Fotografia de Nuno Ferreira Santos
(Nota: Como considerei o livro de Michel Laub o melhor que li este ano, publico aqui a entrevista que lhe fiz em Abril quando o seu romance Diário da Queda foi publicado em Portugal e o escritor esteve em Lisboa)
Diário da Queda, que a Tinta-da-China acaba de publicar, é o novo romance de Michel Laub, que a Granta considerou um dos 20 melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos. É também a história de três gerações e de um fantasma: Auschwitz.
Michel Laub está entre os 70 escritores que o Brasil vai enviar em Outubro à Feira do Livro de Frankfurt, em que volta a ser o país convidado. No Verão passado, a revista Granta considerou-o um dos 20 Melhores Jovens Escritores Brasileiros com menos de 40 anos. Diário da Queda, romance que a Tinta-da-China acaba de editar, é o seu livro mais traduzido. O mundo está a descobrir este autor que nasceu em Porto Alegre mas vive em São Paulo. Licenciado em Direito, preferiu ser jornalista; já publicou cinco romances e é colunista da Folha de S. Paulo.
O que tem este romance de especial para ter conseguido passar fronteiras?
Talvez exista uma questão que lhe é externa: o Brasil estar despertando interesse. Mas também pode ter a ver com o tema do livro, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. É um nicho no mercado internacional: um género, como o género de guerra ou de espionagem. Mas essas são questões externas, não tenho nenhum controlo sobre elas. Em relação aos meus outros livros, é aquele em que consegui dizer mais coisas. É também o meu livro mais recente – escrevi-o mais velho e com mais experiência, tanto de vida quanto de escrita.
A narrativa funciona por blocos numerados e distribuídos por vários capítulos.
Essa forma do romance, em parágrafos soltos, permitiu-me fazer as coisas mais fragmentariamente. Quando eu tinha uma ideia conseguia metê-la, sem me prender muito ao esquema normal de um texto que precisa de ter uma certa coerência. Espero que isso cause no leitor a impressão de que o tema está tratado de uma forma mais completa do que em livros anteriores.
Alguns críticos viram nisso uma referência aos versículos da Bíblia. Pensou nisso?
Na verdade não. Pensei no esquema das listas porque o nome dos capítulos remete para listas. Por exemplo, “Algumas coisas que sei sobre meu avô”. Teoricamente isso facilitaria, porque eu poderia escrever cada item separadamente. Mas na prática o livro é um texto contínuo e muitas vezes os números nem são necessários. De qualquer jeito, até psicologicamente, para mim acabaram funcionando como uma muleta e uma espécie de alívio. Quando terminava um parágrafo começava outro e não precisava de fazer uma ligação com o anterior. Tinha liberdade para falar do que quisesse naquele momento.
No conto para a Granta utilizou a mesma fórmula. Vai passar a ser sempre assim?
Diário da Queda foi publicado no Brasil em Março de 2011 e o concurso para a Granta apareceu em Julho de 2011. Estava muito próximo. Normalmente fico quase um ano sem tocar em nada: depois de escrever um livro dou pelo menos uns 6 meses. Ali me obriguei a sentar de novo e a escrever ficção, que era uma coisa que eu não queria. Até tentei fazer diferente, mas estava muito contaminado. Não conseguiria fazer uma história sobre outro assunto naquele momento. Tenho a ideia de voltar a esse conto, fazer dele uma coisa maior, mas não agora.
O que está a escrever?
Um romance sobre a relação de um fã com o seu ídolo musical.
Lembra os temas de um escritor britânico, que por acaso também utiliza listas…
Sempre gostei de listas, mesmo antes de Nick Hornby se celebrizar por isso. Ele sintetizou uma coisa muito da época: a cultura de listas nos anos 1980. Quando criei o meu blogue, trabalhava como jornalista. Como queria que o blogue se diferenciasse do meu trabalho, que eu considerava muito sisudo, o formato das listas acabou sendo o que se adequava. Escrevi o Diário da Queda numa época em que eu não sabia para onde ia com a ficção e isso foi também uma maneira de destravar. Estava muito exaurido.
Diário da Queda vem na sequência dos romances de formação que são as suas obras anteriores. Mas é a primeira vez que trata do judaísmo. Como foi esse processo?
Todo o livro é uma luta contra resistências que vão do tema até à linguagem e aos pudores pessoais do escritor. O esquema narrativo de quase todos os meus livros é a memória, um cara lembrando do passado e fatalmente a resvalar para memórias minhas ou para memórias inventadas que a essa altura já viraram memórias reais. Hoje de manhã dei uma lida no Diário da Queda – há mais de um ano que não abria o livro – e já identifiquei umas três coisas que aparecem de novo no livro que estou a escrever, sem eu ter consciência. Não lembrava. A presença dessas coisas sempre causa uma resistência. Ao mesmo tempo, eu sei que todos os autores se repetem, os bons e os ruins. Temas como o Holocausto, que tanta gente já tratou, você pode olhar para eles e deixar claro: eu sei que todo o mundo já tratou, mas eu vou tratar de uma maneira diferente.
Conseguiu. O seu romance é muito forte, conta uma história e coloca questões. É verdade que hesitou em publicá-lo?
Pensei não publicar. Porque há um momento em que tudo é muito independente das intenções do escritor. Você começa por falar de um tema e quando cria a história e as personagens tudo vai mudando. Lá no início, Diário da Queda tinha um narrador doente de Alzheimer que esquecia das coisas. Logo depois pareceu muito claro que existia um simbolismo possível na contraposição entre a doença do esquecimento e um facto histórico que simboliza o tema da memória hoje. A Segunda Guerra Mundial e Auschwitz entraram no livro a partir daí. Nesse sentido é uma coisa muito mais externa do que uma memória de família. Porque o livro não é tão autobiográfico como os leitores pensam: é só 40% autobiográfico.
Como assim?
Quando eu tinha 18 anos sofri um acidente de carro sério e fiquei de cama; quase fiquei paraplégico, mas deu tudo certo. Foi uma experiência muito marcante. No livro que estou escrevendo agora conto esse episódio na primeira pessoa. Diário da Queda é a história de um menino que cai de costas no chão e quebra uma vértebra. Um outro livro meu tem um acidente de carro lá no final. É um facto da minha vida que eu já tratei autobiograficamente em três livros, mas sempre de um ponto de vista e com consequências diferentes. Dizer qual deles é o mais próximo da verdade é impossível. Esse último parece, mas provavelmente é só a lembrança que eu tenho, misturada com o facto de ter escrito sobre a experiência em outros livros. À medida que vou ficando mais velho, essas memórias vão ficando muito para trás, não há como continuar fiel.
Tinha pensado que Diário da Queda seria uma comédia e acabou em Auschwitz.
Quando um escritor é muito obsessivo e fica voltando ao mesmo assunto, como Kafka ou Thomas Bernhard, tem muito de engraçado. É um humor enviesado.
Criou a personagem de um judeu brasileiro ligado a uma cultura que tem toda uma carga histórica mas que se interroga porque é que no dia-a-dia há-de estar sempre a lembrar-se disso.
Isso é uma das ambiguidades do livro, e na verdade uma das ambiguidades da minha vida. Todos os meus livros são sobre identidade; essa coisa de contar histórias de adolescência, momentos de formação, é uma tentativa de entender porque é que a pessoa é aquilo que é. Na minha vida pessoal isso aparece bastante, embora não no sentido trágico dos livros. Mudei de profissão, mudei de cidade, sou um cara que se lembra muito do passado. Só o facto de não morar na cidade em que cresci já muda tudo. Moro em São Paulo, que é o mesmo país mas não é a mesma coisa. Qualquer pessoa que tenha saído da sua cidade e ido para uma cidade maior tem isso: aquela sensação de que não está na sua cidade, na cidade dos seus amigos, da sua família. Pode construir uma identidade completamente diferente porque ninguém tem memória daquilo que você era antes de se tornar o que é. E só isso é o suficiente para ter sempre uma sensação de isolamento.
Para ser um estrangeiro.
Não diria que é um exílio radical, como morar no meio de África sendo europeu, mas não deixa de ser em pequena medida algo do género. É um pouco como ser de uma família judaica, num ambiente completamente secular e com uma carga histórica muito menos dramática do que numa cidade europeia, por exemplo. Ser judeu no Brasil, nascer muito depois da guerra, de uma família de classe média alta, estável, não significa a mesma coisa que ser judeu na Ucrânia em 1938. E ao mesmo tempo toda aquela herança da Ucrânia, dos pogroms, está nas conversas, ou nas entrelinhas das conversas, porque seu pai viu ou conhece alguém que viu ou passou a infância ouvindo o pai dele, que por sua vez viu ou viveu isso. Não há como escapar desse círculo, ele acaba chegando até você.
Aproveitou para contrapor essa memória colectiva do Holocausto, do que está sempre a ser lembrado, com a perda da memória individual do tal doente de Alzheimer.
Não foi pensado, mas foi aparecendo ao longo do livro. Um personagem tenta esquecer tudo o que viveu e não consegue – é o avô. O outro, que é o pai do narrador, tenta lembrar-se de tudo e sabe que vai começar a perder tudo. Essas coisas pareceram interessantes ficcionalmente. Nos romances em que os indivíduos são esmagados por forças maiores, históricas ou emocionais, a única esperança possível – se dá para falar nisso – é o facto de se tratarem de indivíduos. A ilusão de que a gente tem escolha é o que dá esperança. Senão ia ser só um enredo trágico do início ao fim, do berço ao túmulo, cumprindo o que a história e a geografia e as relações pessoais determinam.
Se alguém abrir Diário da Queda e só ler excertos pode pensar que é um livro anti-semita. Qual foi a reacção do meio judaico?
Eu até achei que ia ter mais reacções, inclusive porque estudei numa escola judaica em Porto Alegre. A escola que descrevo no livro não é bem a minha, mas obviamente que algumas pessoas não gostaram. Mas foram bem menos contundentes do que eu achei que poderiam ser. Há duas maneiras de ver isso: uma, optimista, é achar que o livro no fundo consegue explicar-se bem; a outra, que é pessimista ou mais realista, é [achar] que no Brasil ninguém lê livros. O meu livro não foi tão lido assim para dar polémica. Se qualquer celebridade for para a TV e baixar as calças há repercussão imediata e total. Mas num livrinho de ficção você pode dizer o que quiser porque vai ficar restrito ao público de ficção, que na verdade é bem mais preparado, mais capaz de entender ironia e de relativizar. Quero crer que o livro, lido do princípio ao fim, deixa bem claro que não quer passar uma mensagem.
(Entrevista publicada no caderno Ípsilon no dia 5 de Abril de 2013)