Com o seu primeiro romance “O teu rosto será o último” João Ricardo Pedro conquistou o Prémio Leya 2011. Desempregado, resolveu concretizar o seu sonho. Conversa realizada dias depois da atribuição do prémio em Outubro do ano passado.
João Ricardo Pedro, 38 anos, Prémio Leya 2011, está à porta da Pastelaria Carcassone, em Lisboa, de óculos escuros. Passou mal a noite. Dormir tem sido difícil desde o dia em que o júri do Prémio Leya 2011 deliberou por maioria atribuir os 100 mil euros ao romance que passou os últimos dois anos a escrever, “O teu rosto será o último”.
É uma grande mudança na sua vida. Durante dez anos trabalhou como engenheiro electrotécnico e, em 2009, houve um despedimento colectivo na empresa onde trabalhava. “Fui nessa leva. Fiquei umas horas abananado: dois filhos, casado, com uma casa por pagar, era uma situação complicada.” Nessa noite decidiu que não ia cometer o erro de andar desesperadamente à procura de emprego. Quando percebeu que gostava mesmo de livros, já trabalhava numa empresa de telecomunicações. “Uma data de passos arriscados que eu podia ter dado no final da adolescência, tive vontade de os dar aos trinta e tal anos, já casado e com filhos. Muda muita coisa, já não se é uma pessoa sozinha…” Por isso, naquela noite em que se viu sem emprego, João Ricardo Pedro tomou uma decisão: “É amanhã. Vou levar os miúdos à escola, volto para casa e começo a escrever um livro.”
No dia seguinte, a mulher chegou a casa e perguntou-lhe: “Então, já começaste a procurar emprego?” João respondeu-lhe: “Não. Comecei a escrever um livro”. Ela olhou-o demoradamente e fê-lo prometer que iria escrever uma página por dia. Durante dois anos, João escreveu milhares de páginas. A maioria foi para o lixo.
O autor de “O teu rosto será o último” nasceu na Reboleira. Passou a infância e a juventude em Queluz. Foi sempre um péssimo aluno. Tinha jeito para matemática e não tinha hábitos de leitura. “No liceu tive professores péssimos, nunca me sensibilizaram para a leitura e não tinha hábitos familiares nesse aspecto. Era uma família tipicamente portuguesa: não lia.” Foi para engenharia electrotécnica porque diziam que dava dinheiro. Em 2000 arranjou emprego, casou e passou a morar em Lisboa. Numa entrevista que deu por estes dias disse que tinha começado a ganhar o gosto pela leitura ao ler “O Velho e o Mar”, de Hemingway. Afinal não foi bem assim. Ao pé de sua casa havia uma Livraria Europa-América onde, aos 17 anos, comprou uma edição “ranhosa” de “A Metamorfose”, de Kafka. Era para lhe dar um certo ‘estilo’ quando ia para o liceu. “Era um livrinho pequenino, li-o num instante e impressionou-me. Nessa altura não sabia quem era Kafka, nem sequer sabia o que queria dizer metamorfose. Achei que tinha ‘estilo’. Depois comprei ‘O Processo’ que me ocupou mais tempo. Andei entretido.”
Dois anos depois chegou ao “O Velho e o Mar”, conselho de um amigo. Quando o leu sentiu que havia uma presença física por trás daquele livro, tinha sido um homem a escrevê-lo. “Se calhar” podia fazer uma coisa parecida. Com a ajuda do irmão, que estudava arquitectura no Porto, foi aumentando as leituras. Passou horas seguidas em livrarias a ler. “Como não tenho muito dinheiro para comprar livros, gosto de ir para uma livraria, pegar num livro, ficar na página 30, dali a dias voltar e retomar a leitura. Li muitos livros assim. Os que eu suspeitava que eram mesmo bons, comprava. Os outros, lia-os na livraria.”
Aos 17 anos leu Kafka, mas não leu “Os Maias” de Eça de Queirós que fazia parte do currículo obrigatório. “Agora gosto mais de Eça do que de Kakfa [gargalhadas]. Li já casado, há pouco tempo, fascinou-me. Aos 17 anos não tinha maturidade para o Eça. Queria era jogar à bola, estar no computador. O meu mundo era completamente masculino, de bairro suburbano.”
Kafka debaixo do braço começou por ser para ter “estilo” e houve momentos em que João teve vergonha de gostar de ler. “Trabalhei muitos anos em Coimbra. Quando chegava ao final do dia, cansado, ao hotel e desatava a ler, os colegas de quarto gozavam comigo: ‘És maricas, pá!’” Sempre se movimentou num mundo onde a leitura não era muito apreciada. Mas entre cada livro que lia, pensava: “Vou começar a escrever o livro.” Não queria contar uma história, queria simplesmente escrever um livro. “Achava que era capaz. É como um tipo que acha que é capaz de fazer a maratona. E qual maratona? Uma qualquer! A de Londres, a de Lisboa, a de Nova Iorque. Pus na cabeça, eu hei-de ser capaz de escrever um livro”, ri-se sentado na pastelaria lisboeta onde passou muitas horas a escrever.
Não tinha ideia de história nenhuma. Ou melhor, se calhar tinha algumas ideias vagas “porque uma pessoa vai no carro e pensa”. Mas quando se sentou a escrever aconteceu-lhe uma coisa tremenda, o livro começou por ser a história do seu falhanço profissional. “A minha vida recente reflectiu-se nas primeiras páginas que estava a escrever. Três dias depois abandonei a ideia. Não fazia sentido, não queria falar de mim.”
Passou então a ser a história de uma criança que relatava o funeral do avô e as vidas das pessoas que por lá passam. Mas ao fim de uns meses aquilo tornou-se terrível. “Eram tristes as vidas daquelas pessoas. Ao ser relatado na primeira pessoa afectava-me a mim. É muito diferente escrever: ‘Matei a minha mãe’ ou ‘Tu mataste a tua mãe’ ou ‘Ele matou a mãe dele’. No momento em que se escreve há um abismo a separar as três coisas. Não tinha capacidade emocional para escrever na primeira pessoa. Foi outra vez tudo para o lixo.”
Começou então a escrever sobre um Duarte que nasceu antes do 25 de Abril, tal como ele. Mas também sobre os avós e os pais dessa personagem (chama-se Duarte em homenagem ao filho de Ruy Belo, o fotógrafo Duarte Belo com quem João jogava à bola em Queluz). “Construí a história de uma família feita de exílios, de segredos, de incapacidades de comunicação. O livro começou a ganhar uma nova dimensão: de que forma a história dos países pode dar cabo da vida das pessoas.”
Como não sabia como se constrói tecnicamente um romance ou como se fazem diálogos, à medida que escrevia, devorava livros que já tinha lido (por exemplo, as obras de Tolstói) com a perspectiva de perceber “como é que isto se faz”.
Por essa altura comprou as sonatas para piano de Beethoven tocadas por Alfred Brendel. Ao ouvi-las teve a sensação de que Beethoven tinha problemas na sonata 15 que só eram resolvidos na 32. “Melodias, harmonias que remetiam para coisas passadas. Isso influenciou-me e se eu fizesse um livro assim? Fiz. Não o dividi em 32 partes, mas em sete. Também não sou o Beethoven!” (risos)
Dividiu o romance como se de uma sonata se tratasse, em diferentes andamentos. Coisas que parecem desconexas, têm resposta mais à frente. “É como se só ouvindo o último andamento da última sonata de Beethoven, percebêssemos as outras todas”, explica. Em casa tinha também o disco de Glenn Gould a tocar Bach e começou a ouvi-lo. “De repente, o livro ganhou outro ritmo. Nota-se perfeitamente nos últimos capítulos. Os primeiros foram escritos a ouvir Beethoven e os últimos, a ouvir Bach. Eu queria acompanhar a música, com o ritmo do bater no computador”.
A forma e a estrutura de “O teu rosto será o último” foram realçadas pelo júri do Prémio Leya. O crítico literário e escritor brasileiro, José Castello, considerou-o um romance muito curioso, logo na estrutura. “É um conjunto de histórias de aparência solta. Em alguns momentos você sente que está a ler um conjunto de contos mas com o avançar da leitura percebe o modo subtil como essas histórias soltas se ligam”, afirma.
A editora Maria do Rosário Pedreira, que fez parte da equipa que fez a primeira triagem dos 162 originais que concorreram ao prémio, considerou-o “um romance com uma estrutura original, cuja história apreendemos a partir de capítulos autónomos que representam momentos-chave na vida de Duarte, o protagonista, pianista que não chegou a ser.” João Ricardo Pedro podia ter ficado a escrever aquele livro o resto da vida. Foi nessa altura que a mulher lhe chamou a atenção para o concurso do Prémio Leya. O prazo de entrega dos originais era no final de Maio. Faltavam três semanas. João disse que não tinha tempo. A mulher lembrou-lhe que ele tinha passado dois anos a escrever, tinha de arranjar tempo e concorrer. Os 100 mil euros eram o incentivo. João leu por alto o regulamento – “li o valor, ainda hoje não faço ideia das letras pequeninas” – e trabalhou intensamente nas semanas seguintes. Ao fim-de-semana voltava para Queluz, onde se passa “mais ao menos o ambiente do livro”. A entrega dos inéditos para o prémio terminava numa terça-feira, João Ricardo Pedro acabou o seu romance no fim-de-semana anterior.
“Quando há vários livros bons a concurso, uma decisão é sempre complicada, sobretudo quando o regulamento é explícito em não autorizar prémios ex aequo”, explica o escritor Nuno Júdice, outro dos membros do júri presidido pelo poeta Manuel Alegre que até ao fim balançaram entre duas obras que estavam a concurso. Mas neste ano “a decisão acabou por se tornar simples”, diz Júdice para quem o livro de João Ricardo Pedro tem “uma capacidade de agarrar a leitura que se associa a uma permanente sensação de surpresa, sobretudo quando fala de coisas já muitas vezes tratadas: a ditadura, o 25 de Abril, a guerra colonial, a vida na província, etc. Foi essa frescura ficcional que me prendeu, e sentir o gozo da invenção e da aventura da escrita que não é nunca óbice a uma leitura fluente.”
Para este escritor, que vai acompanhando a nova ficção portuguesa “muitas vezes obediente a códigos que não a deixam voar”, há neste livro “qualquer coisa de novo e de diferente”, que corresponde a algo que só em raros momentos se consegue. “Uma outra coisa marca este livro: quando o terminamos, há personagens que ficam na memória, e de que é difícil libertarmo-nos, o que é totalmente inesperado numa primeira obra. Mas talvez isto decorra do facto de estarmos perante um autor que foi educado já dentro deste novo regime pós-25 de Abril, sem os condicionalismos que marcaram as gerações ainda educadas sob a Ditadura, e que dão um certo tom de escrita ‘bem comportada’ à nossa literatura do fim do século XX”. Para além de ser alguém que não tem uma formação na área humanístico-literária, “o que é positivo porque, apesar de uma extensa cultura que vai da música à pintura, e à própria literatura, como é óbvio, dá um olhar mais ‘profano’ e demolidor sobre a realidade em que vivemos. Volto a dizer que ter dado o prémio a este livro foi um acto de risco para o júri – mas ainda bem que nos foi dada essa oportunidade.” Este acto de risco também é referido por José Castello quando diz que nada se explica no livro, o leitor termina o livro com as mesmas interrogações com que ele tinha quando iniciou a leitura e é isso o mais desafiador.
O prémio Leya mudou a vida a João Ricardo Pedro que agora só quer passar os seus dias em casa, começar a escrever às 8h30, almoçar da uma à uma e meia, regressar à escrita até às quatro da tarde e, depois, ir buscar os filhos à escola. Enfim, ter uma vida igual às outras.
(versão aumentada da entrevista publicada no caderno Ípsilon no dia 28 de Outubro de 2011)