Bom, a boa noticia é que sobrevivemos, e estou neste momento em Santa Marta, Colômbia, a escrever para vos contar a história. Balanços ficam para o fim, depois do relato destes cinco dias, irrepetíveis, por vários motivos.
Continuando no dia em que fiquei, o da partida, malas feitas e sorrisos rasgados, encontrámo-nos no centro de Portobelo, para embarcar no bote, com todas as nossas coisas, rumo ao barco. O capitão, Tom Lewandowski, um gigante de dois metros, parcas palavras e simpatia contida, é um polaco que entrou para o Guiness Book há poucos anos, pela travessia “non-stop-around-the-world” que fez no barco em que iríamos viajar, o Luka –
www.soloaroundtheworld.com. Tinha lido excelentes referências sobre o barco e a viagem em si, em fóruns como o da Lonely Planet, e especialmente dada a comparação com outros barcos e experiências menos agradáveis, estava confiante com a travessia.

Chegados ao barco, instalados, ficámos com a cabine da proa, com uma cama em baixo, que ficou para o Simon, uma em cima, para o Pedro, e uma de casal, que dividiria com o Ricardo. Podia ser pior, pensei – o barco estava overbooked, e três pessoas iam ficar a dormir nos sofás da sala. Pouco depois das 18h, partimos, rumo a San Blas. O grupo era simpático, e foi certamente um dos pontos positivos da viagem: o Simon, um jovem casal americano (
www.drivetheamericas.com/wiki/brian-and-lindsay), dois irlandeses e quatro alemãs – todos em viagens longas, entre três e sete meses, pelas Américas. Junto com o Tom, a Bea, o Yuri (todos polacos) e o Wacek (o jack russell do barco), perfazíamos um total de 15 pessoas.
Entre conversas, jantámos apenas bolos e queques – a Bea avisou que a primeira noite podia ser dura, e que era melhor ir de estômago vazio. Quem dera que não tivesse comido nada. Uma meia hora depois da partida, o barco começa a balançar, o Pedro e o Ricardo seguem, com sono – efeito imediato dos comprimidos – para a cabine. Eu aguento-me um pouco mais na sala, mas logo sigo a deitar-me, esperando que o enjoo passasse. Erro crasso – nem cinco minutos em posição horizontal, e não aguento, nem o calor, nem a ondulação aguda, nem a vontade de vomitar. Fico o resto da noite na pilot house, junto com o Tom e a Bea, passado um bocado com a companhia do Pedro, também terrivelmente maldisposto. E a coisa começa mal, muito mal.

15 de Janeiro
Já menos enjoada, mas ainda ressentida da falta de sono e do vazio pesado no estômago, chegámos finalmente a San Blas, ao nascer do sol. O cenário é paradisíaco, há-que dizê-lo, nunca tinha visto igual, e provavelmente não voltarei a ver. O arquipélago de Kuna Yala (San Blas) é composto por 365 ilhas, umas de média dimensão, outras minúsculas, mas todas com palmeiras, areia mais ou menos branca, e o verde transparente do mar caribeño. Atracamos ao largo de um das ilhas, e descemos no bote, preparados para passar o dia em terra firme. Almoçou-se um peixe frito bastante razoável, e jantei um frango frito já mais banal, cozinhados numa cabana/bar explorada por uns fulanos que insistiam em deixar a música – horrível, claro está – nas alturas, e vendiam pepsis, sopas instantâneas e afins. A ilha em si não tinha rigorosamente nada de especial, e fiquei até desapontada com a falta de genuinidade dos supostos nativos, os Kuna. Valeu pelo que explorámos do mar, até à ilha mais próxima, e por umas breves brincadeiras com os miúdos dessa ilha, nadando de regresso. Jogámos umas cartas, vólei de praia, snorkelling pouco interessante, e assim se passou o dia, tristemente nublado, mas passou-se bem. No barco, aproveitando o facto de algumas pessoas terem preferido dormir no deck, fiquei a dormir na sala, deixando o Ricardo com a cama só para ele – o que aliás, acabaria por se verificar no resto da viagem toda.
Pensei, mais do que uma vez, que não voltaria a cair no erro de percorrer distâncias loucas e fazer viagens destas para aproveitar paisagens tipo bilhete-postal, onde pouco mais se faz do que aproveitar a tranquilidade e a beleza de um local, descansando, claro, mas fazendo no fundo aquilo que faço nos meus dias sossegados de férias, em Afife, no Alentejo, nas minhas praias preferidas, em locais a que sempre regresso, e que me preenchem infinitamente mais. As viagens que quero fazer, para o outro lado do mundo, são para conhecer culturas, cidades, amostras do sentir e viver diário das pessoas, sons, comidas, paisagens exóticas também, certo – mas não sítios de praia, mergulho ou muito menos resorts de luxo ou palmeiras ou piscinas. Isso tenho, ou a uma hora de carro de casa, ou quanto muito a três horas de avião, na “minha” Sicília.

16 de Janeiro
Depois do pequeno-almoço, três horas de navegação até outra das ilhas, que passei no deck a levar com as ondas, mas bem e sem enjoos. A paisagem continua igual, as ilhas surgem uma após a outra, até que chegamos à Isla Tortuga, bem mais interessante do que a anterior, por ter menos visitantes, mais espaço, e bem mais tranquilidade. Pagámos dois dólares pela entrada – algumas das ilhas são privadas, exploradas pelos Kuna. Ainda que não conhecendo os das outras ilhas, pela amostra percebi que era de esquecer a ideia de nativos, indígenas de roupas tradicionais ou línguas incompreensíveis. São uma tribo independente, mas de hábitos continentais, ainda que explorem as ilhas de San Blas com uma interferência governamental mínima, e em grande isolamento, com regras de governo próprias.

A história, explicaram-nos, teve origem em desentendimentos posteriores à separação do Panamá da Colômbia, e na autonomia que os Kunas quiseram manter, após serem “empurrados” para a soberania da recém-criada nação panameña. Cedo metemos conversa com eles, e regateando, deixaram-nos dormir na ilha nessa noite, por mais uns três dólares, com fogueira incluída. Toda a gente alinhou, e fomos ao barco apenas para jantar, regressando de seguida, com sacos-cama e uns casacos, caso chovesse. Os nossos anfitriões foram extremamente simpáticos – seriam uns cinco ou seis no total – e não se cansaram de nos trazer coisas para ajudar a passar a noite, colchões e redes para as árvores, e de recolher as folhas de palmeira, para a fogueira. Foi uma noite mágica, essa sim. O céu claro, as estrelas brilhantes, o tempo quente. As conversas junto ao fogo, regadas com algum vodka e rum das nossas amigas alemãs, a música das guitarras que elas tinham trazido, enfim, o sonho de dormir numa ilha-quase-deserta, check.
17 de Janeiro

Acordei com o sol, aí pelas oito, e fomos arrumando as nossas coisas com calma, depois de tomar banho numa poça de água doce junto à cabana dos Kuna. Vieram-nos buscar para o pequeno-almoço no barco, e ficámos lá durante a manhã, no deck, regressando à ilha para almoçar e passar o resto da tarde. As últimas horas de puro ócio, de aproveitar o sol e o mar, antes da partida. Depois de termos ajudado o Tom e a Bea como tradutores, a acertar uma negociata para passarem a incluir dormida e jantar na ilha, como nós tínhamos feito, despedimo-nos dos nossos amigos da ilha, e segui, com tristeza. Pelas 17h, partimos, deixando para trás San Blas, e com o alto mar pela frente, até Cartagena. Comi a medo, e fomos ficando pelo deck, até o mar começar a ficar arriscado, e a inclinação do barco cada vez mais acentuada. Nem arrisco ir para o quarto – há uma fuga, e ainda que com a janela do tecto fechada, a água escorre pelas paredes até nos deixar o quarto ensopado, quente e malcheiroso. Tomo o lugar junto ao Tom, a apanhar a brisa da noite e o pulso à tempestade, sabendo que não iria dormir com o mal-estar. O Pedro junta-se a mim, tentando dormir; volta e meia sobe uma pessoa ou outra, ou os sacos de vómito apenas, mas nós os dois ficamos, não descendo sequer. Mantenho-me calma, apesar de saber que aí vinham as piores 36 horas da viagem, e respiro fundo.

18 de Janeiro
Nasce o sol, saímos para o deck, já com o mar não tão bravo, tento dormir, mas sem conseguir mais do que 20 minutos de seguida. Mais tarde, já na sala, consigo umas três horas de sono. Comi uma fatia de pão, meio hambúrger e bolachas, o dia inteiro. O Tom diz-nos que a noite foi de “rough storm”, estragou alguns equipamentos do barco, mas que correu tudo bem e não disse nada antes “para não assustar ninguém”. Entre leituras e música, sempre no deck, põe-se o sol, e sei o que vem aí: a última noite no banco junto ao Tom, com o Pedro. Alternando posições, a levar com algumas ondas, a pensar, agradecer aos Arcade Fire, Fleet Foxes, Bon Iver, Florence e Apparat pela companhia, e a desejar que as horas passassem rápido.

19 de Janeiro
Outra vez, nasce o sol, e aproxima-se a costa. Cartagena de Índias, finalmente, a Colômbia. O barco atraca, malas feitas, em cinco minutos estou pronta para sair, o mais rápido possível.
Como está bom de se ver, a experiência foi para mim precisamente o contrário de tudo o que havia lido: o barco é velho e está a precisar de uns remendos urgentes; a falta de espaço é por vezes sufocante; a sanita exige um exercício com uma bomba para funcionar, que nem sempre é fácil de fazer com o barco em movimento, e chuveiro, nem vê-lo, durante os cinco dias de sal incrustado no corpo; a comida não era má, mas também não era boa, com excepção para os abacaxis e as melancias que levávamos para as ilhas; o Tom e a Bea não eram assim tão simpáticos, o que se revela especialmente quando têm de aturar passageiros que não “caem para o lado” com o efeito secundário dos comprimidos, uma chatice. Para o Ricardo, marinheiro nato sem enjoos, a experiência foi certamente diferente; já o Pedro, penso que ficou com uma opinião parecida com a minha. Foi um erro, o maior até agora, e espero, o maior da viagem: gastar 490 dólares que esperávamos bem gastos, por poupar alojamento e comida durante cinco dias, e uma calma viagem de veleiro, foi uma ilusão. Foi deitar dinheiro ao mar (literalmente), no que registarei como uma odisseia com 30% do tempo passado em excelentes momentos, mas que nunca na vida compensaria o sofrimento dos outros 70%. E, tentando ser objectiva e imaginar esta viagem sem vómitos e noites em claro, ainda assim me parece cara, para as condições do barco, já que claro, as da navegação não se controlam. Mas bom, estas coisas não se adivinham, vivem-se, lamentam-se, e não se repetem.
Piso terra firme, aliviada. Tonta, ainda, só conseguiria comer umas horas depois. Mas logo ficou tudo bem, e amanhã retomo o relato, espero, destes três últimos dias de caribe colombiano.