(Nota: Como considerei o livro do brasileiro Rubens Figueiredo um dos melhores que li este ano, publico aqui a entrevista que lhe fiz em Março quando o seu romance Passageiro do Fim do Dia foi publicado em Portugal e o escritor esteve em Lisboa. Na altura em que recebeu o Prémio Portugal Telecom de Literatura 2011 também lhe fiz uma entrevista por telefone que pode ser lida no Ípsilon online)
Não se vê como um escritor engagé, mas também não quer ser visto como um autor desinteressado da experiência histórica e social. Eis Rubens Figueiredo, autor do premiado Passageiro do Fim do Dia. Por Isabel Coutinho
Já no final desta conversa, a propósito do premiadíssimo romance Passageiro do Fim do Dia, vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura 2011 e considerado o melhor livro do ano pelo Prémio São Paulo de Literatura, perguntamos a Rubens Figueiredo se se vê como um escritor engagé. O autor, tradutor e professor de Português e de tradução literária numa escola pública do Rio de Janeiro, demora a responder. “Eu acho que essa nomenclatura não é relevante, mas eu seguramente não gostaria de me ver como um autor que não se interessa pela experiência histórica e social”, afirma, aos 57 anos, num hotel em Lisboa, acabado de chegar do Rio de Janeiro e quase de partida para o festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.
“Não gostaria de achar que a literatura está acima disso, não gostaria de transmitir a alguém a ideia de que a actividade artística está acima disso ou isenta dos efeitos desse processo. Mas chamar de ‘engajada’, literatura política ou social… para mim é irrelevante o adjectivo que se dê. Aliás, quando se dá esse adjectivo chamam-se questões antigas que já não são pertinentes para a nossa época, que atrapalham a compreensão.”
O que parece importante a Rubens Figueiredo é que quando parte para a escrita de um livro existe sempre um assunto que quer analisar, estudar ou questionar. “A minha preocupação com o livro é saber o que ele quer dizer. Não vou ler um romance só porque o romance é arte. Isso não me diz nada. Tem de dizer alguma coisa.”
Quando começou a “conceber” este romance, Rubens Figueiredo queria questionar, de alguma maneira, a nossa dificuldade em perceber, ver e sentir certas coisas. Queria, concretamente, tratar da desigualdade. Em Passageiro do Fim do Dia, Pedro apanha um autocarro do centro da cidade para a periferia, na hora de ponta, numa sexta-feira à tarde, para ir passar o fim-de-semana em casa da namorada Rosane. Durante a viagem, deixa o pensamento fluir e mistura recordações com o que vai vendo à sua volta. “Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo — e até meio sem querer.” Este é o início do romance e não é por acaso. Pedro mistura-se com os outros passageiros, mas “mesmo assim, mesmo próximo, estava bastante claro que não podia ver as pessoas na fila como seres propriamente iguais a ele”.
A experiência de viajar num autocarro é quotidiana e trivial para toda a classe trabalhadora. “Mas essa experiência não é objecto de atenção de artistas, de jornalistas, de sociólogos!”, lamenta Rubens, que durante 22 anos deu aulas num colégio e para lá chegar tinha de apanhar dois autocarros. “Essa é uma actividade que você faz mecanicamente, você faz porque tem de fazer, você não pensa. Então a consciência do que acontecia ali vem aos poucos e espontaneamente”, lembra o escritor, que é também um dos mais respeitados tradutores brasileiros (tem traduzido clássicos russos, directamente do russo para o português).
“Meus alunos são muito pobres, vão estudar à noite depois de trabalharem de dia. Me dei conta, a certa altura, de quantos anos se passaram até que eu começasse a enxergar certas coisas. E não se tratava de eu ser uma pessoa desinformada, sem leituras, nem nada. Era professor, até já era escritor, tradutor, todas essas coisas, mas isso não adianta. Demorei anos para enxergar quem eram aquelas pessoas e de que era feita aquela distância que as separava de mim”, explica. Esse foi o ponto de partida, “o problema” que Rubens quis questionar neste seu livro: “a dificuldade que temos em ver as pessoas de uma classe subalterna — tal como dizem os sociólogos — como iguais.”
Todos partimos da dificuldade de ver, de sentir, e por trás disso está o nosso esforço para romper com essas dificuldades. “Só que esse esforço tem de ser repetido todos os dias. Vê-se isso no momento, mas você dorme e no dia seguinte aquilo voltou ao que era. Não por culpa nossa, mas porque há um mecanismo em que a sociedade se reproduz tal como é, e isso afecta o mecanismo das coisas.” A repetição e a rotina banalizam os factos, esvaziando-os de significado à primeira vista. E, lembra Rubens, a própria diferença social faz com que se estabeleça uma relação de um certo temor entre as diferentes partes. O leitor sente isso no livro.
“A maneira como estou a expor tudo isto pode parecer muito teórica, mas tentei dizê-lo de maneira mais concreta em forma de literatura, no meu romance”, acrescenta o autor, que também tem publicado em Portugal, na Cotovia, Barco a seco, Prémio Jabuti 2002 de Melhor Romance. Concretos são João — um trabalhador escravizado que chega ao hospital sem saber quem é —, o pai de Rosane — um trabalhador da construção civil com uma terrível alergia ao cimento cru —, ou a própria Rosane, que começa a ter problemas num pulso quando trabalha numa fábrica de mate e deixa de ter valor para a empresa. “E quando ela vai ao gabinete do departamento de pessoal para acertas contas há um cartaz a anunciar que a empresa contribuía para a conservação de uma ave marinha em extinção numa ilha…”, interrompe Rubens, a quem todas estas histórias surgiram de uma maneira muito espontânea quando estava a escrever o livro.
Muitas são histórias que alunos lhe contaram ao longo dos anos. “Percebi que a despeito do que fizesse na aula, do que eu ensinasse ou não, eu precisava de ouvi-los, dar valor ao que eles vivem, e isso eu fui fazendo espontaneamente. Então essas histórias me vieram assim em conversas. Você ouve as pessoas falar, pergunta, pergunta mais. Algumas histórias ficaram na minha memória anos e anos. Nunca anotava, mas quando fui escrever esse livro elas começaram a vir. A maioria são histórias reais.”
A importância do normal
Rubens também não queria que Passageiro do Fim do Dia tivesse uma estrutura baseada naquilo a que normalmente se chama trama ou enredo. Não queria que partisse de um conflito, passasse por uma crise e, por fim, desembocasse num desenlace. Ou que houvesse algum tipo de crime, acidente ou acontecimento grave, com um mistério e depois uma solução. “Pelo contrário, eu queria evitar esse padrão narrativo porque tenho a convicção de que esse tipo de estrutura diz uma coisa em si, dá-nos a ideia de que as coisas são normais, que só o evento crítico, a crise e o conflito é que são anormais”, defende.
“Ora eu queria precisamente evitar isso. Queria mostrar que as coisas banais, triviais, aquelas de que ninguém se apercebe, a que ninguém dá valor, aquelas que não entram na nossa hierarquia de importância, é que contêm o que há de mais importante, o que há de mais concreto na nossa vida.”
“Eu falo essas coisas, até eu fico espantado, porque é muito abstracto dito dessa maneira”, acrescenta. “Mas acho que transposto na forma de um romance, fica mais concreto, mais palpável. E o engraçado é que este projecto que eu exponho agora, não existia antes do livro. Foi sendo composto durante a escrita.”
A certa altura desse processo, Rubens Figueiredo achou que o livro que estava a escrever precisava de ganhar uma dimensão histórica. Queria mostrar “como é que determinado regime de relações se produz ao longo do tempo e quais são os factores que o perpetuam”. Por isso, durante o percurso do autocarro, Pedro vai lendo um livro sobre a vida e as ideias de Charles Darwin. As viagens que o cientista fez no Brasil permitiram a Rubens Figueiredo introduzir neste seu livro o tema da escravidão. “A maneira como a ciência trata a natureza: ao mesmo tempo que é uma busca de conhecimento, ela também comporta um esforço de dominação. Quando você vai a um país diferente e recolhe coisas, classifica e nomeia, além do intuito geral de conhecimento está presente uma ideia de dominação também. Eu pus o Darwin ali para trazer esses elementos para o livro. De outro modo teria dificuldade, porque o livro é composto com dados muito imediatos, que aparecem em primeiro plano, e o Darwin como que desdobra o livro numa dimensão histórica com esse questionamento do colonialismo, da escravidão, da ciência.”
Rubens Figueiredo defende que um romance ou um conto têm de partir de uma experiência concreta, específica, local, para conseguirem ser universais. “Por mais local que essa experiência seja, por mais aparentemente isolada de tudo no nosso tempo e no nosso mundo, ela faz parte de uma rede de relações que vão muito para além dela no espaço e no tempo histórico. Se você quiser falar sobre a desigualdade em termos universais e gerais, vai dizer muito pouco. Mas se você for bem particular, pode dizer coisas muito gerais”.
Por isso o escritor quis que os lugares descritos em Passageiro do Fim do Dia tivessem aspectos bem concretos, mas que ao mesmo tempo pudessem ser generalizados. Os bairros dos subúrbios nomeados no romance — a Várzea e o Tirol — na verdade não existem no Rio de Janeiro. “Existem lugares com esses nomes, mas não como eu os apresento. As descrições físicas dos lugares não são reais, são baseadas em dados reais de vários lugares que eu componho de maneira ficcional. Para que você perceba: Tirol é na verdade o nome de um bairro de outra cidade. Aliás: Tirol é um bairro de ricos, e eu nem sabia!”, conta, terminando a entrevista com uma gargalhada.
(Entrevista publicada no Ípsilon de 22 de Março de 2013)