Memórias da queda

Ficção

queda

 

Diário da Queda
Michel Laub
Tinta-da-China
4 estrelas

O primeiro romance de Michel Laub publicado em Portugal é uma excelente abordagem aos temas da identidade, da memória, da vergonha e da expiação. Isabel Coutinho

Diário da Queda, de Michel Laub, conta a vida de três homens: um avô, o seu filho e o seu neto. O avô, quando chegou ao Brasil, tinha um número tatuado no braço e não gostava de falar do passado. O narrador também não queria falar desse tema: “Se há uma coisa que o mundo não precisa é ouvir as minhas considerações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe, e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e filósofos e artistas que dedicaram as suas vidas a acrescentar notas de pé de página a esse material, um esforço para renovar mais uma vez a opinião que o mundo tem sobre o assunto, a reacção de qualquer pessoa à menção da palavra Auschwitz, então nem por um segundo me ocorreria repetir essas ideias se elas não fossem, em algum ponto, essenciais para que eu possa também falar do meu avô, e por consequência do meu pai, e por consequência de mim.”

Ao quinto romance, Michel Laub, considerado pela Granta como um dos 20 melhores jovens autores brasileiros com menos de 40 anos, aborda pela primeira vez na sua obra o tema do judaísmo, e volta aos romances de formação que costumam ser os seus. O que faz uma pessoa ser aquilo que ela é? Como é que Auschwitz pode estar relacionado com um episódio de bullying entre alunos, judeus e não judeus, de uma escola judaica em Porto Alegre, no Brasil dos anos 1980? Podem aqueles que foram vítimas transformarem-se em algozes e não ser responsabilizados pelas suas atitudes no dia-a-dia? Estas são algumas das questões colocadas em Diário da Queda, um excelente e fortíssimo romance sobre identidade e memória (que só tem fragilidades nos dois últimos capítulos, A queda e O Diário), mas também sobre natureza humana, escolhas, vergonha e expiação.

Sem medo de abordar temas tantas vezes já tratados na literatura mundial, como o Holocausto e Auschwitz, e num constante diálogo com Se Isto é Um Homem, de Primo Levi (Teorema), Michel Laub constrói uma ficção sobre como a condição judaica pode ser encarada por três gerações num país tão distante do cenário da Segunda Guerra Mundial como o Brasil (“E por mais que tanta gente tivesse morrido em campos de concentração não fazia sentido que eu precisasse lembrar isso todos os dias”, diz a determinada altura o narrador).

Numa história quase sem mulheres, entrelaçada por vários diários (o do avô, o do pai e o do filho que estamos a ler) uma personagem judia luta — simbolicamente — contra o Alzheimer, a doença do esquecimento. Como se tudo isto não bastasse, o escritor joga com pormenores autobiográficos (tal como o protagonista, é judeu e andou numa escola judaica em Porto Alegre) e consegue que o leitor se interrogue constantemente se aquilo lhe aconteceu. Apesar de a escrita de Michel Laub ser simples em termos de vocabulário — o escritor normalmente prefere o substantivo geral ao específico —, os pequenos blocos de texto numerados que constituem a narrativa de Diário da Queda podem ser lidos individualmente sem perderem força. São densos, com um ritmo de frase que é a sua marca, circular e obsessivo, e onde se nota um primoroso trabalho de linguagem. Mas o melhor é mesmo ler-se o romance todo de seguida como o diário de três homens, ligados pelo sangue, tentando cada um à sua maneira descobrir-se a si próprio.

No Brasil, Diário da Queda recebeu os prémios Brasília de Literatura e Bravo de Literatura e foi finalista dos prémios Portugal Telecom, Zaffari & Bourbon e São Paulo de Literatura. (Texto publicado no Ípsilon de 5 de Abril de 2013)

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