Valter Hugo Mãe no Correntes d’Escritas 2012
(fotografia retirada do site do Correntes d’Escritas)
Encontro de escritores de expressão ibérica não é um festival qualquer. É um sítio onde acontecem milagres e engates. Entre escritores e leitores
Por Isabel Coutinho
Não se sabe se foi por causa da sessão estar marcada para as dez da noite de sexta-feira, depois de um jantar no Zé das Letras. Não se sabe se a culpa foi da palavra “prazer” incluída no tema de mais uma mesa da 13.ª edição do Correntes d’Escritas, o encontro de escritores de expressão ibérica que ontem terminou na Póvoa de Varzim. Ou se foi a coincidência da presença de três prémios Camões no mesmo festival literário: o professor Eduardo Lourenço (1996), o escritor brasileiro Rubem Fonseca (2003) e o poeta Manuel António Pina (2011), que desaustinou os espíritos. O que se sabe é que este festival literário, engendrado por Francisco Guedes e Manuela Ribeiro, à beira-mar plantado, é único. Em nenhum lugar do mundo seria possível tomar o pequeno almoço ao lado de “papai”, como chama ao autor de Diário de um Fescenino a sua filha (e guardiã) Bia Corrêa do Lago, e acabar a noite num jantar de matança do porco com o autor de O Labirinto da Saudade.
Ah, se “A escrita é um investimento inesgotável no prazer”, e este era o tema da mesa, o Correntes d’Escritas não lhe fica atrás, mesmo se as palavras crise, economia e troika tenham andado a saltar de mesa em mesa nas conversas entre leitores e escritores.
Mas, nesta coisa do prazer, também se pode virar o bico ao prego e lembrar a frase de Carlos Drummond de Andrade “a leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas, por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede”, e foi isso que fez Ana Luísa Amaral. Se a “escrita está ligada ao prazer, é porque ela não vive sem a leitura”, acredita a poeta, que tem o grave problema de saber de cor muitas citações e poemas.
“Às vezes dou-me mal, como quando, num poema do meu primeiro livro, citei de cor o Sá-Carneiro e nem fui confirmar se a citação estava certa, de tão certa que eu estava de que ela estava certa”. O poema chamava-se Qualquer coisa de intermédio, falava de Pessoa, e Ana Luísa Amaral, em epígrafe, em vez de “eu não sou eu nem sou o outro”, escreveu “eu não sou um nem o outro”. Depois, quando o livro saiu, alguém disse: “Ah, reparem no gesto subversivo. Não só lhe cortou uma palavra, mas integrou Fernando Pessoa'”, contou.
E, como podem ver, concluiu, “é de leitura que falamos, indissociável do acto de escrita.” Horas antes, Manuel António Pina tinha lembrado outro poeta, T. S. Eliot, que, quando via o poema finalmente impresso num livro, dizia “que descanse em paz”. “De facto, a publicação é uma forma de morte”, afirma Pina. Para ressuscitar é preciso ter muita fé. Isto a propósito de poetas que reescrevem a obra, coisa que é incapaz de fazer.
Já Rui Zink, enfiado na mesa onde se debatia o tal prazer, olhou em volta e percebeu que nas Correntes d’Escritas acontecem milagres. “Isto é um milagre. Quando cá estamos, sentimos mesmo carinho uns pelos outros, mesmo que no resto do ano nos detestemos. Este é um espaço maravilhoso e mágico”. Considerou que Rubem Fonseca, um dos seus “pais literários” e convidado das Correntes, deu uma “lição magistral”: “Foi fantástico ver que ainda é um menino a jogar à bola. E ter na mesma mesa o Eduardo Lourenço, outro menino a jogar à bola. Brincar é a religião suprema, a forma mais séria de viver.” Nestas Correntes, Rui Zink teve a sua equipa de sonho. Rubem Fonseca, “um avançado-centro de luxo”, Eduardo Lourenço, um “avançado-centro de luxo”, e D. Manuel Clemente, “que não joga a avançado-centro, joga a bispo. Não conheço essa posição em futebol, mas é literatura: vale tudo”.
Talvez por isso, Valter Hugo Mãe naquela noite estivesse “preparado para o engate”, mas a pessoa que ele vinha engatar já se tinha ido deitar.
“Tenho uma relação muito erótica com o Rubem Fonseca. Se estamos a falar na escrita como um investimento inesgotável no prazer, é melhor irmos directos ao assunto”, disse o autor de O Filho de Mil Homens. “Ler livros tem isso de delirante, passamos para os autores muito do que sentimos pelos seus livros e, dormindo agarrados aos livros, podíamos também dormir agarrados aos autores. Eu, se tivesse oportunidade, dormia quietinho ao lado do Rubem Fonseca, quietinho para não o incomodar, e, de vez em quando, abria os olhos, para o admirar e acreditar que existe”.
E, como uma coisa leva à outra, já na parte das perguntas do público, uma leitora levantou-se e disse: “Estava a ouvir o Valter a dizer que gostava de dormir com o Rubem… É que eu, às vezes, também durmo consigo.” Palmas e gargalhadas na sala. Não foi a única. Outra leitora pegou no microfone e afirmou “sem malandrices”: “Dormia esta noite com vocês todos também!” Ao que o moderador, o designer e ilustrador Henrique Cayatte, rapidamente respondeu: “Eu não sou escritor, eu não sou escritor!” O Correntes d’Escritas é feito disto: momentos de comunhão e milagre entre escritores e leitores. Um forrobodó literário, como diriam os brasileiros.
(reportagem publicada no PÚBLICO do dia 26 de Fevereiro de 2012)