Sexta-feira podem ler no ípsilon

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NA CAPA

Chegou a vez de dar a voz
Em Portugal, a História Oral ainda está no início, mas cada vez mais se recorre a entrevistas e testemunhos na primeira pessoa para documentar o passado recente, às vezes dando voz a quem nunca a teve – pelo menos oficialmente. Alegrias e riscos de fazer História quando ela ainda está viva. Por Raquel Ribeiro

Nem tudo é arte, nem todos são artistas
Para João Louro The Cold Man é um gesto de resistência: uma reacção ao excesso de objectos irrelevantes que diariamente são colocados no mundo por indivíduos que reclamam ser artistas.

A de actriz, A de Ana, G de grande, G de Guiomar
Há actrizes que surgem quando não esperamos. Desde a semana passada, no Teatro Aberto Vénus de Vison põe-nos a olhar para uma rapariga que deixa tudo no palco. É uma sorte podermos ser suas testemunhas.

Regresso ao passado

No tempo em que o Porto parecia muito mais interessante do que Lisboa, havia um Rei que se chamava Rui. Encontrei finalmente a gravação de Apartheid Hotel no YouTube. Em tempos tive uma cassete com a maquete da gravação (ao vivo, free Nelson Mandela: Galiza 1986?) que em Lisboa quando um dia me assaltaram o carro sumiu para sempre. É sempre bom dançar ao ritmo dos heróis da nossa juventude. Mesmo quando sabemos que os perdemos para sempre.

A Lisboa que afinal só existe na cabeça dele

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(Joaquim Leitão)

Em 1986 eu tinha 20 anos e vi o filme “Duma vez por Todas” na sala Bebé, no Porto, e achei que a minha vida não poderia mais ser a mesma. Decidi que Lisboa seria a cidade onde um dia eu queria viver porque ali se passavam coisas que não aconteciam no Porto.

Em 1991, vi – acho que na ante-estreia – “Ao Fim da Noite”. Já vivia em Lisboa mas logo percebi que as coisas que aconteciam em Lisboa me continuavam a passar ao lado mesmo se conhecesse a porteira do Frágil.

Em 1994, vi “Uma Cidade Qualquer” e descobri uma Lisboa ainda mais apaixonante porque nasceu da cabeça de dois homens (Joaquim Leitão e Miguel Esteves Cardoso). Nessa ano fui assistir às filmagens de “Uma Vida Normal” e a minha vida, essa sim, não voltaria a ser a mesma. Mas eu ainda não sabia.

Em 1996, passei três dias na rodagem de “Adão e Eva”. Durante o Verão ouvia Pedro Abrunhosa no carro – podes sair do Porto mas o Porto não sai de ti – e por isso uma banda sonora nasceu.

E para quem tem saudades da cena emblemática:

Em 2007, eu já sabia há muitos anos que aquela Lisboa só existia na cabeça dele e fiz uma homenagem ao homem que me mostrou Lisboa de outra maneira.

Amanhã pode ler no Ípsilon

 

 

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NA CAPA

2014 também será com eles

O mundo de Bruno Pernadas é muito melhor do que o nosso

Visto do frio deste início de Janeiro não parece, mas existe mesmo um outro mundo possível à nossa espera, solar e caloroso. É o mundo de Bruno Pernadas, que edita em 2014 (será em Março) o seu primeiro álbum a solo, How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge. Com este disco e com Disffraction/Refraction, dos You Can´t Win, Charlie Brown, está encontrada a editora do inicio do ano: chama-se Pataca Discos e é uma nova aventura de João Paulo Feliciano. Por Vítor Belanciano

2014 ainda é um livro aberto, mas temos capítulos alinhavados

Veteranos como Bruce Springsteen e Beck têm regresso anunciado. Lana del Rey lança Ultraviolence e veremos se veio para ficar. E enquanto esperamos pelos novos de Dead Combo, PAUS e Legendary Tigerman, pedimos a Rodrigo Amarante para oferecer o seu Cavalo à gente. Por Mário Lopes

A condição contemporânea por Philippe Parreno e Pierre Huyghe

Em Paris, duas retrospectivas (uma no Centro Pompidou, outra no Palais de Tokyo) reinterpretam o conjunto das obras dos dois artistas visuais, transformando o nosso presente semi-apocalíptico em imagens, espectros e nuvens.

A morte, retrato íntimo e social

Em Death. passamos da intimidade de uma sala de família para um cemitério num movimento contínuo, sem interrupções nem fronteiras. As fotografias de Ahlam Shibli sobre o culto dos bombistas suicidas na sociedade palestiniana causaram controvérsia em Paris este Verão. Até Fevereiro, vão estar em Serralves, no Porto

Vidas mal contadas

No seu primeiro romance, As Primeiras Coisas, Bruno Vieira Amaral deixa questões por resolver, como na vida – para intranquilidade do leitor.

Nota aos mais desatentos: O ípsilon que além da sua versão em papel tem uma versão especial tablets ( iPad e Android) está também disponível na íntegra no site http://ipsilon.publico.pt/ todas as sexta-feiras.

Antes lê-lo, que…

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(Fotografia roubada com muito descaramento ao Facebook da editora Tinta da China)

Livro

Sou uma leitora tardia do Ricardo Araújo Pereira (R.A.P.). Daquelas leitoras que só chegaram à sua escrita já balzaquianas. E asseguro-vos, como em tudo, essas são as piores. Devo pertencer a uma minoria, aqueles que só despertaram para os Gato Fedorento quando eles já tinham uma legião de fãs. Se bem me lembro, foi a minha irmã e os meus primos — a família é essencial para nos mostrar como andamos no mundo por ver andar os outros — que num Natal qualquer se deram conta da minha ignorância relativamente a sketches que todos sabiam de cor. Aconteceu-me o mesmo mais recentemente quanto à Mixórdia de Temáticas, na Rádio Comercial. Também não tenho Meo, o que facilita a ignorância. Mas como sou velha lembro-me da época da euforia do blogue O Meu Pipi e dos seus livros. Mas isso também não me serviu de nada porque pertenço à maioria dos que não sabiam quem é o autor de O Meu Pipi.

Por isso posso afirmar que 2013 foi o ano em que descobri o escritor Ricardo Araújo Pereira. Em que li os seus livros, em vez de uma crónica dispersa aqui e acolá. E por causa dele percebi que sou bipolar. No mesmo dia, num espaço de horas, pego num livro de crónicas dele e acho que é um génio (embora quando o assunto é futebol fique um bocadinho toldado por ódios de estimação). A seguir ligo a televisão, está a ser entrevistado por causa dos seus livros e só o vejo a desconversar. Rapidamente o génio desaparece pelo gargalo da garrafa adentro (embora já tenha lido entrevistas muito boas).

Lembro-me então das vezes em que já assisti a Ricardo Araújo Pereira a improvisar numa conferência ou a apresentar um livro e a sua inteligência, humor e agudeza de espírito voltam a imperar. Imagino que não deve ser fácil ser o Ricardo Araújo Pereira todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos. Quanto mais ser-se génio. O que eu sei é que, ao lê-lo, sei que ele o é. Por isso Novíssimas Crónicas da Boca do Inferno — que reúne crónicas que foram publicadas na revista Visão entre 2009 e 2013 ilustradas por João Fazenda, editado pela Tinta da China e publicado depois de lhe ter sido atribuído o Grande Prémio da Crónica APE 2012 — é um livro que não se pode deixar de ler.

É olhar para o retrato que R.A.P. faz de Portugal e perceber que sim, que há saída e que faz sentido estarmos aqui. É recordar Shakespeare e outros clássicos embalados pelo quotidiano do século XXI. É recordar palavras e expressões que já não ouvíamos desde a infância no Norte. Numa das minhas crónicas preferidas deste livro, dedicada a explicações sobre o Acordo Ortográfico e “Contra o corte cego da consoante muda”, R.A.P. diz que não é muito dado a beijos e abraços. Quando quer explicar a uma pessoa que gosta dela, tem de recorrer a outros estratagemas. “A minha avó cozinhava. Ou esperava por mim à janela. Eu digo coisas. Deu-me para isto. Faço tudo o que é importante com palavras porque não sei fazer de outra maneira. Acho que foi isso que me atraiu na actividade de fazer rir as pessoas: trata-se de provocar uma convulsão física nos outros — mas sem lhes tocar. O Marquês de Sade gabava-se de produzir este e aquele efeito nas senhoras. Sim, mas a tocar também eu. Gostava de ver o sr. Sade fazer com que alguém se contorcesse sem contacto físico” (pág. 212).

Tal como o autor, também tenho alguma afeição por quem consegue fazer isso. Bem que vos tinha avisado, deus nos livre de leitoras balzaquianas.

(Recomendação publicada na revista 2, no dia 27 de Outubro de 2013)

Tratado sobre o humor e sobre as pernas de Ricardo Araújo Pereira

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(fotografia de Enric vives-rubio)

(Nota: Como considerei o último livro de crónicas de Ricardo Araújo Pereira editado pela Tinta da China, Novíssimas Crónicas da Boca do Inferno, um dos melhores livros de 2013 aqui vos deixo a reportagem que fiz em Abril em Bogotá)

Show de Ricardo Araújo Pereira na Feira do Livro de Bogotá, apesar, ou por causa, do espanhol aprendido em filmes para adultos. Por Isabel Coutinho, em Bogotá

É a hora do pequeno-almoço em Bogotá. No sala do Crowne Plaza Tequendama, todos os dias há surpresas. Numa das mesas, Pilar del Río conversa com o escritor espanhol Juan José Millás — dali a umas horas, partem para Madrid. No dia seguinte, Francisco José Viegas põe a conversa em dia com o académico Onésimo Teotónio Almeida. O poeta Gastão Cruz tem a surpresa de encontrar Aurelio Major, o poeta, tradutor e editor da Granta espanhola. O realizador Miguel Gonçalves Mendes, que aqui roda o seu próximo filme com Valter Hugo Mãe, aparece de braço ao peito e pela sala também anda Inês Pedrosa. Valter Hugo Mãe, o último escritor a chegar à feira que dura há duas semanas e termina dia 1 de Maio, já teve de beber um chá de coca por causa do soroche, a sensação de enjoo e tonturas provocadas pela altitude. No domingo, Ricardo Araújo Pereira aparece de calções pretos e T-shirt vermelha, as “perninhas de canivete” entre as mesas do pequeno-almoço. É o dia em que o Gato Fedorento faz 39 anos, nasceu três dias depois do 25 de Abril. Ricardo talvez vá correr, mas, se decidir ficar no hotel, a ver o jogo do Manchester United contra o Arsenal, já está equipado como um adepto do Benfica deve estar sempre que assiste a um jogo de futebol: de vermelho.

Uma das explicações que o autor de vários livros de crónicas — Boca do Inferno (2007), Novas Crónicas da Boca do Inferno (2009), A Chama Imensa (2010), Mixórdia de Temáticas (2012) na Tinta da China — dá para ter tido tanto sucesso na Rota das Letras, o Festival Literário de Macau, onde participou há meses, é achar que os chineses o confundiram com Ronaldo. Um dos seguranças do pavilhão de Portugal na Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBO), onde os escritores portugueses são convidados de honra, todos os dias pergunta quando é que vem Cristiano Ronaldo. Não se percebe por que é que na feira Ricardo não apareceu de calções, teria feito a alegria dos colombianos. Mas mesmo composto, enfiado num fatinho Hugo Boss, não escapa a perguntas, das leitoras interessadas em literatura portuguesa, relacionadas com o facto de ser tão guapito. É a vida como ela é. Aconteceu também nas perguntas do público durante a Charla sobre crónicas y humor, em que participou na Universidade dos Andes partilhando a mesa com o académico Onésimo Teotónio Almeida que, no Correntes d’Escritas, da Póvoa de Varzim, é o recordista em provocar gargalhadas na plateia.

“Quero pedir desculpa do meu espanhol, que é muito mau”, começa a explicar Ricardo, quando abriu a sessão. “Tive algum contacto com o espanhol escrito. Com o espanhol falado, o meu único contacto foi num canal de televisão que havia em Portugal e que, a partir da meia-noite, passava filmes para adultos dobrados em espanhol. Todo o espanhol que ouvi falar foi esse. Por isso sei dizer muito bem ‘sí, cariño’ [gargalhadas na sala], ‘fuerte’ [ainda mais gargalhadas], ‘ponte de rodillas’ [põe-te de joelhos], sinto-me até alguém um pouco pervertido quando falo espanhol. Para mim, é o idioma da ‘javardice’, não sei dizê-lo em espanhol.”

Quando lhe perguntam se se considera um comediante, responde que quer ser um humorista. “Essa palavra existe em espanhol? Nunca a ouvi nos filmes espanhóis que vi” — mais risos na plateia. “Eu não diria comediante, porque esse, de certa forma, é um actor. Eu também faço isso, mas o fundamental da vida que levo é escrever os textos que depois digo. Quero que me chamem humorista, porque não sou um escritor no sentido de José Saramago, Lobo Antunes ou Gastão Cruz, que são escritores. Eu sou alguém que escreve coisas.”

Vitória sobre a morte

Embora seja capaz de dizer estas coisas para que o público lhe preste atenção, no segundo seguinte já está a falar do que viu no Museu do Holocausto, a reflectir sobre qualquer episódio bíblico, a desconstruir um mito grego ou a citar no original, em inglês, um poema de Oscar Wilde sobre o amor, outro de Philip Larkin, outro de José Gomes Ferreira ou a falar das teorias do filósofo esloveno Slavoj Zizek que diz que “o humor partilha com o mal a mesma estrutura porque, na essência do humor, há algo de sadismo”. E surpreende a plateia ao dizer que gosta de definir o humor que lhe interessa com uma frase comprida e confusa de Kafka que cita de cor: “Leopardos irrompem no templo e bebem até ao fim o conteúdo dos vasos sacrificiais. A partir de certa altura, isto torna-se um hábito e passa a fazer parte do ritual”. Uma coisa que todos os dias vemos acontecer: um animal selvagem entra num sítio sagrado, profana-o de uma forma grotesca e, passado algum tempo, isso incorpora-se no ritual. As pessoas deixam de pensar que se trata de uma profanação grotesca. “Para mim, um humorista, os poetas, as crianças e os loucos (talvez), essas quatro profissões são aquelas que continuam a dizer ‘atenção, que isto é um leopardo no templo, isto não deve ser integrado no ritual, porque é bárbaro’”.

É nessa altura que Onésimo Teotónio Almeida aproveita a deixa para explicar, aos estudantes e professores que enchem a sala, que a ideia defendida por Zizek é a teoria aristotélica sobre o humor: “Alguém que se sente superior ao outro”, logo ri. O romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, parte dessa ideia. “Rir é rir de cima, e quem ri de cima considera o outro inferior, e isso é mau”, acrescenta o autor de Onésimo. Português sem filtro — uma antologia (Clube do Autor). E Ricardo lembra Thomas Hobbes, “o riso é sentir a glória súbita de sermos superiores aos outros”, e continua a desfilar teorias até acabar em Freud. Mas a história de Ricardo que mais encantou os colombianos cheira a churrasco. “Não sei se conhecem a história de S. Lourenço, eu não conhecia, espero que seja verdade, ele morreu numa grelha. Reza a lenda que as últimas palavras do [mártir] S. Lourenço foram: ‘Deste lado já está, podem virar.’ Não sei se isso é verdade, mas, para a Igreja Católica, S. Lourenço é o santo patrono dos churrascos, dos chefes de cozinha. São Lourenço morreu como os outros, mas ser capaz de dizer estas palavras é uma pequena vitória sobre a morte e a única possível”, conclui o autor que na sua curta vida já teve várias ideias para epitáfios: “Espero que seja provisório” e também uma nova versão do poema de Paul Eluard ‘Nasci para te conhecer, para te nomear, libertinagem’”.

Juan David Pedraza, estudante da Universidade dos Andes, de 23 anos, assistiu à conversa dos dois autores. Adorou a história de São Lourenço. Começou por fazer um curso de literatura brasileira e depois considerou necessário fazer um curso de literatura portuguesa. Por isso conhece os clássicos, Camões, Fernão Mendes Pinto. No curso que frequenta, dado por Jerónimo Pizarro, o comissário da presença na FILBO, foram lidos os autores convidados para a feira. Não conhecia nada de Ricardo Araújo Pereira, nem as rábulas do Gato Fedorento no YouTube, mas leu as crónicas. “Pareceu-me que o Ricardo mostrou na conferência um conhecimento muito bom e profundo sobre o que é o humor, e gostei da ideia de o humor ser uma pequena vitória sobre a morte”, diz.

Durante a feira, Ricardo Araújo Pereira apresentou uma antologia de contos de Mário de Carvalho que acaba de sair na Colômbia. É um dos autores portugueses que mais admira e, nas crónicas que tem escrito para a imprensa, e que estão reunidas em livros, passa vasta cultura literária. Não tem um cânone, tem vários. Onde entram “a Bíblia e Shakespeare porque o que nós somos tem a ver com aquilo. Parece-me claro que o facto de no Génesis existirem três momentos de riso e nos três Deus torcer o nariz por as pessoas se estarem a rir, isso é significativo para a nossa civilização. Por exemplo, quando o Hamlet vai ao cemitério e pega na caveira do bobo da corte e diz: ‘Por que é que não dizes agora uma das tuas piadas?’ e ‘Vai ter com a minha dama, e diz-lhe que por mais maquilhagem que ela ponha na cara é a este estado que vai chegar. Fá-la rir disso’ — acho que isso é a minha profissão. Em três frases, a minha profissão é fazer as pessoas rirem-se do facto de, por mais maquilhagem que ponham na cara, é àquele estado que vão acabar por chegar” — assim falou Ricardo ao PÚBLICO, mais tarde, numa pausa na leitura de um livro de Stephen Leacock que avalia para saber se o publica na colecção de Literatura de Humor que coordena na Tinta da China.

“Outro cânone é uma família de autores de que gosto porque a prosa deles é uma prosa risonha, que faz aquilo que o Hamlet diz à caveira para fazer. E é o caso do Cervantes, do Diderot, do Camilo, do Mário de Carvalho, do Dickens e do Laurence Stern.” Ricardo tem orgulho na colecção de Literatura de Humor, apesar de a considerar um divertimento. O ano passado, aquele que foi considerado o melhor livro editado em Portugal pelos críticos do Ípsilon, O Bom Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, saiu na sua colecção. A obra foi publicada pela primeira vez integralmente em português.

“O facto de ser eu a ter a ideia de fazê-lo deve envergonhar toda a sociedade portuguesa. Por exemplo, o livro do Dickens que inaugurou a colecção, Os Cadernos de Pickwick, nunca mais tinha saído completo desde que a primeira edição saiu em Portugal e que foi traduzida pelo Henrique Lopes de Mendonça, autor da letra do hino nacional em 1890.”

Este é um do tipo de livros que Ricardo Araújo Pereira gosta porque faz parte do grupo dos que são divertidos logo a partir do título. “O título completo é Os cadernos póstumos do Clube Pickwick e a primeira frase é: ‘O imortal Pickwick’; ou por exemplo Três Homens num Bote, de J. K. Jerome, em que a primeira frase é: ‘Éramos quatro’. Eu gosto de um livro que começa a fazer pouco de mim a partir da primeira linha”, diz.

O PÚBLICO viajou a convite da Secretaria de Estado da Cultura

(Reportagem publicada no PÚBLICO no dia 30 de Abril de 2013)

O Arroz de sardinhas de Jaime Ramos

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Livro

“Jaime Ramos tinha uma paixão suave pelo arroz de sardinhas. Passava três, quatro, cinco meses à espera do momento ideal para prepará-lo e poder convidar Ramiro, que, finalmente, tinha deixado de beber Blue Curaçao. A espera começava em Fevereiro, aproximadamente, inventando desculpas para não esperar pelas sardinhas mais gordas que ia buscar à Póvoa de Varzim, no final de Junho, depois do São João.” É assim que para deleite dos leitores começa o capítulo 26 de O Colecionador de Erva, novo romance de Francisco José Viegas, o oitavo dedicado às aventuras do inspector Jaime Ramos.
Além de cebolas “frescas e sumarentas”, tomate “vermelho e maduro”, pimentos, louro e alho, o arroz leva sardinhas sem espinhas e com limão. Confesso que nunca comi um arroz de sardinhas mas o escritor assegura-nos que é muito bom. Para Francisco José Viegas, os melhores sítios para se comer um arroz de sardinhas são a Póvoa de Varzim e a casa da sua avó (“que fazia um arroz de sardinhas magnífico” e que ele aprendeu a fazer com ela).

O editor Manuel Alberto Valente está sempre a pedir-lhe para fazer um livro com as receitas de Jaime Ramos. Francisco José Viegas gostava de o fazer e acredita que terá agora mais tempo para pensar nesse projecto antigo da publicação das receitas que Jaime Ramos tem confeccionado ao longo dos anos e que é uma cozinha “muito confortável e muito simples”, como diz Viegas. Há um outro momento culinário em O Colecionador de Erva: acontece num dia de chuva e de insónia do inspector que mora no Porto.

“Jaime Ramos gostaria de saber dançar — convidaria Rosa para uma viagem até Buenos Aires, como acontece a alguém da sua idade sonhar pelo menos uma vez na vida. Tinha de passar a pedir mais café colombiano. Tinha de passar a comer cereais sem açúcar. Tinha de passar a ser outra pessoa qualquer.” E é nesse momento do romance que a personagem confecciona uma tortilha com ovos, chouriço, cebolas, salsa e batatas salteadas, para afastar, ao pequeno-almoço, as preocupações da noite mal dormida por causa das investigações do assassínio de dois imigrantes russos e do desaparecimento de uma jovem de 20 anos oriunda de uma família tradicional do Minho. E das preocupações que lhe dá Olívia, a novata na equipa. Ainda não há nenhum filme nem nenhuma série com Jaime Ramos mas já há guiões em Portugal e no Brasil. Quem sabe se daqui a algum tempo, além das receitas de Jaime Ramos, teremos um filme. Do outro lado do Atlântico, o escritor Francisco José Viegas também já recebeu uma proposta para a adaptação ao cinema do romance Lourenço Marques que ali se chama Luz do Índico.


(Recomendação publicada na revista 2 no dia 21 de Abril de 2013)

“Não podemos transformar a língua num monstro”

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(Fotografia de Rui Gaudêncio)

(Nota: Como considerei o policial O Colecionador de Erva, um dos melhores que li este ano, publico aqui a entrevista que fiz a Francisco José Viegas em Abril quando o seu romance foi para as livrarias. Ver também O Arroz de sardinhas de Jaime Ramos)

O Colecionador de Erva (Porto Editora) é o primeiro romance de Francisco José Viegas depois de em Outubro ter pedido para abandonar o Governo por motivos de saúde. A recuperar, o ex-secretário de Estado da Cultura regressou ao trabalho na Quetzal e à direcção da revista Ler. Considera cedo para fazer um balanço dos 18 meses que esteve na Ajuda. Mas sabe que o seu próximo romance dará férias a Jaime Ramos e será sobre a Sinagoga do Porto. E pode ser que arranje tempo para aceder ao pedido do editor Manuel Alberto Valente e lançar o livro das receitas de Jaime Ramos. Em O Colecionador de Erva, que cruza literatura russa com uma família tradicional do Minho, o inspector desvenda o segredo de um bom arroz de sardinhas. Entrevista a Francisco José Viegas, por Isabel Coutinho

Este é o seu primeiro romance com o novo Acordo Ortográfico.

Para ser sincero, faz-me impressão tirarem o C de coleccionador. Não é que tenha nostalgia das consoantes mudas, mas faz-me impressão a perda do P de Egipto. Provavelmente por ter feito linguística na faculdade e irritar-me com o predomínio da linguística oral sobre a filologia. Disse sempre que havia coisas erradas no Acordo Ortográfico (AO) e que era preciso revê-lo e continuo a dizê-lo.

Na Secretaria de Estado da Cultura (SEC), este dossier passou-lhe pelas mãos.

Mas a decisão não era nossa, acompanhávamos politicamente a questão. Tínhamos dois universos: as opiniões pessoais sobre o AO e sobre a maneira de lidar com a língua e a política da língua; e uma resolução do Conselho de Ministros de 2010 que impunha o AO a partir de 2012 com um acordo entre países. Pessoalmente já tinha dito e continuava a dizer que achava um erro ter-se avançado para o AO sem Angola. Fazer um acordo só entre Portugal e o Brasil era fraco, precisávamos de um país africano, de Angola, de Moçambique — a posição de Cabo Verde nunca foi clara sobre isso mas era pacífica. E as coisas estavam em marcha, o AO tinha entrado em vigor no Brasil (os jornais brasileiros adoptaram-no, os dicionários oficiais brasileiros e manuais escolares também), nada fazia prever que houvesse um adiamento. De qualquer modo, este adiamento é para a administração pública e para os organismos do Estado até 2016. Nós também temos até 2015 para o implantar completamente. O problema é que há uma certa descoordenação.

Qual?

O Vocabulário [Ortográfico] da Língua Portuguesa (VOLP) ainda não está fechado. Estamos a trabalhar sobre um vocabulário que não é definitivo. Temos um grupo muito bom, dirigido por Margarita Correia, que trabalhou no vocabulário que serviu o Brasil, porque o Brasil não tinha o vocabulário fechado e, obviamente, contribui para Angola também. Enquanto não tivermos o vocabulário fechado, não podemos falar de um acordo definitivo. O que devíamos fazer era fechar o VOLP e começar a fazer correcções, que são absolutamente necessárias. Da última vez que falei do AO em público, numa entrevista à TVI, disse que havia coisas que estavam erradas e que podíamos corrigi-las até 2015. No dia seguinte nos jornais diziam que eu queria rever o acordo. O acordo não se revê, só os países que o assinaram é que o podem alterar. Agora, é possível, dentro das várias comissões científicas, alterar o que quisermos. Se as pessoas não gostam, não querem, não se sentem confortáveis, não podemos estar a lidar com um monstro. Não podemos transformar a língua num monstro.

Como reage ao balanço feito da sua passagem pela SEC?

Quem assume um cargo político sabe para o que vai e não pode queixar-se de injustiças da comunicação social ou dos comentadores. É muito cedo para fazer balanços. Acho que devo guardar um período de silêncio. É cedo para perceber que eu e a minha equipa tínhamos feito um programa eleitoral, tínhamos desenhado o programa do Governo para a área da cultura e que seria executado por fases. Tínhamos uma ideia clara do que queríamos.

O que aconteceu?

Foram 18 meses só.

Estabeleceu como áreas prioritárias o património…

O património em primeiro lugar, uma política do livro e da língua, do cinema e do audiovisual, uma política para direitos de autor e para as plataformas digitais e uma nova política para as artes. Eram estas as linhas essenciais. O património cultural era decisivo.

Mas quando olha para trás e vê o que tentou e não avançou…

Não devo falar sobre isso. A equipa que escreveu e desenvolveu o programa de Governo estava muito consciente dos riscos mas estava consciente de que era inovador.

Disse que não tinha dinheiro e que tudo o que iria fazer…

Iria ser feito com juízo, com muito juízo. E tentámos.

Voltando a O Colecionador de Erva. A história partiu de um encontro que teve no Brasil com José Eduardo Agualusa?

Sim, conhecemos um coleccionador de erva. De repente estávamos num cenário de filme, com uma história de filme que dava para fazer várias histórias. Um homem que coleccionava Cannabis sativa, marijuana de todos os lugares do mundo.

Isso serviu-lhe para num parágrafo enumerar todas as designações de cannabis na língua portuguesa. Conforme a origem, se é de Moçambique [suruma], se é de Angola [liamba], se é do Brasil [maconha], se é Portugal [erva]. Lá estamos outra vez a falar da língua.

Estaremos sempre. Nos meus livros há sempre cruzamentos com os restos do império: Moçambique, Angola, Brasil e Cabo Verde vão estar sempre ligados aos meus personagens. Foi uma história divertida, a que nos aconteceu no Brasil. “Eh pá, isto é um homem que colecciona liambas!”, lembro-me de o José Eduardo Agualusa dizer. Como é angolano, escolheu a palavra liambas. Eu decidi usar erva, que era a palavra menos marcada. Durante algum tempo, três anos ou mais, andámos a decidir: quem é que vai usar esta história? De repente, quase com moeda ao ar, ficou para mim.

Viu nela algo de romanesco?

Como matéria de romance, sim, porque como história é inusual. Estamos habituados a pessoas que podem até ter um banco de charutos de várias origens, do Oriente, das Caraíbas, de todo o lado. Podemos ter coleccionadores de selos, agora coleccionar liamba? Ter humidificadores cheios de erva de vários locais? Eu nunca tinha visto e não conhecia. Por outro lado interessava-me provocar essa estranheza [no leitor]. Como é que um homem, que apesar de tudo é poderoso, rico, conservador, tem uma colecção de liambas? O que tem muito que ver com as contradições que existem hoje. A diferença entre pessoas mais conservadoras ou pessoas mais fracturantes em público esbateu-se completamente. O consumo de erva, embora esteja naquele limite da transgressão pura, é socialmente permitido. Não digo que seja aceite, mas nas relações contemporâneas é até um factor de uma aproximação entre classes, entre gerações ou entre pessoas de campos ideológicos diferentes. A mim confesso que me faz mal, fumo um bocadinho e fico maldisposto.

No romance cruza a imigração dos russos e dos ucranianos em Portugal com a história de uma família tradicional do Norte do país. Que fascínio é esse por “famílias do Porto que atravessaram todas as revoluções dos últimos 200 anos no mesmo lugar: sentados”?

Há uma personagem em O Mar em Casablanca [romance anterior] que foi um senhor a quem agradeço várias horas de conversa. A certa altura disse-me: “Sabe, nós somos do antigo regime.” Respondi-lhe qualquer coisa referindo como era antes de 1974 e ele interrompeu-me: “O senhor não está a perceber, eu não estou a falar de 1974, estou a falar de 1820.” Ainda há gente que tem noção da história, respondi-lhe. Ele representava os derrotados, aqueles que foram derrotados no terreno, militarmente. Representava aqueles que foram derrotados quando o General Lemos assinou a Convenção de Évora-Monte, os que foram derrotados quando “o senhor Dom Miguel” partiu para o exílio e os que foram derrotados sempre ao longo do constitucionalismo, ao longo da República, com Salazar. Portanto, é natural que eles assistissem sentados a todas as revoluções. Era um mundo que não lhes pertencia, que não têm grande interesse em seguir. O facto de viverem no Minho também ajuda, porque é um terreno ligado à História, com uma certa tradição reaccionária. Nós temos sempre gente vitoriosa, até Inês de Castro é vitoriosa, todos os nossos demónios vitoriosos andaram alegremente a destruir Portugal durante este tempo todo. Esse veio dos derrotados da história interessava-me, como se a derrota fosse uma semente de virtude. Mas essas famílias de derrotados não são conservadoras à maneira antiga. Neste romance acabam por ser pessoas bastante liberais.

A imigração também ajudou a mudar comportamentos.

Durante os anos 1980/90, Portugal foi uma espécie de porto de abrigo para muitos imigrantes e isso transformou a nossa sociedade. Melhorámos porque recebemos muitos imigrantes do Leste, de Cabo Verde, do Brasil, de Angola. Somos tradicionalmente muito fechados. No fundo nunca deixámos de ser a velha metrópole, a pequena metrópole fechada, cheia de lama no Inverno, cheia de preconceitos e de atavismos. E essa gente que veio de outros países, que veio de longe trabalhar cá foi fundamental. Infelizmente foram-se embora. A nossa sociedade está a ficar muito pálida, muito branquinha, muito “branquela”, como dizem os brasileiros.

As personagens vão a um restaurante em que os empregados de mesa são brasileiros, a comida é italiana e a cozinheira ucraniana.

Tivemos sempre uma qualidade interessante que foi a de juntar coisas aparentemente impossíveis de reunir, em todo o lado em que estivemos, desde o Japão, à Costa do Marfim e à Islândia. Tivemos sempre queda — não era para o multiculturalismo mas era para a “misturança” mesmo. Isso enriqueceu-nos e deu a muitos portugueses uma perspectiva cosmopolita avant-la lettre. Muito antes de se falar do cosmopolitismo como valor político e cultural, já éramos muito cosmopolitas e misturávamos isso com o que tínhamos à mão: com o racismo mais ao menos genético e com uma certa arrogância. Mas fomos sempre pequenos racistas, pequenos xenófobos, nunca elevámos isso à categoria de um apartheid ou de relações violentas dentro do império colonial.

Neste livro volta a fazer um retrato de Portugal, alguém diz no capítulo XII que “somos espiões preguiçosos, os portugueses”, e fala da espionagem sujeita a escrutínio parlamentar.

Tivemos bons espiões e tivemos muito bons responsáveis dos sistemas de informação em Portugal. Conheci alguns por necessidade literária de os conhecer. É um mundo interessante e há lá gente muito competente. É um universo curioso porque apesar de sermos um país muito pequenino, com uma importância estratégica muito reduzida, acabámos por centralizar muitas informações devido também ao império. Hoje temos muito mais suspeitas do que confirmações sobre isso. É quase literário só. A nossa espionagem é muito literária.

(Entrevista publicada no PÚBLICO no dia 8 de Abril de 2013)

Para além da arte do romance

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(fotografia de Daniel Rocha)

(Nota: Como considerei o livro do brasileiro Rubens Figueiredo um dos melhores que li este ano, publico aqui a entrevista que lhe fiz em Março quando o seu romance Passageiro do Fim do Dia foi publicado em Portugal e o escritor esteve em Lisboa. Na altura em que recebeu o Prémio Portugal Telecom de Literatura 2011 também lhe fiz uma entrevista por telefone que pode ser lida no Ípsilon online)

Não se vê como um escritor engagé, mas também não quer ser visto como um autor desinteressado da experiência histórica e social. Eis Rubens Figueiredo, autor do premiado Passageiro do Fim do Dia. Por Isabel Coutinho

Já no final desta conversa, a propósito do premiadíssimo romance Passageiro do Fim do Dia, vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura 2011 e considerado o melhor livro do ano pelo Prémio São Paulo de Literatura, perguntamos a Rubens Figueiredo se se vê como um escritor engagé. O autor, tradutor e professor de Português e de tradução literária numa escola pública do Rio de Janeiro, demora a responder. “Eu acho que essa nomenclatura não é relevante, mas eu seguramente não gostaria de me ver como um autor que não se interessa pela experiência histórica e social”, afirma, aos 57 anos, num hotel em Lisboa, acabado de chegar do Rio de Janeiro e quase de partida para o festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.

“Não gostaria de achar que a literatura está acima disso, não gostaria de transmitir a alguém a ideia de que a actividade artística está acima disso ou isenta dos efeitos desse processo. Mas chamar de ‘engajada’, literatura política ou social… para mim é irrelevante o adjectivo que se dê. Aliás, quando se dá esse adjectivo chamam-se questões antigas que já não são pertinentes para a nossa época, que atrapalham a compreensão.”
O que parece importante a Rubens Figueiredo é que quando parte para a escrita de um livro existe sempre um assunto que quer analisar, estudar ou questionar. “A minha preocupação com o livro é saber o que ele quer dizer. Não vou ler um romance só porque o romance é arte. Isso não me diz nada. Tem de dizer alguma coisa.”

Quando começou a “conceber” este romance, Rubens Figueiredo queria questionar, de alguma maneira, a nossa dificuldade em perceber, ver e sentir certas coisas. Queria, concretamente, tratar da desigualdade. Em Passageiro do Fim do Dia, Pedro apanha um autocarro do centro da cidade para a periferia, na hora de ponta, numa sexta-feira à tarde, para ir passar o fim-de-semana em casa da namorada Rosane. Durante a viagem, deixa o pensamento fluir e mistura recordações com o que vai vendo à sua volta. “Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo — e até meio sem querer.” Este é o início do romance e não é por acaso. Pedro mistura-se com os outros passageiros, mas “mesmo assim, mesmo próximo, estava bastante claro que não podia ver as pessoas na fila como seres propriamente iguais a ele”.

A experiência de viajar num autocarro é quotidiana e trivial para toda a classe trabalhadora. “Mas essa experiência não é objecto de atenção de artistas, de jornalistas, de sociólogos!”, lamenta Rubens, que durante 22 anos deu aulas num colégio e para lá chegar tinha de apanhar dois autocarros. “Essa é uma actividade que você faz mecanicamente, você faz porque tem de fazer, você não pensa. Então a consciência do que acontecia ali vem aos poucos e espontaneamente”, lembra o escritor, que é também um dos mais respeitados tradutores brasileiros (tem traduzido clássicos russos, directamente do russo para o português).

“Meus alunos são muito pobres, vão estudar à noite depois de trabalharem de dia. Me dei conta, a certa altura, de quantos anos se passaram até que eu começasse a enxergar certas coisas. E não se tratava de eu ser uma pessoa desinformada, sem leituras, nem nada. Era professor, até já era escritor, tradutor, todas essas coisas, mas isso não adianta. Demorei anos para enxergar quem eram aquelas pessoas e de que era feita aquela distância que as separava de mim”, explica. Esse foi o ponto de partida, “o problema” que Rubens quis questionar neste seu livro: “a dificuldade que temos em ver as pessoas de uma classe subalterna — tal como dizem os sociólogos — como iguais.”

Todos partimos da dificuldade de ver, de sentir, e por trás disso está o nosso esforço para romper com essas dificuldades. “Só que esse esforço tem de ser repetido todos os dias. Vê-se isso no momento, mas você dorme e no dia seguinte aquilo voltou ao que era. Não por culpa nossa, mas porque há um mecanismo em que a sociedade se reproduz tal como é, e isso afecta o mecanismo das coisas.” A repetição e a rotina banalizam os factos, esvaziando-os de significado à primeira vista. E, lembra Rubens, a própria diferença social faz com que se estabeleça uma relação de um certo temor entre as diferentes partes. O leitor sente isso no livro.

“A maneira como estou a expor tudo isto pode parecer muito teórica, mas tentei dizê-lo de maneira mais concreta em forma de literatura, no meu romance”, acrescenta o autor, que também tem publicado em Portugal, na Cotovia, Barco a seco, Prémio Jabuti 2002 de Melhor Romance. Concretos são João — um trabalhador escravizado que chega ao hospital sem saber quem é —, o pai de Rosane — um trabalhador da construção civil com uma terrível alergia ao cimento cru —, ou a própria Rosane, que começa a ter problemas num pulso quando trabalha numa fábrica de mate e deixa de ter valor para a empresa. “E quando ela vai ao gabinete do departamento de pessoal para acertas contas há um cartaz a anunciar que a empresa contribuía para a conservação de uma ave marinha em extinção numa ilha…”, interrompe Rubens, a quem todas estas histórias surgiram de uma maneira muito espontânea quando estava a escrever o livro.

Muitas são histórias que alunos lhe contaram ao longo dos anos. “Percebi que a despeito do que fizesse na aula, do que eu ensinasse ou não, eu precisava de ouvi-los, dar valor ao que eles vivem, e isso eu fui fazendo espontaneamente. Então essas histórias me vieram assim em conversas. Você ouve as pessoas falar, pergunta, pergunta mais. Algumas histórias ficaram na minha memória anos e anos. Nunca anotava, mas quando fui escrever esse livro elas começaram a vir. A maioria são histórias reais.”

A importância do normal

Rubens também não queria que Passageiro do Fim do Dia tivesse uma estrutura baseada naquilo a que normalmente se chama trama ou enredo. Não queria que partisse de um conflito, passasse por uma crise e, por fim, desembocasse num desenlace. Ou que houvesse algum tipo de crime, acidente ou acontecimento grave, com um mistério e depois uma solução. “Pelo contrário, eu queria evitar esse padrão narrativo porque tenho a convicção de que esse tipo de estrutura diz uma coisa em si, dá-nos a ideia de que as coisas são normais, que só o evento crítico, a crise e o conflito é que são anormais”, defende.

“Ora eu queria precisamente evitar isso. Queria mostrar que as coisas banais, triviais, aquelas de que ninguém se apercebe, a que ninguém dá valor, aquelas que não entram na nossa hierarquia de importância, é que contêm o que há de mais importante, o que há de mais concreto na nossa vida.”
“Eu falo essas coisas, até eu fico espantado, porque é muito abstracto dito dessa maneira”, acrescenta. “Mas acho que transposto na forma de um romance, fica mais concreto, mais palpável. E o engraçado é que este projecto que eu exponho agora, não existia antes do livro. Foi sendo composto durante a escrita.”

A certa altura desse processo, Rubens Figueiredo achou que o livro que estava a escrever precisava de ganhar uma dimensão histórica. Queria mostrar “como é que determinado regime de relações se produz ao longo do tempo e quais são os factores que o perpetuam”. Por isso, durante o percurso do autocarro, Pedro vai lendo um livro sobre a vida e as ideias de Charles Darwin. As viagens que o cientista fez no Brasil permitiram a Rubens Figueiredo introduzir neste seu livro o tema da escravidão. “A maneira como a ciência trata a natureza: ao mesmo tempo que é uma busca de conhecimento, ela também comporta um esforço de dominação. Quando você vai a um país diferente e recolhe coisas, classifica e nomeia, além do intuito geral de conhecimento está presente uma ideia de dominação também. Eu pus o Darwin ali para trazer esses elementos para o livro. De outro modo teria dificuldade, porque o livro é composto com dados muito imediatos, que aparecem em primeiro plano, e o Darwin como que desdobra o livro numa dimensão histórica com esse questionamento do colonialismo, da escravidão, da ciência.”

Rubens Figueiredo defende que um romance ou um conto têm de partir de uma experiência concreta, específica, local, para conseguirem ser universais. “Por mais local que essa experiência seja, por mais aparentemente isolada de tudo no nosso tempo e no nosso mundo, ela faz parte de uma rede de relações que vão muito para além dela no espaço e no tempo histórico. Se você quiser falar sobre a desigualdade em termos universais e gerais, vai dizer muito pouco. Mas se você for bem particular, pode dizer coisas muito gerais”.

Por isso o escritor quis que os lugares descritos em Passageiro do Fim do Dia tivessem aspectos bem concretos, mas que ao mesmo tempo pudessem ser generalizados. Os bairros dos subúrbios nomeados no romance — a Várzea e o Tirol — na verdade não existem no Rio de Janeiro. “Existem lugares com esses nomes, mas não como eu os apresento. As descrições físicas dos lugares não são reais, são baseadas em dados reais de vários lugares que eu componho de maneira ficcional. Para que você perceba: Tirol é na verdade o nome de um bairro de outra cidade. Aliás: Tirol é um bairro de ricos, e eu nem sabia!”, conta, terminando a entrevista com uma gargalhada.

(Entrevista publicada no Ípsilon de 22 de Março de 2013)

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