vento. Também eu me fechava lentamente sobre a minha própria loucura e tudo o que estaria para começar. A família que nos recebia, apressou-se a trazer-me água para lavar o meu sapato enlameado. Cedo me senti estúpido ao perceber que a água que usara, era a única que tinham disponível para lavar roupa ou para tomar banho. Foi aqui que comecei a sentir-me cada vez mais impaciente e cada vez mais irritado com algo a crescer dentro de mim.

Sarah estava distante e eu pouco poderia fazer visto não haver para onde “fugir”. A mesa estava posta e o jantar era trazido lentamente por todos os membros da família. Cada um carregava com ambas as mãos uma taça. Sorri ao perceber que tal como a família, todas as taças tinham uma cor e feitio diferente umas das outras.

 

Os mais novos abandonaram a sala, e os mais velhos ficaram, indicando-nos através de gestos, a segurar um pedaço de arroz na mão. Foi então que se aproximaram de nós e ao ritmo de “dizeres” que murmuravam na sua língua, nos ataram pulseiras de um branco como nunca vira, nos nossos pulsos.

O resto da noite, dividiu-se entre tentar comunicar com os membros mais novos, observar, observar, e observar. Por vezes pouco mais há que fazer do que ver o que se passa à nossa volta. E cedo percebemos que na vida não existe nada mais belo do que parar e olhar para o que nos rodeia.

3 da manhã e acordo em pânico. Não consigo dormir, e algo me corre no peito. Sinto-o a crescer mais e mais. Sinto que se apodera de mim como que se de um animal se tratasse. Procuro os óculos e não os encontro. As lentes de contacto desaparecem também no meio da confusão. Lá fora os insectos gritam ao som do meu próprio desespero. Sarah não responde, deitada, ignorando o que se passa, chorando. Algo maior e maior cresce dentro de mim até que umas luzes se acendem dentro da casa. Respiro fundo, ao encontrar o meu bloco de notas e um rato de peluche que a minha mãe me dera para a viagem. Encontro também um urso que uns amigos me deram, e sinto-me como que entrando num banho de água quente. Tudo abranda e posso finalmente respirar.

O dia seguinte seria feito de despedidas e de visitas a uma das maiores grutas, se não a maior, do sudoeste asiático. Sarah estava cada vez mais longe, e foi então que decidimos apanhar transporte para seguirmos para Thakhek. Ouvimos e cantámos por inúmeras vezes a música que fez com que tudo começasse. Cody – Catch the Straw. As nossas vozes inundavam a parte de trás da carrinha que nos transportava, pintada por um por do sol inesquecível. Seria o meu último momento quase perfeito com Sarah. Demos as mãos, bebemos dos nossos sorrisos e seguimos viagem ao som do que fizera com que tudo começasse.

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