Entrevista de Isabel Coutinho
Gosta de ir ao mercado (e vai mesmo). Gosta de cozinhar para os amigos com produtos da horta e bichos criados no monte alentejano. Uma vez por ano, Miguel Sousa Tavares convida 23 amigos para um jantar de Ano Novo. Fica três dias a preparar e a cozinhar para eles. Descobriu, depois do divórcio, que o local de repressão das mulheres podia ser a libertação dos homens. No livro Cozinha d’Amigos quis fazer uma história à roda do prato.
São quatro da tarde. De manhã, Miguel Sousa Tavares foi ao Mercado de Campo de Ourique, tal como de costume. Vai duas vezes por semana. Desta vez comprou grelos, agriões, feijão verde, couves de Bruxelas e alface à senhora que aparece no seu livro Cozinha d’Amigos, com fotografias de José Pedro Monteiro (ed. Oficina do Livro). Foi à banca do peixe e comprou lulas e cherne. Trouxe também acém, carne de porco e outras carnes. “Sou muito fiel aos sítios em que me estabeleci. Enquanto não for maltratado, não saio de lá”, conta, sentado no sofá da sala de sua casa em Lisboa. “Gosto de comprar o peixe em Campo de Ourique, na peixeira onde vou, porque o peixe vem de Sesimbra, que é um dos melhores portos de pesca que temos. Julgo que parte dele também vem de Peniche. Se andarmos por vários mercados durante uma semana, reparamos que há sempre o mesmo peixe. Quer dizer que o mar está a dar esse peixe, depois muda para outro. Esta semana deve ser a da xaputa!”, brinca.É no seu monte alentejano que se dedica mais à cozinha e onde se tornou produtor. Produz o melhor azeite que já provou. “Palavra de honra!”, ri-se. “São só 42 litros, dá para o ano inteiro e acabou.” Ofereceram-lhe umas oliveiras que vieram do Alqueva, transplantou-as, as árvores ficaram em choque durante quatro anos, sem ramagens nem nada. “Quando se muda uma oliveira, é preciso marcar no sítio primitivo, a cal, na árvore, onde está o Norte. No novo terreno, a oliveira tem de ficar exactamente na mesma posição senão não vai sobreviver. Vieram 40 oliveiras e este foi o primeiro ano em que deram azeitonas. A cooperativa fica com um terço e nós com dois. Toda a gente fica abismada. É o melhor azeite que já bebi. Nada se compara àquilo, por isso, agora, o meu prato preferido é pão com azeite.”
Como surgiu Cozinha d’Amigos? Tinha de entregar um livro, por contrato, ao seu editor?
Não tenho contratos desses, nem quero ter. Limita qualquer autor, obriga-o a escrever sem querer. Os exemplos que temos no mercado resultaram mal em termos de qualidade. Eu não tinha nenhuma obrigação, foi uma distracção das coisas principais da escrita. De vez em quando, começamos a marrar muito à roda de uma coisa, faz bem escrever coisas laterais. Esta foi uma delas.
Qual foi então o ponto de partida?
A ideia básica foi desmistificar a ideia da cozinha como uma ciência muito complicada em que é preciso estagiar três meses com o Ferran Adrià e andar a fazer vapores de não sei o quê e tal. A cozinha tem regras, que são naturais e, se nos guiarmos por elas, qualquer pessoa lá chega. O detonador foi ter um dia comprado um “carabiñero”, que foi o meu jantar com uma fatia de pão de centeio preto. Depois de muito pensar como o poderia cozinhar – porque não encontrei nada nos livros que tinha cá em casa -, acabei por fazê-lo com sal e limão. Soube-me fantasticamente. Realmente, é preciso dizer às pessoas que o segredo da grande cozinha é ser natural. Quando se tem bons produtos, não vale a pena complicar. É também o prazer de escrever. Não é propriamente um livro de culinária nem um livro de filosofia de cozinha. Não sei que objecto é esse, para dizer a verdade.
Todos os anos faz um jantar de Ano Novo para os seus amigos, são 24 à mesa a contar consigo. Lembrei-me de um outro escritor, o britânico Julian Barnes, que faz o mesmo: todos os anos organiza um jantar de evocação a Flaubert (a 12 de Dezembro, no aniversário do nascimento do escritor francês).
La Grande Bouffe… é o que eu faço. O jantar deste ano foi quase inspirado em Flaubert! Resumindo a história: muito contrariado, tive de comprar um smoking para ir a uma festa no estrangeiro. Tinha um smoking que já não me servia, que não visto há dez anos, e fui fazer um smoking novo. Quando cheguei à dita festa, tinha-me enganado e levado na mala o antigo. Fiquei tão furioso que disse que o jantar de Ano Novo seria de smoking para eu estrear o que tinha comprado. Todos os homens foram de smoking. Não era Flaubert, mas parecia um jantar do Gatsby! Teve muita graça.
Como iniciou essa tradição de Ano Novo?
Fiz a minha casa no Alentejo há dez anos com uma sala de jantar para 24 pessoas. Tenho de a encher. Então comecei a fazer o jantar e criei um núcleo duro que todos os anos lá vai. Há quem venha do estrangeiro passar o Natal e fique de propósito para o Ano Novo por causa do jantar. Este último saiu-me do pêlo porque também tinha de dar almoço no dia seguinte, o jantar foi na véspera. Cozinhei nove pratos para 24 pessoas. Já estava knockout.
Não contrata ninguém para o ajudar?
Tenho lá uma senhora que me ajuda, que me passa os instrumentos a quem eu digo: “Agora pique-me cebola, por favor.” Mas é uma empreitada demencial e 60 por cento do que cozinhei já é meu, já é produção própria.
Qual foi a ementa?
A do jantar foi: sopa de lavagante, bacalhau à Brás, uma receita de perdizes com legumes estufados em vácuo, borrego caseiro, um peru criado lá também e uma canja de pombo no fim. Eu e o meu vizinho temos um rebanho comum, completamente biológico, só comem ervas que semeámos para comerem. A preparar e a cozinhar o jantar demorou três dias. Dito isto parece um bocadinho absurdo e às vezes interrogo-me porque é que me empenho tanto nisto. Este fim-de-semana estive a cozinhar e tudo começa dois dias antes [a laborar] na minha cabeça: o que me vai apetecer fazer.
O que lhe apeteceu fazer?
Este fim-de-semana estreei uma coisa nova: um linguado estalado que vai ao forno com pão ralado por cima. Primeiro marina em limão, depois é salteado em azeite e alho e vai ao forno com pão ralado. Acordo às vezes a meio da noite e começo a pensar: “Vou fazer um prato assim.” Depois trato de arranjar os convidados, de ir ao mercado e diverte-me saber se aquilo resulta ou não. Deve ser como pintar um quadro, o pintor tem uma ideia, executa-a e depois vê.
É criativo, gosta de criar as suas receitas e ir experimentando. Há quem goste de seguir à risca as receitas dos livros de culinária.
À risca nunca se consegue seguir. Quando leio receitas de pratos que nunca fiz ou que não me lembro como é que se fazem, fico com uma ideia do que é a receita. A execução é sempre de autor, varia de pessoa para pessoa. Há quem goste de refogar até determinada altura, de temperar assim e assado. O básico vemos num livro, o resto improvisa-se.
Qual o livro indispensável numa bancada de cozinha?
Para mim, o Pantagruel.
Mais do que os livros e a enciclopédia de Maria de Lourdes Modesto?
Cresci com o Pantagruel. Em casa da minha mãe era uma espécie de Bíblia, estava sempre colocado estrategicamente na cozinha. Servia para tudo: doces, massas, folhados. Também tive as obras da Maria de Lourdes Modesto cedo, mas habituei-me mais ao Pantagruel. Está lá quase tudo.
Que livros devem fazer parte de uma biblioteca básica de cozinha?
Não faço ideia. Tenho uma biblioteca básica de cozinha que tem os clássicos, a Maria de Lourdes Modesto, o Pantagruel, o Isalita. Além disso, livros de cozinha francesa, cozinha mediterrânea, marroquina, brasileira, cozinha de Verão, que é um livro que adoro. Cozinha só à base de tomate, cozinha de massas italianas. Se queremos fazer diferente, vamos por aí. Ter uma enciclopédia só e ficarmos agarrados àquilo também não interessa. O Pantagruel é muito bom para o básico. Por exemplo, uma galinhola, que é raríssimo de encontrar e de cozinhar, tem de se ir consultar o Pantagruel porque é um clássico. Não vamos encontrar em mais lado nenhum. Embora hoje também ajudem os sites de culinária.
Explica aos leitores regras essenciais para se fazer um bom peixe grelhado, defende que se deve cozinhar um salmonete sem o amanhar e com o fígado.
Isso é experiência própria. O que dá mais gosto é o fígado, mas o intestino do bicho tem um sabor bestial. Eu não o como, mas gosto de o cozinhar com ele lá dentro. Uma outra receita de salmonete que faço – uso também outros peixes encarnados – é um esparguete. Pode parecer um desperdício para o salmonete, mas sai muito bem, é muito bom. Nesse caso, tiro as tripas mas deixo o fígado. Para grelhar, é essencial ter tudo lá dentro. Dá um gosto óptimo e faz com que o salmonete fique molhado ao pé da cabeça. [Risos] Estou envergonhadíssimo, estou aqui a falar como se fosse um expert em culinária, eu não sou. Simplesmente escrevi um livro a tentar dizer como isto é fácil.
Temos uma cozinha recomendável?
Não direi que temos uma excelente cozinha – também acho que temos -, mas temos excelentes condições para ter uma óptima cozinha por causa dos produtos e por ser muito variada. Conhece algum sítio onde se imagine uma sopa de beldroegas? É uma coisa absolutamente extraordinária.
Para já, a beldroega é incrível, quase uma urtiga – lembre-se que os alentejanos também fazem sopa de urtigas. A beldroega é cozinhada com batata, com tomate, leva um queijo inteiro de ovelha no centro da panela e duas cabeças de alho. Cozinhar uma sopa à volta de um queijo inteiro?! É uma coisa extraordinária. Se tirarmos o queijo, a sopa não fica exactamente igual. Se em algum lado do mundo se servisse isto a estrangeiros, eles iam ficar surpreendidos porque realmente é um gosto único. Temos uma imaginação, uma capacidade de usar produtos, de usar ervas, tal como os franceses. Não lhes ficámos atrás em matéria do uso de ervas. Em matéria de peixes e mariscos, ganhámos largamente, eu acho. Também nunca vi tomate coração-de-boi noutro lado.
Suponho que haverá, mas nunca o vi. Nenhum supermercado o vende porque é feiíssimo, não há dois iguais, eles gostam de tudo igualzinho. Hoje em dia, as receitas são quase todas com tomate-cereja que não sabe a nada. O tomate coração-deboi é incrível, não há nada que não saia óptimo, nem é preciso cortá-lo, faz-se assim [mostra com a mão] e ele esborracha-se todo inteiro.
A cozinha tradicional portuguesa tem desaparecido de muitas ementas, sendo substituída por hambúrgueres e outras coisas que tais.
As tradições estão a recuperar-se. Há cada vez mais gente com interesse pela cozinha, com vontade de cozinhar, a abrir restaurantes diferentes, em todo o lado, nas grandes cidades, em Lisboa, no Porto, em Braga. O restaurante que mais gosto em Portugal, para quem gosta de comida portuguesa, fica em Braga. Chama-se Arcoense, onde se come um arroz de tordos extraordinário. É o único sítio que conheço onde fazem esse prato, deve haver umas tascas no Alentejo que também fazem e há uma tasca aqui em Lisboa para onde levo tordos quando caço. Têm um cozinheiro que também os faz muito bem e depois vou lá comê-los.
Pelo menos, as pessoas que são inteligentes e têm restaurantes perceberam que cozinhar, regressar não digo ao antigamente, mas a formas tradicionais de cozinhar em que as coisas valem pelo que são, pelo sabor que têm e pela fidelidade desse sabor, é uma mais-valia.
Refere que estas receitas são suas, de família e outras de domínio público. Muitas delas confeccionavam-se em casas das nossas mães.
[risos] As casas das nossas mães… É a referência mais infalível da cozinha. Tenho um amigo que dizia: “Não há nada que nos saiba tão bem como a comida em casa das nossas mães, até o pão.” [risos]
No prefácio, José Manuel Barata-Feyo também lembra como se cortavam as batatas na cozinha da infância dele. As suas receitas de Língua Afiambrada, Trutas Disfarçadas ou o Peru de Natal com castanhas trazem recordações.
É uma variante do peru que se fazia no Natal. As castanhas são o que fica melhor com aves, com todas. Por exemplo, com faisão. Comprase no supermercado, aparentemente não tem grande graça porque é uma carne seca, escura. Por exemplo, fraca, carne parecida com galinhada-índia, aparentemente é muito escura, seca, mas se colocar à volta fatias de bacon e rechear com castanhas e uvas fica maravilhosa. Depois é só assar muito devagarinho, ao ganhar o sabor das castanhas e das uvas, fica excelente.
Começou a cozinhar depois de se divorciar.
Tal como para muitos homens da sua geração, a cozinha era um território das mulheres.
O meu pai [Francisco Sousa Tavares] não fazia nada, só ia ao Mercado da Ribeira todos os sábados.
Era bíblico, ele achava que aquilo era uma tarefa de homens e eu era sempre convocado.
Era bíblico no sentido em que ele chegava a casa com o carro cheio de compras, buzinava para a rua inteira ouvir, tinha de vir toda a gente ajudar. Eram compras para a semana de uma família com cinco filhos. Ele vinha com a sensação do homem primitivo que abastecia a família. Eu ainda tenho muito disso. Acho que é tarefa de homem chegar com a comida a casa. Uma espécie de caçador primitivo. Mas, uma vez que entregava as alcofas da praça, o meu pai já não sabia de mais nada. Acho que nunca o vi entrar na cozinha, nunca, nunca. Adorava comer mas não sabia fazer um ovo.
Refere no livro uma crónica que Sophia de Melo Breyner Andresen, a sua mãe, escreveu sobre a ida ao mercado.
Chama-se o “Caminho da Manhã” e uma parte dela está no Mercado de Lagos. A Câmara de Lagos quis homenageá-la, queria fazer um busto, lembro-me sempre da minha mãe dizer: “Eu odeio bustos, a pessoa fica enforcada, sem corpo, pendurada para sempre à vista de toda a gente.” Pedi para não fazerem busto nenhum e optarem por fazer duas coisas que ela iria adorar: “Peguem nesta crónica que fala de uma ida ao Mercado de Lagos e metam numa parede enorme lá no mercado. Ponham uma placa numa das grutas de Lagos a dizer ‘Gruta de Sophia’.” Eles fazem os passeios à Ponta da Piedade, que é uma gruta que se dizia que tinha sido descoberta por ela e por um pescador nosso amigo que fazia passeios às grutas.
Só se podia entrar naquela gruta com o barco a deslizar e, pelo tecto da gruta, com as mãos, íamos fazendo avançar o barco. Tínhamos um terror enorme de lá entrar. Era preciso ir lá pôr a placa a dizer “Gruta de Sophia”, só que a única pessoa que conseguia entrar era o tal pescador, que já tem 70 anos e que lá se dispôs a entrar, mas os serviços camarários não tiveram engenho para ir avante e por isso essa parte ainda não se cumpriu. Mas a outra já está no mercado de Lagos, onde a minha mãe ia no Verão quando o meu pai não estava. E eu ia sempre, quer com o meu pai, quer com a minha mãe. Não me lembro das minhas irmãs irem. Tudo o que ela descreve nessa crónica eu sinto.
Quando está em Lagos, vai todos os dias ao mercado?
É mesmo um ritual que tenho. Acho extraordinário entrar naquele mercado, com o contraste do sol terrível cá fora e, de repente, sombra lá dentro. Depois um clamor de vozes que passa por cima daquilo tudo, no meio daquele jogo de sombras e de neblina que há suspenso, o vapor húmido que vem dos peixes fresquíssimos. É sempre uma sensação de emoção. Parece que é sempre a primeira vez que entro lá dentro. É fascinante porque é a natureza em estado vivo, bruto. Parece o primeiro dia da vida, quase.
Mas como deu o passo da ida ao mercado para a entrada na cozinha?
Venho da geração que aprendeu várias coisas: a mudar fraldas e a passear os filhos no Hospital de Santa Maria, à noite, quando eles estão doentes naquela terrível unidade infantil. Aprendemos a cozinhar, aprendemos várias coisas.
Chegou a fazer cursos de culinária?
Só fiz um, com o chefe Vítor Sobral.
Diz que as estas receitas são pessoais, de família e de domínio público. Que tradição culinária é essa dos Andresen, havia algum livro que passavam de geração em geração?
Não. Tínhamos uma tia-avó que cozinhava muito e bem, não sei se alguma vez cheguei a comer alguma coisa feita por ela. Ela deixou uma série de receitas que uma prima minha juntou e mandou para todos os membros da família.
Chamava-se Teodora e eu chamo-lhe o “Código de Teodora de cozinha”. É de lá essa receita da Língua Afiambrada e outras receitas do Norte. A grande tradição da família eram as flores, não era a cozinha. Eles tinham o culto das flores, cultivavam jardins no Porto e faziam um concurso anual entre os membros da família para saber quem tinha o jardim mais bonito. Havia sempre um almoço de Primavera, visitavam-se os jardins todos e depois elegiam o jardim mais bonito. Tinham o fascínio das flores. O resto, o peixe e tudo isso, é adquirido.
Mas como é que passou para essa cozinha, agora território de homens, diferente do das mulheres.
Descobri, digo isso no livro, que a cozinha, que era o território da opressão das mulheres, podia ser o da libertação dos homens. Encontrei uma série de homens e de amigos que adoram estar na cozinha. Não sei se eu sou uma excepção ou não, mas no meu círculo de amigos é raro haver um homem que não saiba cozinhar qualquer coisa. É muito giro se nos juntamos para cozinhar, porque um sabe fazer isto, outro sabe fazer aquilo, um é bom em açordas, outro é bom em arroz, outro em peixe, etc.
Antigamente eu, de facto, nunca entrava numa cozinha, as coisas chegavam feitas à mesa e eu comia-as, ponto final. Tinha uma vaga noção do que era a cozinha e do que lá se passava. Não fazia ideia de como as coisas apareciam feitas.
Na Cozinha d’Amigos também dá dicas. Como utilizar uma cebola contra o sal ou o intrigante truque da garrafa nas brasas.
A garrafa consiste num método para espalhar o carvão uniformemente pelas brasas. Quando se acende o fogareiro, há uma zona que tem muito mais calor e as outras, à volta, estão apagadas.
Se pusermos a garrafa no centro, o calor espalha-se uniformemente. Não me pergunte como, para mim é um mistério. A garrafa não estoira, o que é o mais extraordinário.
Conta também como se pode surpreender os convidados ao servir uma açorda ao pequeno-almoço.
Isso fizeram-me uma vez, servirem uma açorda alentejana, a que chamamos sopa alentejana em Lisboa, ao pequeno-almoço. Um tipo que recebia para a caçada recebeu-nos com açorda alentejana. Achei uma ideia extraordinária. É óptimo, um pequeno-almoço diferente do resto, quando se vai à caça é preciso comer um pequeno-almoço substancial porque vamos estar muitas horas sem comer. É um pequeno-almoço extraordinário de caça.
Aproveita para falar de caça, de Bruxelas, alertar para a rola-turca versus a rola-brava.
Já me cansei de tentar explicar que a caça é natural. A caça organizada e bem feita é ecológica.
O que é normal na natureza é que existam todas as espécies, em equilíbrio, sendo que depois vão-se comendo umas às outras. É o ciclo da vida. Infelizmente as pessoas tendem a achar que os caçadores matam as espécies bravas todas. É o contrário: eles é que as mantêm. Em relação às rolas, o que se passa é que alguém introduziu, aqui e em Espanha, há uns dez anos, rolas-turcas. A rola-turca está a tornar-se igual ao pombo da cidade. Para se comer, não tem grande gosto, é um bicho que se alimenta da porcaria toda, ao contrário da rola-brava. São muito mais do que as rolas-bravas, aves de arribação, que passam e vão-se embora, seguem. Quando se fazem sementeiras para se ter rolas bravas para as poder caçar, as rolas-turcas, hoje em dia, comem tudo. Como são maiores do que as outras, afastam-nas e ficam lá de um ano para o outro. Cada vez há menos rolas-bravas porque há um excesso de rolas-mansas.
Qual seria a solução para isso?
Deixar caçar a rola-turca, nem sequer é para comer, é para repor o equilíbrio. Só que Bruxelas não deixa porque acha que são uns coitadinhos de uns pássaros que estão para ali, não fazem mal a ninguém, e os malandros dos caçadores querem caçá-las. Conclusão: qualquer dia, já não temos nenhuma rola-brava. Este ano, matei zero rolas-bravas, na época passada matei para aí 12. As rolas-turcas já chegaram às cidades.
No Porto e em Cascais, há imensas. Em Lisboa, ainda não há muitas. Mas vão vir.
Neste livro, acaba por abordar uma data de temas para os quais tem chamado a atenção ao longo dos anos.
Aproveito para fazer uma história à roda do prato, do bicho que está no prato. A relação que há entre a ocupação do território, a agricultura, caça e culinária é fascinante. As quatro coisas estão intimamente ligadas. Se você começar por desertificar o território, todo o resto vai atrás. É uma cadeia que se rompe completamente. Onde não há agricultura não há caça. Todos os animais que caçamos vêm comer, portanto se se acabar com os sobreiros para plantar eucaliptos deixa de haver bolotas. Não há nenhum bicho que se alimente do eucalipto. Se se deixar de fazer sementeiras de cevada, trigo, etc., deixámos de ter perdizes. Se deixarmos de tratar as oliveiras ou as substituirmos por estas espanholas, novas, que agora estão na moda, deixamos de ter tordos, que eles gostam de azeitona mas é da boa, das árvores antigas. Está tudo intimamente ligado. Se deixarmos de ter caça porque deixamos de fazer sementeiras para isso, deixamos de poder ir ao Fialho comer uma verdadeira perdiz brava. Vai desaparecendo aos poucos. Com isso também desaparece o comércio e desaparecem as pessoas. Está tudo ligado. Dito assim, parece conversa de chacha mas não é. Quando se anda no campo, vê-se como tudo isto acontece. Um dia estava a fazer um safari em África e o guia que estava comigo disse-me: “Este ano choveu muito, é mau para os antílopes.” Perguntei-lhe: “Porquê? Não têm mais erva para comer?” Ele respondeu: “Têm, só que a erva cresce mais e os leões escondem-se melhor.” É engraçado, na natureza está tudo relacionado.
As receitas que escolheu não reflectem muito as suas viagens. Nunca utiliza produtos exóticos como leite de coco…
Não gosto. No caril, é a única coisa de que não gosto. Acho muito enjoativo. Também não gosto de gengibre, detesto.
Pertence à categoria de viajantes que compra livros de culinária nos países para onde viaja? Servem para alguma coisa ou acabam por ficar na estante?
Quando gosto da culinária desses países, trago. A verdade é que temos tendência a cozinhar com os produtos que temos à mão, locais. Quem sabe se daqui a dois anos não acrescento o livro e o renovo. Não é um livro de receitas.
Tem receitas, mas é mais um livro de histórias de cozinha, de pensamentos à volta do acto de cozinhar, do acto de estar na cozinha e do que é uma cozinha de amigos. Que é o que eu gosto: cozinhar para amigos.
O que me preocupava não era tanto encher o livro de receitas, era mais contar histórias à roda das receitas. No Maranhão, em S. Luís, no Brasil, come-se uma pata de caranguejo maravilhosa mas não adianta dar a receita porque não temos cá esse caranguejo. Não vamos ganhar muito com isso. É um caranguejo grande, eles fazem a pata frita com óleo e uma série de coisas. A casquinha de siri que dá uma quantidade de pratos em Salvador, nós não temos. Não vale a pena estar a dar receitas porque até pareceria um pouco pretensioso.
Tem na mesa um livro de Anthony Bourdain.É seguidor da obra dele?
Estive a ler, ofereceram-me. Depois de ter publicado este livro, ofereceram-me.
Se Anthony Bourdain lhe perguntasse onde deveria ir.
Em Lisboa? Sou um mau conhecedor de restaurantes em Lisboa porque não gosto muito de almoçar e de jantar fora. Saio muito pouco. Mas onde é que eu o mandaria ir? Também depende do que ele quisesse comer. Por princípio, a qualquer estrangeiro, eu digo: “Vamos comer peixe.” É a coisa melhor que temos de mostrar.
No livro, diz que temos a pior carne de vaca possível, com raras excepções. A dos Açores, a barrosã, a alentejana não contam?
Comparada com a grande carne que é a argentina, brasileira e irlandesa, não tem nada a ver.
Acho que é um problema de corte. Também não sabemos cortar a carne bem. Não percebo porque é que uma vaca brasileira tem 40 partes e uma portuguesa só tem uma dúzia. Manifestamente, ainda não exploramos bem a anatomia do bicho. E não é só aquele lombo que as vacas brasileiras têm na cabeça. No resto, é igual à nossa. Porque é que elas têm tantas partes com sabores diferentes e nós não? É estranho.
Serve-se muito da ajuda de máquinas?
Sou um problema com máquinas, a começar pela máquina de café. Ainda só consigo usar a de enroscar. Já me ofereceram três máquinas de café diferentes, avariam-se todas nas minhas mãos. Bimby não sei o que seja, apesar de já ter visto aquilo a trabalhar. Oferecer eu ofereço, agora usar não. A única máquina que eu uso é uma trituradora, mas mesmo assim tento usar pouco. Gosto muito do barulho da máquina, da 1,2,3, e exagero sempre. Fica sempre demais.
Eu gosto do acto de cozinhar. Gosto dos gestos físicos de estar a cortar cebolas, picar o alho, cortar a carne, preparar o peixe, etc. Se as máquinas fi zerem tudo isso, o que fico eu a fazer? Ficar a ver as panelas ao lume é pouco. Gosto mesmo do trabalho físico. Há quem goste de fazer jardinagem ou horticultura, eu gosto de cozinhar. Também relaxa.
No livro The Pedant in the Kitchen, Julian Barnes cita a frase “Se a comida não é boa, não é simples.” Tem a ver com o que o Miguel defende. Se os produtos não são bons, passando pela complicação da cozinha…
Desconfio sempre de todo o tipo de cozinha em que se disfarça o sabor principal. Começo a desconfiar que o produto não é bom. Se me dão um peixe com tantos molhos em que não consigo identificar o sabor do peixe, tanto faz estar a comer besugo como estar a comer pargo ou carapau, desconfio que não é fresco. Porque se é fresco, não há sabor melhor do que aquele.
Não vale a pena cobri-lo com molhos ou com uma quantidade de coisas exóticas porque se perdeu o principal. Se você vai à Índia ou ao Brasil, onde o peixe não presta para nada, os molhos fazem toda a diferença. Já comi mau peixe de mar no Brasil mas que sabia bem por causa das ervas e temperos que eles misturavam.
Sendo que no Brasil o único peixe bom é o do rio Amazonas, não é o do mar. Aí tem o tambaqui, o pirarucu, o tucunaré. São os únicos peixes que vale a pena comer no Brasil e não é fácil de encontrar. Para além do Amazonas, encontra-se em São Paulo num restaurante chamado Figueira [Rubaiyat]. Uma vez fui lá jantar com o meu editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, e com o escritor Milton Hatoum, que é de Manaus. Vi o menu e pedi tucunaré. Milton olhou para mim intrigado: “Você conhece tucunaré?” [risos] e comemos os dois filetes de tucunaré.
Para terminar, como vamos de literatura? Está a escrever um novo romance?
Estou a tentar. O que comigo não quer dizer que consiga. Escrevo com muita dificuldade. Construir a história para mim é muito complicado.
Se chego ao ponto em que já a construí, em que sei exactamente o que é, torna-se mais fácil. Infelizmente não pertenço ao género que se senta em frente da página em branco do computador e as coisas saem. Não saem. Preciso de uma ordem, preciso de uma história, preciso de um esqueleto, sem o qual é muito difícil para mim arrancar e prosseguir. Dito isto: já estive muito mais longe. Vou escrevendo, vou patinando, vou deitando fora, vou regressando. Pode ser que a inspiração me ajude.
Nestes últimos anos, o Miguel andou…
Andei a fazer coisas laterais. Escrevi o livro que é o que eu gosto mais de todos os que escrevi, é um livro infantil chamado Ismael e Chopin A Amizade (Improvável) entre Um Músico Famoso e Um Coelho Muito Especial. Acho que é a coisa melhor que já fiz, mas enfim são 80 páginas, não é mais do que isso. Escrevi um livro de viagens com o meu filho Martim, Ukuhamba Manhã de África, e agora este Cozinha d’Amigos. São coisas laterais que eu tenho grande vontade de escrever.
Não consigo chegar ao coração da coisa, por enquanto, vou escrevendo para o lado. Andei a promover os livros, estive o ano passado no Brasil na Feira Literária de Pipa e, meses antes, em Palmas, na Feira Literária Internacional do Tocantins. Não é isso que me distrai de escrever, estaria a mentir se dissesse que era. O meu terror é a página em branco. Mas como disse há pouco pode ser que tenha um romance pronto no final do ano, antes disso não vejo jeito.
(Entrevista publicada na revista PÚBLICA no dia 22 de Janeiro de 2012)