Na casa do terror

“O filho de mil homens” marca a rentrée com um regresso às maiúsculas, depois do sucesso no Brasil. Por Isabel Coutinho

Na capa do romance “O filho de mil homens” (Alfaguara), nas livrarias a 23 de Setembro, o nome de valter hugo mãe aparece pela primeira vez assinado em maiúsculas. Este livro, que já está em pré-venda nas livrarias online, inicia um novo ciclo na criação literária do Prémio José Saramago 2007. As maiúsculas, que também estão ao longo do romance, aparecem pelo facto de o autor de “a máquina de fazer espanhóis” ter ficado “muito farto” das queixas dos leitores, para quem o texto em minúsculas apresentava dificuldades. “É uma cedência, não vejo uma grande diferença na leitura. A minha escrita acaba por não diferir muito. A sintaxe e até a construção mental do texto é exactamente a mesma”, diz-nos o escritor, que assim regressa depois do êxito na Festa Literária Internacional de Paraty, em Julho, no Brasil. Ainda atordoado, o autor escapou para a Islândia de onde acaba de chegar.

Este novo romance conta a história de Crisóstomo, que ao fazer 40 anos lida com a tristeza de não ter tido um filho; de Camilo da Isaura, de Antonino e de Matilde. “Todos mostram que para se ser feliz é preciso aceitar ser o que se pode”, lê-se na contracapa. Crisóstomo, pescador, é o “eixo central do livro”, explica o escritor. Isaura é “uma senhora camponesa que cria animais e tem uns orégãos para desfazer, vive no campo”. Antonino, “para disfarçar ou para tentar fugir à sua sexualidade, procura casar com Isaura”. Camilo é “o menino de 14 anos que o Crisóstomo acaba por acolher e que se torna no seu filho”. Matilde é a mãe de Antonino e rejeita-o. Tem uma caseira, Rosinha, que casa com um velho. “A caseira da Matilde tem uma galinha gigante. Um dia cozinha a galinha gigante e morre. Este livro tem muita gente, uma personagem é muito especial: uma senhora anã.”

O título, “O filho de mil homens”, alude à ideia de que somos resultado de uma família que se gera espontaneamente pelos afectos e por uma necessidade quase instintiva. Fecha e abre um ciclo. Os próximos dois livros do escritor também tratarão da filiação, da questão de perfilhar alguém e de constituir família. O autor, que fará 40 anos em Setembro, passou dois anos a tomar notas para este romance mas o tempo de escrita foi relativamente rápido. Em Fevereiro e Março esteve 15 dias em Lindoso, freguesia de Ponte da Barca, quase na fronteira com Espanha em cima do Parque do Gerês. “Quando me disseram que ia para o Lindoso e que era um lugar muito lindo -é de facto um lugar incrível e muito recôndito -estava à espera que a casa pudesse dar azo a apreciar tal beleza”. Mas as janelas todas davam para um paredão em ruínas. Estava enclausurado em pedregulhos, ruídos constantes no sótão. “Percebi que uma das hipóteses para os ruídos eram os ratos. Apareceu-me um em cima dos pacotes de chá. Andava muito satisfeito a passear na cozinha. Tentei enxotá-lo fazendo barulho e o rato não se afastava. Fugiu-me pela chaminé acima.” Passava os dias fechado em casa, a escrever. O dono avisara-o: “Olhe, você à noite não saia de casa sobretudo se vir cães. Se perceber que tem cães por aí não se meta com eles porque às vezes não são cães, são lobos. Descem da montanha, à procura de galinhas, e já houve uma senhora que foi para o hospital porque o lobo atacou-a.” Teve outra “história horrível” nessa casa. Um dia, por volta das 4 da manhã, percebeu que alguém tentava abrir a porta. “Abri a janela mas a escuridão era tão absoluta, porque à meia-noite desligavam as luzes da rua. ‘Está aí alguém?’ e ouço a voz de um homem que me dizia: ‘O que é que você está a fazer aí dentro? Essa casa ainda é de um primo meu’.” Explicou-lhe que a casa era arrendada. Ele respondeu-lhe: “Vou ali abaixo e já volto para lhe explicar que esta casa é de um primo meu. Você espere aí que já vai ver o que lhe acontece.” Não conseguiu ver sequer a cara do homem e ele não apareceu mais.

“No dia seguinte liguei para o senhor que me estava a alugar a casa a dizer: ‘Há alguém que ainda é seu primo para todos os efeitos, e está a tentar aterrorizar-me à noite’. Ele não sabia quem era e ninguém conseguiu identificar um maluquinho assim.” Aquela casa criou-lhe “stress”. O livro que era para “propender para a beleza”, acabou com uns “períodos de negrume” por causa da experiência. “Foi escrever mesmo na casa do terror.”

(artigo publicado no caderno ípsilon, de 26 de Agosto de 2011)

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