Tiraspol: Misterioso beijo comunismo-capitalismo

Na verdade, o nosso Mundo é bem mais igual do que todos julgamos. A diferença está apenas na nossa mente. Na perspetiva com que o nosso olhar se interessa pelo que está diante de nós.

Seja por que prisma for, a Transnístria, um país que não existe e vive envolto e má fama, tem muitos ingredientes para ser experiencia que se recomenda.

Sim, é mesmo o que parece: comecei pelo fim. Faço-o para que não corras o risco (muitas vezes habitual) de menosprezares o que desconheces, principalmente se as primeiras linhas não te ‘agarram’. Agora que, eventualmente, chamei a tua atenção, volto ao caminho…

Quem chega a Tiraspol logo se depara com surpreendente realidade: comunismo de beijo na boca com o capitalismo. Pode soar estranho, mas explorem este distinto lugar e logo me dirão.

O ‘comunismo’ está lá. Nas estátuas do ‘querido’ Lenine. Na arquitetura sóbria dos edifícios austeros. Nas inúmeras bandeiras da cor do sangue. Num indelével ‘controlo’ da sociedade que alguns sugerem. E na propaganda sempre presente. O capitalismo? As grandes marcas começam a espreitar a sua oportunidade. Chegaram as cadeias de ‘fast-food’ (não as norte-americanas… ainda) e a sua popularidade ‘esmaga’ o tradicional. As roupas tristes dos mais velhos já são um contraste com o que a moda internacional dita para a população mais nova, que já usa os acessórios desejados num qualquer país do denominado primeiro mundo.

Estamos a meros 70 quilómetros de Chisinau e a dúvida é se estou na segunda maior cidade da Moldávia ou na capital da autoproclamada independente Transnístria. Os russos estão em clara maioria, seguindo-se os ucranianos na proporção de um terço do global. E nem um quinto da população é de moldavos que, creio, não usufrui dos mesmos direitos cívicos dos seus pares. Complicado para quem não entende de frações, eu sei. A análise de Tiraspol pode mudar mediante a resposta à tal perguntinha Moldávia-Transnístria. Mas isso daria um tratado e estamos aqui para falar do prazer das viagens.

Quem vem de Bender, a primeira imagem da cidade é o moderno estádio do Sheriff de Tiraspol, a equipa de futebol mais endinheirada da região, a ombrear com alguns bons clubes europeus: logo nos anuncia quem manda por estas bandas. Sheriff é marca visível em várias áreas da sociedade, um projeto empresarial que tem merecido demasiados favores do poder político, com o qual está intimamente mesclado. Viktor Gushan é o ‘dono disto tudo’ lá do sítio.

Os arredores não são propriamente um assombro estético e quando chegamos ao centro a inevitável grande avenida, neste caso a 25 de Outubro. Surpreendentemente, respira praticamente sem carros. Nota-se mais a presença da polícia do que viaturas a circular.

Trocar dinheiro é fácil, embora tenhamos de nos sujeitar ao câmbio que se lembraram de inventar para a sua moeda, que ninguém aceita internacionalmente. Levantar ou trocar… apenas para o que for necessário. E para a nota que sempre sobra, neste caso para recordação única.

Em vários pontos, cartazes afixados nas paredes com fileiras de generais condecorados. São tantas as medalhas que não sei como as aguentam ao peito. E aposto que todo o minério do país está ali, para honrar os heróis da Transnístria. Bom, e também para jovens desportistas. Muito repetida uma imagem de quatro ginastas que, juntos, devem carregar uns bons quilos de suposto ouro, prata e bronze. Ninguém me sabe dizer quem são ou o que conquistaram.

Junto ao rio, com uma promenade bastante popular em termos de lazer, uma mãe realiza os caprichos da filha, a rondar os 30 anos. Fotos de todas as formas e feitios. Sem qualquer recato ou vergonha, em sessão ousada nas poses, não no traje. Retribui o sorriso que lhe endereço e até se põe a jeito para foto que lhe tiro. Uma cena impensável quando os sempre unidos jugos político e religioso esmagavam ferozmente as liberdades individuais. Até isso está a mudar…

Um burro devidamente trajado, em tantas tonalidades num ‘casaco’ que até faz inveja ao arco-íris, chama a atenção. Descansa um pouco enquanto nenhuma criança quer alimentar esta iniciativa privada e subir no seu dorso para passeios junto ao rio Dniestre. Há quem pesque nas suas margens, onde está atracado um velho e grande barco. Bar e restaurante. A ousadia empresarial privada, mais uma vez, a florescer. Até no peixe seco que idosa vende na rua… juntamente com diversas ervas aromáticas. Sábia combinação e dedo para o negócio, da ‘ti’ Alina.

Ao lado, um parque para jovens mais ‘radicais’: há música, patins, skates e muitas quedas. Rapazes e raparigas com grande destreza nos desportos até há bem pouco só praticados somente pelo alegado sexo-forte. A farta publicidade de jovens meninas em lingerie – à semelhança do que já está banalizado no ocidente – ajuda a uma emancipação que não aparenta ser acessível a todas as gerações.

Estamos na zona central de Tiraspol onde se concentram boa parte dos seus encantos. A começar por igreja singular, na forma e conteúdo, bem exíguo. Não tem mais do que meia-dúzia de metros quadrados e vigia a ‘chama eterna’ dos que já se foram em nome da Transnístria. Todos a respeitam: benzem-se ao passarem pela mesma ou entram para uma pequena oração ou para acender uma vela. É ortodoxa e a sua cúpula parece uma cebola dourada.

Ao lado, a poucos metros, um tanque de guerra. Crianças e adultos brincam com o T-34, que domina a praça e foi aqui colocado para comemorar a vistoria soviética na II Guerra Mundial. Não há atração que mereça mais fotos.
Penduradas as crianças. Em pose militar, de peito-feito, os adultos. Homens. Apesar desta estranha familiaridade com o mundo bélico, a verdade é que este é um destino seguro. Em 2006 rebentou um artefacto num autocarro em Tiraspol… e não houve mais registos, conhecidos, de barbaridades iguais. Nas ruas não vislumbro qualquer detalhe que inspire cuidados especiais ao viajante.

A Transnístria acumulou fama de ser um destino perigoso para viajar. Há fortes evidências de tráfico humano e de armas (ao longo dos anos diversos documentários internacionais com câmaras ocultas), o que certamente explica o raríssimo turismo por estas bandas. Relato unicamente o que os meus olhos vêm e ‘sentem’.

A alguns metros, o ‘cemitério’ dos heróis do país. Chama eterna para quem deu o sangue na luta pela ‘independência’, libertando o território da Moldávia. “Não tens nome, mas as tuas ações são eternas”, pode ler-se no memorial que também alude a quem defendeu a ampla nação soviética na ida guerra no Afeganistão.

Estes memoriais são das principais atrações, tal como a estátua de Alexander Suvorov, o seu fundador. Enorme e ‘plantada’ junto a interessante jardim. A uns 200 metros, o palácio presidencial e a inevitável gigantesca estátua de Lenine, que quase esmaga o encanto do palácio presidencial, que, na realidade, não parece ser muito: o mais puro e frio austero estilo soviético.

Se os memorais e as histórias tristes a eles associados cansarem, nada como um relaxado passeio ao longo do rio. Inclusivamente um pequeno cruzeiro no Dniestre. Esta é, sem dúvida, a zona mais indicada para atividades de lazer. Até a dois…

A deambulação vai longa por esta urbe que já se candidatou a maior museu do mundo a céu aberto. Os passos firmes levam-me a outras paragens em Tiraspol quando sou abordado por um grupo de teenagers. Curiosos e simpáticos. Mesmo sem arranharem convenientemente o inglês. Perguntam, num linguajar mal-amanhado, o que penso da cidade e logo querem saber se gosto de futebol. Dá para nos entretermos uns bons minutos. E para posar para as inevitáveis fotos que todos gostam de tirar com estrangeiros. Tiraspol tem fama de pessoas apressadas nas ruas e sempre de cabeça para baixo. Terão sido outros tempos, não é isso que agora se encontra. As tímidas visitas dos forasteiros ajudarão, por ventura, a uma nova realidade.

Esta abordagem é feita mesmo em frente ao impressionante edifício do parlamento, o chamado “House of Soviets” (Dom Sovetov). Em termos arquitetónicos, é dos pontos de maior interesse, ligando a principal concentração de atrações históricas ao estimulante parque Pobeda. Estamos ainda na 25 de outubro, certamente bem conservada. Entrando numa qualquer paralela, tudo bem diferente. Um ou outro prédio em normal estado de conservação, porém a grande maioria em apurada decadência.

O parque Pobeda – por perto está o Kirov, que bem merece a nossa curiosidade, bem como a próxima fábrica de brandies Kvint – é uma imensa surpresa, e não apenas por ser bonito, cativante. É aqui que encontro famílias inteiras em desfrute da natureza. Faz-me lembrar Portugal dos anos 80. E tudo o que de bom isso representa. Não vislumbro viciados em novas tecnologias, antes pura brincadeira. Risos audíveis, correrias. Cor e música. Um cenário nada típico do que tenho encontrado em ‘paisagens’ sob o manto da cortina de ferro. Grigory Ivanovich Kotovsky, um aventureiro figura militar e política soviética, reside aqui, em autoritária estátua. Ninguém quer saber. Nas suas ‘barbas’ há apenas cor e o som de ingénua felicidade. Aqui encontro um simpático parque de diversões, um pequeno comboio para crianças, carrinhos, patins, pequenos lagos e fontanários com crianças lá mergulhadas em inocente histeria… tudo acontece sem preocupações de maior.

Aproveitamos a esplanada para saborear o sol que gentilmente nos afaga. Contemplar toda esta intensidade – não encontrada em mais lado algum de Tiraspol – é excelente exercício de viagem. Muito aprendo.

Na verdade, o nosso Mundo é bem mais igual do que todos julgamos. A diferença está apenas na nossa mente. Na perspetiva com que o nosso olhar se interessa pelo que está diante de nós. Seja por que prisma for, a Transnístria, um país que não existe e vive envolto e má fama, tem muitos ingredientes para ser experiencia que se recomenda.

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

A minha mais doce Transnístria

Não lhe sobram muitos dentes e o seu rosto exibe marcas de uma vida que não pareceu fácil, mas nem isso lhe rouba o sorriso. Maternal. Obviamente, não entende uma única palavrinha do que lhe tento dizer.

Achará piada ao facto de insistir numa conversa que, no seu íntimo, sabe não ter muito por onde se lhe pegar. Mas entra na ‘dança’. Responde-me em russo. E imita-me em alguns gestos, sempre guiados por umas mãos de quem fez do trabalho a vida. A amiga junta-se à cavaqueira e completa o cenário. Rimos por tudo e por coisa nenhuma. Não estarão muito habituadas a este inesperado. Por estas bandas não há muito turismo e o pouco que aparece não é suposto ser ‘assim’.

“Rui” é palavra que devo evitar em russo. Dependendo da forma como o pronuncio, corro o risco de ser rude. Indelicado. Digo-lhes que sou o “Batista”. Podem tratar-me assim. Assentem com a cabeça. Alina e Valentina, a dupla de resistentes septuagenárias que me embeiça.

Como as nossas avós de aldeia, Alina usa um lenço na cabeça, que não é negro. Camisola com borboto, sob um pequeno casaco sem mangas, também avermelhado, e um avental em tons de castanho. Valentina aposta nos castanhos e beijes, num corpo mais débil em cima de inesperadas sapatilhas brancas. Usa gorro, camisola de gola alta, gabardina e um avental por cima que combina na perfeição com a sua companheira de luta. Ambas são vendedoras de rua. À moda antiga, sem qualquer luxo.

Alina é uma artista, sobra-lhe criatividade no ofício. O que poderei dizer quando alguém cruza dois carrinhos de bebé, adapta um tampo por cima e assim tem uma banca móvel pronto-a-vender? É verdade que não tem muito. Peixe seco, uma espécie de queijo, legumes em calda, uma cerveja de litro e uma balança. Comparada com Valentina, soa a bem-sucedida comerciante. Mais modesta, a sua ‘sócia’ tem apenas um caixote de cartão virado com algumas monocórdicas peças de cebolinho em cima. Juntas, proporcionam-me o diálogo que recordo com mais carinho, na minha passagem por Tiraspol.

Atrás de ambas, há um sonolento cão refastelado no meio da estrada. Pachorrentamente, segue o burburinho que atrapalha a sua rotina. Uma ou outra vez ainda levanta a cabeça, mas não se manifesta. Não se move nem late. E não me diz o seu nome. Tal como ficarei sem saber o nome de outra septuagenária que, não muito longe, alimenta a vida a vender jornais. Sentada, em aparente desconfortável banco, com os periódicos encostados a uma árvore. Os sapatos são castanhos. As meias pretas. Aposta numa saia azul e em sobretudo verde. O lenço na cabeça dá-lhe todo o colorido, em tons de castanho, laranja e verde. Não chego a abordá-la. Contemplo apenas o seu olhar absorto. Imagino a sua vida. Faço filmes mentais e prefira não saber a realidade. Vende um jornal. Pouco depois outro. Pega em todo o dinheiro e conta-o. Ali. No passeio. Torço para que não demore o seu regresso a casa.

Dois outros anciãos trocam galhardetes. Sentados em banco de jardim. Um, ainda mais velho do que o outro, parece artista. Longas barbas brancas a fazer ‘pendant’ com a boina preta. Ambos oscilam entre tristes cores escuras no discreto traje. Acredito que a conversa tenha uma paleta de tonalidades mais joviais.

A que vos descrevo é a minha Transnístria favorita. Aquela que jamais será adulterada. São postais de difíceis tempos soviéticos. E que já não vão a tempo – nem o quererão – de mergulhar em ritmos de vida capitalista que já assoma Tiraspol. Aliás, este é o grande e surpreendente contraste na capital da Transnístria, em que o tradicional e a modernidade ainda procuram um equilíbrio: aqui, o comunismo já anda de beijo na boca com o capitalismo.

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

BENDER: é o forte que te coloca no ‘mapa’

Passado o ‘filme’ de cruzar a fronteira, um outro em forma de celebração religiosa. Não. Nada de errado se passa. Apenas a surpresa de nos depararmos com os devotos em cuidados rituais ortodoxos.

Extravasam o perímetro da igreja. Há crianças que são levantadas para que o líder religioso as abençoe. Há cânticos. E muitos olhares de fé intensa. Estamos em Bender.
Entrando na Transnístria, não há como a evitar. Oriundos de Chisinau, capital da Moldávia, não temos alternativa a esta cidade, também nas margens do Rio Dniestre. Bender é nome otomano, que persiste: este burgo já se chamou Tighina no século XV (1408), altura dos primeiros registos da sua existência.

O que aqui se destaca? Claramente, a fortaleza. Que, como todas, nasceu para proteger. Arquitetura medieval turca de 1500. Oito torres persistem na infraestrutura que já acolheu mesquitas e banhos turcos. Sempre houve quem se soubesse tratar bem…

Chegar aqui pode não ser óbvio, mas mais confuso é tratar do bilhete. Há um edifício de conotação – e decoração – claramente soviética. Dentro, um soldado semi-dormente numa minúscula caserna interior que antecede a entrada para uma sala, que mais parece de uma casa particular. Não nos entendemos numa só palavra, mas o dinheiro é linguagem universal. Não temos rublos da Transnístria, porém o dinheiro moldavo serve perfeitamente. Principalmente se a espaçosa funcionária que nos atende fizer um câmbio “à maneira”, que lhe permita ter o dia mais do que ganho. Não aparenta demasiada vontade de trabalhar… e assim continuará quando a deixámos.

Hoje em dia, o forte de Bender alberga um pequeno, mas interessante museu. Com artefactos encontrados na região e uma miniatura ‘grandinha’ do forte. A perspetiva muda de imediato. Há igualmente uma câmara de tortura medieval. Modesta, porem bem explicita quanto aos bárbaros horrores de aqueles tempos. No fim, uma loja de souvenires.

Interessam-me mais as catapultas exteriores e, do alto das muralhas, imaginar até onde podiam alcançar. Os muros da fortaleza já não são totalmente de fiar, mas nem por isso somos impedidos de circular por onde a vontade dita. Subir a torre melhora as vistas. Significativamente. Felizmente, não estamos no centro da cidade…

Ao lado há uma igreja. Alexander Nevsky fica a uma centena de metros e tem o mesmo ar pacato. Um soldado partilha farnel com a mãe em banco de jardim em frente à entrada principal. Gosto desta calmaria. É um ritmo que faz a informação penetrar mais densamente na pele. Dentro da Nevsky, o ortodoxo é moderado. A ponto de poder apreciar a sua arte e decoração. A catedral da Transfiguração, já no centro do burgo, justifica igualmente a visita.

Bender está no mapa também pelo cemitério que reúne demasiados soldados de diversos países. Uns pereceram na II Guerra Mundial, outros no Afeganistão e há os da guerra que em 1991 ditou a ‘independência’ (??) deste território da Moldávia, e que existe à revelia das leis e organismos internacionais. O lugar tem, por isso, grande valor patriótico. Tal como a evocação do ministro imperial russo Potemkin, que recuperou o território aos otomanos, e aqui é recordado em forma de estátua.

Agora a mente foca-se em Tiraspol, a suposta ‘capital’ da Transnístria. Quero ver quer com que tipo de comunismo vou ser surpreendido.

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

TRANSNÍSTRIA: Mergulhar num país que… não existe

A paisagem parece como que a embrutecer. E as cores a desfalecer. Reduzir a velocidade. Passar o primeiro controlo. O segundo. E parar ao terceiro. “Siga-me”, dizem-me olhos crus, em tom austero.

Estamos num lugar bizarro, estanho. Uma fronteira que não sei se o chega a ser. Moldávia e Transnístria, um território que teima em ser independente, mas que ninguém reconhece. Porém, persiste – e consegue viver – no seu micromundo. Com um estilo de vida dúbio que escapa ao controlo internacional.

Em russo, que sabe eu não compreender, dá-me indicações do que devo fazer. Ouço-o com expressão inamovível. No fim, serenamente, atiro-lhe um sereno “Do you speak english?”. Ele é previsível na atitude. Eu ensaio passos de dança que o surpreendem.

Fonte: Wikipedia

Fonte: Wikipedia

A fronteira está pejada de soldados russos. É o contingente que ajuda a manter esta teimosia, numa região fértil em conflitos ao longo da história. A independência, unilateral, foi decretada em 1990, com a ajuda de contingente russo. Que aqui permanece. A União Soviética desagregou-se e a Moldávia, uma das suas ex-repúblicas, tornou-se independente. Os fiéis a Moscovo protegeram os seus interesses do outro lado do rio Dniestre (Transnístria – para lá do Dniestre). E o amigo soviético aqui continua presente, ajudando a manter esta inexistência que ninguém reconhece internacionalmente como país. Nem a nação liderada por Vladimir Putin o assume.

O agente dá-me tanta papelada que me baralha. É taxa de entrada. É um novo seguro do carro. É outro pagamento que continuo sem entender muito bem para o que é. E um pequeno assalto no câmbio que sou obrigado a fazer para pagar na moeda local: o rublo da Transnístria. Na verdade, é um câmbio que nada tem a ver com a realidade. Ninguém o definiu internacionalmente e ninguém o controla. Fora do país, vale zero. Nada.

Quer saber quem somos e o que vamos fazer a Tiraspol, a pretensa ‘capital’. Digo-lhe que somos três professores em viagem de trabalho a Chisinau e que aproveitamos dois dias de folga para conhecer melhor a região. A desnecessária verdade – jornalista, profissão que sou obrigado a omitir em muitos lugares do planeta – provavelmente traria sarilhos adicionais e não me permitiria atingir o objetivo.

Volto ao carro para pegar em documentos, enquanto Sandra e Daniel me esperam. Estou demorado. Perguntam-me se está tudo bem. Aceno afirmativamente. Prometo voltar em breve. Afinal, vamos estar no ‘país’ menos de 10 horas, o que, alegadamente, simplifica imenso a questão. “É menos papelada”, tranquiliza-me o meu interlocutor. Imagino se assim não fosse…

Agora o tom do agente é mais suave. Até colaborativo. Supostamente ajuda. Recolhe o dinheiro e troca umas palavras em russo com os funcionários alfandegários. O troco em cada um dos guichets em que entrego papelada não vem. Não é muito, mas insisto em recebê-lo. Digo-lhe isso. Percebo, pelo tom da conversa entre os intervenientes, que não devo esperar recebê-lo.  Após alguma insistência, acabo por ser bem-sucedido num lado. Não no outro. Em inglês, digo três vezes à agente que tenho ainda a receber “XX”, mas esta, que anteriormente já tinha balbuciado umas palavras em perfeita língua de Shakespeare, agora age como se não entendesse uma única palavra. Ela percebe que eu estou ciente da situação. Evita cruzar o olhar com o meu.

Quando tudo está pronto, peço o carimbo do ‘país’. “Vai ficar bem no passaporte”, sorrio. O ‘tradutor’ diz que tem de ser outro agente. Mais tarde, quando apresento, pela última vez, os documentos, insisto no pedido. Dizem-me, algo embaraçados, que não há. “Então como é que um país não tem carimbo?? Ou o válido é o da Moldávia?”, provoco, apontando para o pequeno retângulo impresso no passaporte. Fico sem resposta. Atalho caminho.

Fora das instalações-contentor, novas perguntas. Desta vez alguém que traduz as questões de mais um mau-feitio. Na verdade, nunca entendi esta postura, tão típica em alguns países de Leste inspirados pela Rússia.

Entretanto, no meio desta insanidade, um corredor em marcha triunfal sem que ninguém pestaneje à sua passagem. Como se fosse invisível. Reencontro-o em Tiraspol. É turista…

Dois carros com matrícula da Moldávia desistem à porta do primeiro controlo. Lentamente, dão meia-volta e desaparecem no horizonte. Os ‘compatriotas’ da Transnístria avançam sem problemas de maior, mas outras ‘placas’ motivam um insistente e cuidado farejar das autoridades.

O Conselho da Europa analisa a questão da Transnístria como um ‘conflito congelado’. Alheia ao tráfico de pessoas, armas e droga, com a proteção divina de militares russos. Kolbasna deve ser um dos maiores arsenais de armamento convencional do planeta. Ninguém liga. Mesmo que não haja qualquer controlo neste negócio de morte.

Os nativos chamam ao país República Moldava da Pridnestróvia (Pridnestróvskaia Moldávskaia Respúblika), não aceitando o termo ‘Transnístria’ por o considerarem… romeno.

Vou entrar em território que emite o seu próprio dinheiro, tem o seu parlamento, polícia e exército (russo). O russo sé a língua oficial. Igor Smirnov foi quem deu a cara pela independência. Ele e a família controlam o país. A marca Sheriff está por todo o lado. Como facilmente comprovaremos. Gasolina. Supermercados. Desporto. Açambarcou todos os negócios privados. Tem o monopólio em várias áreas e mantém o apoio presidencial. Um dos filhos de Smirnov é quem controla a empresa. Em surdina que todos conhecem.

Finalmente, autorizados a entrar em Pridnestróvia. É hora de explorar a exótica Transnístria…

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

Capriana: mosteiro (finalmente) em Paz

O dia desmaia quando, finalmente, chegámos às margens de um pequeno lago artificial. Os derradeiros quilómetros que aqui se dirigem são a descer em zona tranquila, rural, com casas térreas abraçadas por quintais.

A primeira imagem é divina. E não falo de religião. Fixo-me primeiro no reflexo. Um dos edifícios do mosteiro duplicado no estático lençol de água. O branco das paredes e o alaranjado do telhado. A torre clara e a cúpula preta. Linhas sóbrias. Simples. Detenho-me a contemplar antes de decidir avançar.
Estamos num dos mais antigos mosteiros da Moldávia (século XV), a uns 40 quilómetros a noroeste de Chisinau. E que a determinada altura mudou o nome original para assumir um outro, em honra ao seu clérigo superior, Chiprian.
O declínio económico e estagnação cultural durante o século XVII resultou em grandes dificuldades também para este mosteiro que dois séculos depois entrou e nova fase de grande vigor. Até que vieram as guerras do século XX, chegou o período soviético e os monges tiveram de se refugiar em outras paragens.
Agora, em 2016, respira-se com normalidade. É assim há apenas uns 10 anos. Com os russos no controlo, o complexo foi um sanatório para crianças (1962). E o refeitório transformado num verdadeiro ‘clube’: dança, festas (com álcool) e casamentos. Agora, nem traços desse período. O lugar exalta serenidade, tranquilidade. Aqui, o tempo parece estático. Move-se sem pressa alguma.

Em 1989, com o gigante comunista a colapsar, voltaram os serviços religiosos a Capriana. Cinco anos depois principiou a reconstrução que apenas em 2007 ficou concluída. O complexo tem três igrejas. A Assunção da Virgem Maria (1545, de estilo medieval molvado), a de São Nicolau (1840) e de S. Jorge (1907), de estilo barroco.

De Capriana também fazem parte a casa do abade, refeitório e celas dos monges. A igreja de verão, a primeira aqui mencionada, é a mais antiga (preservada) da Moldávia, contendo presentes de diversos reis.
Não longe do mosteiro, há um grande carvalho com o nome de Stefan cel Mare, o Grande, onde dizem que o saudoso rei de há 500 anos descansou após uma batalha. Diria que apenas quis contemplar a beleza bucólica do seu reino.
Há um clérigo que descansa. Parece-me que envia um sms. Com destinatário divino? Nós também precisámos repousar e dirigimo-nos a um cafezinho. Que agora está em festa. A música em decibéis pouco toleráveis e já rolou muito álcool. Para já, apenas a família. E nenhum dos membros parece em estado… normal. Pelos preparos de farta mesa, a noite promete. E a nossa é de volta a Chisinau, pois estamos quase de partida…

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

Tipova e Saharna: Mosteiros & Lendas

Não é fácil chegar aqui, mas faz parte do encanto. Estamos a uns 100 quilómetros a norte da capital Chisinau, os últimos quilómetros são em terra-batida e as indicações não são precisas. Ótimo.
um ar ainda mais intemporal a estas obras arquitetónicas (na verdade, cavernas) ortodoxas esculpidas na alta falésia algures há tantos séculos que ninguém se entende verdadeiramente quanto à data certa. Estamos uns 100 metros acima do rio Dniestre, no maior e mais antigo mosteiro-caverna da Europa de Leste.
A obra, por si só, basta-se para justificar a viagem desde Chisinau. Esculpida em calcário em lugar de difícil acesso. A vista, deslumbrante, ajuda ao encanto. As lendas em seu torno, adensam a curiosidade.
Entre elas, a de que, há 500 anos, o poderoso e ainda saudoso rei Stefan cel Mare (O Grande) se casou aqui, em segredo, com a sua terceira esposa, Maria Voykitsey. Dizem que o fantasma da donzela ainda deambula pelas cavernas do mosteiro e que, em noites de lua cheia, quem o seguir pode descobrir um tesouro escondido. Todos os ingredientes para a lenda passar de geração em geração.
Outra, ainda mais incrédula, diz que o mitológico poeta grego Orfeu, incapaz de se separar da amada Eurídice, terá vagueado pelo complexo e por aqui ficaram os seus restos mortais. Versão que o Monte Olímpico certamente contraria.
Este complexo do mosteiro é distribuído por várias infraestruturas e conta com três igrejas. Entre elas, há túneis, salas, galerias por onde os monges circulavam. Privacidade e segurança para os eremitas, em tempos de guerra. A bruta natureza envolvente oferece montanhas, florestas densas, caminhos estreitos e tem espaço para surpreendentes cascatas…… É zona de turismo ecológico.
Mal sinalizados os caminhos, acabo por me perder. Mergulho como que em floresta densa e ando em íngremes zonas em que um pé em falso pode custar… o que não desejamos imaginar. Redobrar as cautelas. Só se vive uma vez… e há ainda demasiado por experienciar.

É verdade que este complexo já teve melhores dias. Pudera, no período soviético esteve fechado e abandonado. Até que o jugo terminou e foi devolvido aos crentes, retomando a atividade. Serena e pacata, como posso testemunhar.
Apesar de ser uma das mais famosas e populares atrações da Moldávia, o facto é que este é dos países menos visitados do Mundo, pelo que apenas encontramos uma dupla de amigos da Rússia. Que desejam boleia Saharna, mas não se sabem explicar, pois não dão uma palavra de inglês.
Em linha reta, o mosteiro de Saharna fica a uns 10 quilómetros. De carro, são 45. E não há transportes públicos. Não neste fim de mundo. Os nossos amigos precisam de ajuda motora para visitar o que é também um dos principais lugares de peregrinação na Moldávia. Aqui encontramos relíquias de Santos. E, de acordo com a lenda, as pegadas de Santa Maria. Um monge terá visto a reluzente figura sagrada no topo da rocha. Quando chegou ao lugar, apenas encontrou as suas pegadas…
Lendas são isso mesmo. Neste momento, os meus pés indicam-me outro caminho, o do ainda longínquo mosteiro de Capriana…

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

Soroca: capital cigana… rendida ao forte

Mais belo do que Soroca, certamente o caminho de cerca de 150 quilómetros de Chisinau rumo ao norte e que nos leva a esta cidade nas margens do rio Dniestre, bem perto da fronteira com a Ucrânia.

Sempre em amplo espaço rural, o amarelo domina a paisagem, em contraste com espessos verdes e um azul de um céu saudável que nos dá as boas-vindas. E acompanha o nosso périplo.

Soroca é a capital cigana da Moldávia, mas é popular entre os visitantes pelo belo e imponente forte, que originalmente era de madeira (Stefan cel Mare construiu-o em 1499) sobre uma antiga fortaleza genovesa, e que entre 1543 e 1546 foi reconstruido em pedra, como um círculo perfeito com cinco bastiões.

Hoje é domingo e está fechado. Não quero acreditar. Bom que o destino protege os audazes. Há um professor de história que, de alguma forma, tem as chaves da fortaleza. E convida um numeroso grupo de ‘amigos’ a entrar. Um bom radar português está sempre atento e é assim que nos misturámos na enxurrada.

A indicação, em audível inglês, de que o castelo estará aberto apenas 15 minutos, soa-me a recado para mim, Sandra e Daniel. Tranquilamente. O tempo no qual o explorámos, mais de meia hora, serve perfeitamente para os intentos. Apreciar a bela estrutura e a vasta paisagem, de montanha para norte e o vale do rio… onde uma grande ‘jangada’ vai transportando, pachorrentamente, carros de uma margem para a outra.

O museu de história e etnografia, que ajuda Soroca a ser uma referência cultural e histórica da Moldávia, não nos dá a mesma benesse, e permanece fechado. Pena.

No século XIX, a prosperidade chegou a Soroca em forma de praças grandes, ruas modernizadas, hospitais e escolas, além das igrejas. Isto juntamente com a produção de uvas, trigo, milho e tabaco. O posterior período soviético acrescentou-lhe o lado industrial. O que sobra?

Bom, para almoçar, muito pouco. É domingo e percorremos, a pé, toda a cidade. À falta de interlocutores em inglês, os universais gestos de ‘quero comer’ não trazem muita informação. Muitos encolher de ombros. Até que, uma hora depois, e já em débil desespero, o milagre em forma de cafezinho que tem umas deliciosas (face às circunstâncias) pizzas congeladas. Numa primeira fase, saciam-nos. Elogiámos o sensaborão pão e a amostra de ingredientes, que faz com que todas pareçam o mesmo. Depois, quando o cérebro pensa que estamos, finalmente, bem, o estomago dar-nos-á conta da sua insatisfação.

Hoje as famílias reúnem-se junto ao rio e, principalmente, em torno de uma rudimentar feira-popular. Na verdade, tudo me lembra a infância. Até o material com que as diversões são feitas parece dos idos anos 70, do século passado. A música também ecoa aos berros. Toda a gente traja a fatiota dos domingos, neste caso em tons menos leves, bem típicos desta Europa de Leste.

A saída de Soroca é pela zona alta, onde é mais claro o domingo cigano. Casas opulentas, grades altas, ruas por asfaltar. A decoração não é o meu estilo, nem a música que jorra de uma garagem. Espreitamos, cá de fora, mas o nosso olhar não traz sorrisos de volta. O tráfico de droga e de armas é o modo de enriquecimento de muita gente por estas bandas. Melhor continuar a jornada noutras latitudes…

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.