(Fotografia de Rui Gaudêncio)
(Nota: Como considerei o policial O Colecionador de Erva, um dos melhores que li este ano, publico aqui a entrevista que fiz a Francisco José Viegas em Abril quando o seu romance foi para as livrarias. Ver também O Arroz de sardinhas de Jaime Ramos)
O Colecionador de Erva (Porto Editora) é o primeiro romance de Francisco José Viegas depois de em Outubro ter pedido para abandonar o Governo por motivos de saúde. A recuperar, o ex-secretário de Estado da Cultura regressou ao trabalho na Quetzal e à direcção da revista Ler. Considera cedo para fazer um balanço dos 18 meses que esteve na Ajuda. Mas sabe que o seu próximo romance dará férias a Jaime Ramos e será sobre a Sinagoga do Porto. E pode ser que arranje tempo para aceder ao pedido do editor Manuel Alberto Valente e lançar o livro das receitas de Jaime Ramos. Em O Colecionador de Erva, que cruza literatura russa com uma família tradicional do Minho, o inspector desvenda o segredo de um bom arroz de sardinhas. Entrevista a Francisco José Viegas, por Isabel Coutinho
Este é o seu primeiro romance com o novo Acordo Ortográfico.
Para ser sincero, faz-me impressão tirarem o C de coleccionador. Não é que tenha nostalgia das consoantes mudas, mas faz-me impressão a perda do P de Egipto. Provavelmente por ter feito linguística na faculdade e irritar-me com o predomínio da linguística oral sobre a filologia. Disse sempre que havia coisas erradas no Acordo Ortográfico (AO) e que era preciso revê-lo e continuo a dizê-lo.
Na Secretaria de Estado da Cultura (SEC), este dossier passou-lhe pelas mãos.
Mas a decisão não era nossa, acompanhávamos politicamente a questão. Tínhamos dois universos: as opiniões pessoais sobre o AO e sobre a maneira de lidar com a língua e a política da língua; e uma resolução do Conselho de Ministros de 2010 que impunha o AO a partir de 2012 com um acordo entre países. Pessoalmente já tinha dito e continuava a dizer que achava um erro ter-se avançado para o AO sem Angola. Fazer um acordo só entre Portugal e o Brasil era fraco, precisávamos de um país africano, de Angola, de Moçambique — a posição de Cabo Verde nunca foi clara sobre isso mas era pacífica. E as coisas estavam em marcha, o AO tinha entrado em vigor no Brasil (os jornais brasileiros adoptaram-no, os dicionários oficiais brasileiros e manuais escolares também), nada fazia prever que houvesse um adiamento. De qualquer modo, este adiamento é para a administração pública e para os organismos do Estado até 2016. Nós também temos até 2015 para o implantar completamente. O problema é que há uma certa descoordenação.
Qual?
O Vocabulário [Ortográfico] da Língua Portuguesa (VOLP) ainda não está fechado. Estamos a trabalhar sobre um vocabulário que não é definitivo. Temos um grupo muito bom, dirigido por Margarita Correia, que trabalhou no vocabulário que serviu o Brasil, porque o Brasil não tinha o vocabulário fechado e, obviamente, contribui para Angola também. Enquanto não tivermos o vocabulário fechado, não podemos falar de um acordo definitivo. O que devíamos fazer era fechar o VOLP e começar a fazer correcções, que são absolutamente necessárias. Da última vez que falei do AO em público, numa entrevista à TVI, disse que havia coisas que estavam erradas e que podíamos corrigi-las até 2015. No dia seguinte nos jornais diziam que eu queria rever o acordo. O acordo não se revê, só os países que o assinaram é que o podem alterar. Agora, é possível, dentro das várias comissões científicas, alterar o que quisermos. Se as pessoas não gostam, não querem, não se sentem confortáveis, não podemos estar a lidar com um monstro. Não podemos transformar a língua num monstro.
Como reage ao balanço feito da sua passagem pela SEC?
Quem assume um cargo político sabe para o que vai e não pode queixar-se de injustiças da comunicação social ou dos comentadores. É muito cedo para fazer balanços. Acho que devo guardar um período de silêncio. É cedo para perceber que eu e a minha equipa tínhamos feito um programa eleitoral, tínhamos desenhado o programa do Governo para a área da cultura e que seria executado por fases. Tínhamos uma ideia clara do que queríamos.
O que aconteceu?
Foram 18 meses só.
Estabeleceu como áreas prioritárias o património…
O património em primeiro lugar, uma política do livro e da língua, do cinema e do audiovisual, uma política para direitos de autor e para as plataformas digitais e uma nova política para as artes. Eram estas as linhas essenciais. O património cultural era decisivo.
Mas quando olha para trás e vê o que tentou e não avançou…
Não devo falar sobre isso. A equipa que escreveu e desenvolveu o programa de Governo estava muito consciente dos riscos mas estava consciente de que era inovador.
Disse que não tinha dinheiro e que tudo o que iria fazer…
Iria ser feito com juízo, com muito juízo. E tentámos.
Voltando a O Colecionador de Erva. A história partiu de um encontro que teve no Brasil com José Eduardo Agualusa?
Sim, conhecemos um coleccionador de erva. De repente estávamos num cenário de filme, com uma história de filme que dava para fazer várias histórias. Um homem que coleccionava Cannabis sativa, marijuana de todos os lugares do mundo.
Isso serviu-lhe para num parágrafo enumerar todas as designações de cannabis na língua portuguesa. Conforme a origem, se é de Moçambique [suruma], se é de Angola [liamba], se é do Brasil [maconha], se é Portugal [erva]. Lá estamos outra vez a falar da língua.
Estaremos sempre. Nos meus livros há sempre cruzamentos com os restos do império: Moçambique, Angola, Brasil e Cabo Verde vão estar sempre ligados aos meus personagens. Foi uma história divertida, a que nos aconteceu no Brasil. “Eh pá, isto é um homem que colecciona liambas!”, lembro-me de o José Eduardo Agualusa dizer. Como é angolano, escolheu a palavra liambas. Eu decidi usar erva, que era a palavra menos marcada. Durante algum tempo, três anos ou mais, andámos a decidir: quem é que vai usar esta história? De repente, quase com moeda ao ar, ficou para mim.
Viu nela algo de romanesco?
Como matéria de romance, sim, porque como história é inusual. Estamos habituados a pessoas que podem até ter um banco de charutos de várias origens, do Oriente, das Caraíbas, de todo o lado. Podemos ter coleccionadores de selos, agora coleccionar liamba? Ter humidificadores cheios de erva de vários locais? Eu nunca tinha visto e não conhecia. Por outro lado interessava-me provocar essa estranheza [no leitor]. Como é que um homem, que apesar de tudo é poderoso, rico, conservador, tem uma colecção de liambas? O que tem muito que ver com as contradições que existem hoje. A diferença entre pessoas mais conservadoras ou pessoas mais fracturantes em público esbateu-se completamente. O consumo de erva, embora esteja naquele limite da transgressão pura, é socialmente permitido. Não digo que seja aceite, mas nas relações contemporâneas é até um factor de uma aproximação entre classes, entre gerações ou entre pessoas de campos ideológicos diferentes. A mim confesso que me faz mal, fumo um bocadinho e fico maldisposto.
No romance cruza a imigração dos russos e dos ucranianos em Portugal com a história de uma família tradicional do Norte do país. Que fascínio é esse por “famílias do Porto que atravessaram todas as revoluções dos últimos 200 anos no mesmo lugar: sentados”?
Há uma personagem em O Mar em Casablanca [romance anterior] que foi um senhor a quem agradeço várias horas de conversa. A certa altura disse-me: “Sabe, nós somos do antigo regime.” Respondi-lhe qualquer coisa referindo como era antes de 1974 e ele interrompeu-me: “O senhor não está a perceber, eu não estou a falar de 1974, estou a falar de 1820.” Ainda há gente que tem noção da história, respondi-lhe. Ele representava os derrotados, aqueles que foram derrotados no terreno, militarmente. Representava aqueles que foram derrotados quando o General Lemos assinou a Convenção de Évora-Monte, os que foram derrotados quando “o senhor Dom Miguel” partiu para o exílio e os que foram derrotados sempre ao longo do constitucionalismo, ao longo da República, com Salazar. Portanto, é natural que eles assistissem sentados a todas as revoluções. Era um mundo que não lhes pertencia, que não têm grande interesse em seguir. O facto de viverem no Minho também ajuda, porque é um terreno ligado à História, com uma certa tradição reaccionária. Nós temos sempre gente vitoriosa, até Inês de Castro é vitoriosa, todos os nossos demónios vitoriosos andaram alegremente a destruir Portugal durante este tempo todo. Esse veio dos derrotados da história interessava-me, como se a derrota fosse uma semente de virtude. Mas essas famílias de derrotados não são conservadoras à maneira antiga. Neste romance acabam por ser pessoas bastante liberais.
A imigração também ajudou a mudar comportamentos.
Durante os anos 1980/90, Portugal foi uma espécie de porto de abrigo para muitos imigrantes e isso transformou a nossa sociedade. Melhorámos porque recebemos muitos imigrantes do Leste, de Cabo Verde, do Brasil, de Angola. Somos tradicionalmente muito fechados. No fundo nunca deixámos de ser a velha metrópole, a pequena metrópole fechada, cheia de lama no Inverno, cheia de preconceitos e de atavismos. E essa gente que veio de outros países, que veio de longe trabalhar cá foi fundamental. Infelizmente foram-se embora. A nossa sociedade está a ficar muito pálida, muito branquinha, muito “branquela”, como dizem os brasileiros.
As personagens vão a um restaurante em que os empregados de mesa são brasileiros, a comida é italiana e a cozinheira ucraniana.
Tivemos sempre uma qualidade interessante que foi a de juntar coisas aparentemente impossíveis de reunir, em todo o lado em que estivemos, desde o Japão, à Costa do Marfim e à Islândia. Tivemos sempre queda — não era para o multiculturalismo mas era para a “misturança” mesmo. Isso enriqueceu-nos e deu a muitos portugueses uma perspectiva cosmopolita avant-la lettre. Muito antes de se falar do cosmopolitismo como valor político e cultural, já éramos muito cosmopolitas e misturávamos isso com o que tínhamos à mão: com o racismo mais ao menos genético e com uma certa arrogância. Mas fomos sempre pequenos racistas, pequenos xenófobos, nunca elevámos isso à categoria de um apartheid ou de relações violentas dentro do império colonial.
Neste livro volta a fazer um retrato de Portugal, alguém diz no capítulo XII que “somos espiões preguiçosos, os portugueses”, e fala da espionagem sujeita a escrutínio parlamentar.
Tivemos bons espiões e tivemos muito bons responsáveis dos sistemas de informação em Portugal. Conheci alguns por necessidade literária de os conhecer. É um mundo interessante e há lá gente muito competente. É um universo curioso porque apesar de sermos um país muito pequenino, com uma importância estratégica muito reduzida, acabámos por centralizar muitas informações devido também ao império. Hoje temos muito mais suspeitas do que confirmações sobre isso. É quase literário só. A nossa espionagem é muito literária.
(Entrevista publicada no PÚBLICO no dia 8 de Abril de 2013)