Rubem Fonseca tinha declarado que os escritores, naquela mesa do Correntes d’Escritas onde se falava do risco da ficção, eram todos loucos, cada um à sua maneira. “Ele é escondidinho, ninguém percebe, mas é louco”, disse o escritor brasileiro, pousando a mão no ombro de Eduardo Lourenço. Este regressou ao passado para contar um episódio que ilustra essa loucura. É a história da escrita do livro Pequena Volta ao Mundo, publicado em 1961, em edição de autor, por Lúcio de Sousa Dias, um antigo colega do ensaísta no Colégio Militar. Sabe-se agora que foi Lourenço que o escreveu, a pedido do condiscípulo, usando postais, fotografias e apontamentos que este lhe dera.
João Nuno Alçada, que trata do acervo de Eduardo Lourenço, encontrou nos caixotes o livro e o respectivo manuscrito. Em Dezembro, o Jornal de Letras contou a história, e a Ler publicou depois excertos do livro.
“É uma vergonha que assumo: escrevi, por amizade e por um pacto meio louco, uma viagem à volta do mundo”, explicou Lourenço. “Eu, que nunca escrevi três linhas [de ficção] e tenho um complexo absurdo em relação a quem escreve uma história, escrevi, pura e simplesmente, uma volta ao mundo!” Que nunca mais leu. “Não é uma forma de heteronímia, como a de Pessoa, é um caso de possessão!”
O seu amigo fez realmente uma volta ao mundo, em 1954. A companhia de aviação que o despediu pagou-lhe uma viagem que imitava a de Phileas Fogg, personagem de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, de Júlio Verne. Quando se encontraram, já tinham passado quatro anos desde essa viagem e o amigo não se lembrava de nada. Durante dois anos, Lourenço foi escrevendo por ele.
“Viagens a Jerusalém, ao Japão, à América do Norte, onde nunca tinha posto os pés. Não há uma palavra que seja de qualquer experiência minha. É a ficção pura. A esse título, sou um grandessíssimo ficcionista!”, diz o autor, que acha que o texto não tem qualidade literária e, sobretudo, não o sente como seu. “Escrevi para ele, escrevi o filme que ele não podia escrever. Morreu na convicção de que aquele livro era dele. Vou agora matá-lo segunda vez?”
Em 1960, o amigo instalou-se em França, em casa de Lourenço. “A minha mulher já não o podia ver e até começou a pensar que havia ali uma relação um pouco suspeita.” O amigo acabou por ir para uma pensão. “Ia lá ter com ele e sentava-me à mesa a escrever. Ele estava deitado na cama, ria-se e fazia ruídos, e eu já estava tão desesperado que lhe disse: ‘Pára lá com isso. Eu estou aqui a ser teu escravo e tu a rires-te.’ E ele respondeu: ‘É pá’ – ele falava assim como o Vasco Lourenço – ‘há muita gente que tem tipos que escrevem por eles, como o Kennedy.’ Tive um lampejo de lucidez e respondi-lhe: ‘Sim, mas aqui o Kennedy sou eu’.”
Os amigos de Lourenço acham graça à história e querem reeditar o livro. Ele não quer. “Não quero ser ficcionista a esse preço.” No entanto, quer que alguém conte a história do que se passou. Almeida Faria já refere o episódio no texto A Viagem do Outro, que publicou na revista Correntes d’Escritas sem identificar os protagonistas. E, se Lourenço autorizar, assume que gostaria de contar “essa história absolutamente incrível, mas verdadeira”.
(Crónica Porque hoje é domingo, publicada na revista 2, em 11 de Março de 2012)