A última volta na terra dos Santos

Avenida Principal do Paúl

Avenida Principal do Paúl

Um frango no interior de um forno de cozinha é a melhor forma para descrever a sensação, com a temperatura em subida vertiginosa e já pelos 30 graus centígrados. Nem mesmo o facto de nos encontrarmos a escassas centenas de metros do mar afasta a sensação de sufoco. Seguimos em direção à Garça, numa estrada onde as subidas se misturam com as descidas e as curvas com as contra-curvas.

Final da estrada da Garça

Final da estrada da Garça

A velocidade não é muita e paisagem começa agora a dar os primeiros sinais de repetição. “Não passámos já aqui?”, pergunto eu, enquanto se apressam a explicar-me que no dia anterior havíamos passado naquela zona, mas a mil metros de altitude. Tal como nas outras zonas visitadas, à medida que avançamos para o interior o isolamento vai-se tornando cada vez mais notável. Subitamente, o alcatrão é substituído por um percurso esguio de terra batida praticamente intransitável… a estrada da Garça, afinal, não passa de uma interminável via sem saída, abruptamente interrompida numa zona habitada por não mais de quatro ou cinco famílias.

O silêncio podia até ser perturbante mas uma enorme variedade de aves e animais vão pontualmente fazendo-se ouvir. Subitamente, é a voz de um agricultor que me chama à atenção; “Vizinho, dormiu bem?”, grita ele em crioulo de um lado para o outro da serra. A resposta não se faz tardar e do outro lado um pastor responde. E a conversa continua num crioulo que, para nós, é completamente incompreensível. O forte isolamento desta ilha e a pouca convivência com os países da Europa impediram que a língua se abrisse mais ao mundo, tal como aconteceu nas ilhas onde os portos foram utilizados como rota de passagem no tempo dos primeiros navegadores.

Percorremos novamente o caminho no sentido contrário e, ao entrarmos na vila do Paúl, Firmina faz questão de nos levar a conhecer mais um familiar. Segundo ela vamos provar o melhor Pontche caseiro da ilha de Santo Antão. Dona Yolanda não hesitou em receber-nos e enquanto nos vai servindo, partilha algumas das suas histórias de vida. Correia, um indivíduo certamente mais experiente nestas andanças, ao levar o copo à boca pela primeira vez, apressa-se a repetir insistentemente que aquele é sem dúvida o melhor Pontche que alguma vez bebeu!

O grupo com a Dona Yolanda e o seu Pontche

O grupo com a Dona Yolanda e o seu Pontche

A curiosidade em descobrir o ingrediente secreto assume papel de destaque na conversa e nada mais se aborda a partir desse momento. Yolanda evita a conversa e pouco mais adianta além do facto do grogue ser marinado por sementes de maracujá antes de misturar o mel. A temperatura continua a subir, não só pela posição do sol, mas acima de tudo pela quantidade de copos que já tinham sido servidos. O que resta deste néctar divino é engarrafado para seguir viagem e avançamos em direção ao cento da vila do Paúl.

A enorme estátua de Santo António, erguida no alto de um monte, capta a nossa atenção. Segundo nos explicam, havia sido lá colocada durante a noite, há algumas décadas atrás, como forma de agradecimento por parte de um artista plástico local. Não foi difícil encontrar o espaço “Morabeza”, um local descontraído e envolto numa decoração fora do normal. Com um pouco de sorte e paciência na espera, foi possível manter contacto visual com o Santo António enquanto nos deliciávamos com a última garopa cosida.

A nossa jornada em Santo Antão está agora a chegar ao fim, apenas 23 quilómetros e os dois primeiros túneis construídos em Cabo Verde nos separavam de Porto Novo. Num misto de tristeza e felicidade, os olhares cruzam-se por entre o silêncio. Nem mesmo as vacas que pastam junto à berma ou as cabras a quem cedemos prioridade servem de mote para uma última risada. As placas na berma da estrada indicam os quilómetros em falta, como se de uma contagem decrescente se tratasse.

“Porto Novo – 3 Kms”, carrinhas com mais do dobro da carga para que foram concebidas, mulheres transportando crianças nas costas, negociantes que aguardam mercadoria, outros que a tentam despachar, agentes de viagens que deixam clientes e outros que os tentam cativar… pessoas, viaturas e animais circulam em ambos os sentidos. Os ingredientes mais que necessários para plantar o caos duas vezes por dia na única via de acesso ao porto e mais uma vez transmitir-me a sensação de uma realidade não muito distante do dia-a-dia na cidade de Lisboa.

Sento-me no piso superior do “Tarrafal” que se prepara agora para partir. Aprecio o sol que desaparece na linha do horizonte, enquanto as lágrimas me correm pelo rosto. Encontro-me visivelmente emocionado, sinto que esta viagem me transformou como nenhuma outra o havia feito. Nunca conseguirei encontrar um sinónimo para a palavra “Morabeza”, mas sinto que mais uma vez deixo esta terra conhecendo o seu significado.

2 comentários a A última volta na terra dos Santos

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