Chico: Um disco cheio de amor para dar

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O músico Chico Buarque está de regresso e, aos 67 anos, cinco anos depois do seu último trabalho musical, mostrou que ainda há um garoto dentro dele. Inovou ao utilizar a Internet para chegar aos seus fãs e ofereceu-lhes um disco cheio de amor para dar. Por Isabel Coutinho, no Rio de Janeiro

Na sua coluna de ontem, no jornal O Globo, Ancelmo Gois brincava: “Chico Buarque atingiu a perfeição com a Internet: faz show sem sair de casa e lança disco sem entrevista.” Depois de lançar Carioca, em 2006, o músico brasileiro, de 67 anos, tem nas lojas portuguesas e brasileiras, este fim-de-semana, um novo disco, Chico, com dez canções. Desde o dia 20 de Junho que o novo trabalho tem vindo a ser promovido e divulgado através do portal www.chicobastidores.com.br que permitia a pré-venda do disco e dava uma senha de acesso a conteúdos exclusivos relacionados com as gravações a quem fazia a encomenda no Brasil.

Uma estratégia de marketing que nenhum músico tinha ainda utilizado no Brasil. O assessor de Chico Buarque, Mário Canivello, disse ao P2 que na pré-venda foram encomendadas quase oito mil unidades. “Somando-se a estas os discos vendidos para as lojas, Chico saiu com um total de 45 mil CD, número excepcional para o mercado de hoje. A expectativa é que esse número cresça significativamente, uma vez que o disco esteja nas lojas”, acrescentou. Em Portugal, o disco também está em pré-venda na Fnac online e quem o encomendou terá acesso a uma palavra-passe para também poder ver os conteúdos do portal.

A concepção, conteúdo e estratégia online é de Bruno Natal, que em 2006 realizou o documentário Desconstrução sobre as gravações do disco anterior de Buarque. Foi justamente para não se repetir o que já havia sido feito que surgiu o projecto Chico: Bastidores.

Num vídeo de apresentação, Chico Buarque explicava que a ideia é: “Todo o dia botar uma coisa nova. Um vídeo, uma gravação, um depoimento de algum músico, uma coisa inédita. Eu não entendo muito disso, mas eles dizem que a ideia é manter você interessado ou se não quiser…” E escangalhava-se a rir e fugia da câmara.

Todos os dias (excepto aos domingos) o Chico: Bastidores teve conteúdos inéditos relacionados com a gravação do disco. Fotografias, vídeos e imagens das gravações, entrevistas com Chico Buarque e com os músicos a contarem um pouco da história do disco e dos bastidores da produção. Havia sempre dois conteúdos: um aberto a todos e outro fechado para quem tinha comprado o disco antecipadamente. No dia em que todos podiam ver um vídeo onde Chico Buarque falava, por exemplo, da canção Querido diário, aqueles que tinham acesso ao conteúdo fechado podiam ouvir a faixa integralmente.

No dia 19 de Julho o documentário completo sobre as gravações deste disco realizado por Bruno Natal intitulado Dia Voa (retirado de um dos versos das canções) foi exibido online, de hora a hora, para quem tinha senha de acesso. E na quarta-feira aconteceu a apoteose deste projecto: quinze mil pessoas assistiram ao pocket show que Chico Buarque fez “ao vivo” na Internet, a partir da biblioteca da sua casa no Rio de Janeiro para o mundo. A apresentação durou 30 minutos, no início houve alguns problemas técnicos por causa da enorme afluência de cibernautas, mas foram resolvidos. O concerto teve a participação de João Bosco, que é um dos seus parceiros neste disco, tocaram duas canções (Sinhá e Nina) e até conversaram sobre futebol e as vantagens e desvantagens da Internet. “É moderno [usar a Internet], mas retoma o que havia antigamente com o rádio. Lançar as músicas pouco a pouco favorece o entendimento das canções. A gente ouve a primeira vez, tem uma favorita, troca por outra. E vai indo”, disse o músico.

Desta forma, Chico Buarque conseguiu escapar a dar entrevistas e à imprensa foi dada uma senha que permitia o acesso a uma entrevista, em vídeo, que o cantor deu para o Chico: Bastidores e que serve de base para este texto. O disco Chico tem dez novas canções embora duas já não sejam inéditas: Sou eu, um samba em parceria com Ivan Lins que Buarque tinha gravado com Diogo Nogueira e que agora tem uma gravação em dueto com o baterista Wilson das Neves. E Se eu soubesse, que Chico escreveu para Thaís Gulin e canta com ela no segundo disco da jovem cantora, ôÔÔôôÔôÔ, mas que aqui tem uma nova versão que ele considera, a versão do autor, um choro-canção. “Desde que eu terminei o outro disco eu não compus mais nada. Primeiro eu fiz uma tournée, viajei e cantei por aí durante um ano, em seguida comecei a escrever meu livro, o meu romance, o que me tomou mais um ano e meio. Aí mais um tempo para me desligar da literatura, essa história toda que se vem repetindo há quase 20 anos.

Essa brincadeira. Está dando certo por enquanto”, admite o músico. “No começo do livro [Leite Derramado, que recebeu o Prémio Jabuti e o Prémio Portugal Telecom de Literatura] eu tinha uma música do Ivan Lins que ele tinha me mandado e que estava na minha cabeça. Eu falei para ele: ‘Ivan segura que essa letra é minha.’ Cheguei a fazer uma letra monstro, uma maneira de marcar território, para ele não dar para mais ninguém, em cima de um título dele que era Sou eu. A ideia era botar uma menina para sambar e dizer que no fim da história quem sai com ela sou eu, sou eu.” Quando o romance foi lançado, Ivan Lins “cobrou”. Chico então deu “um jeitinho” na canção e esse foi o ponto de partida para o seu regresso à música, ou melhor, à letra das canções. Mas ainda levou algum tempo para que a música o aceitasse de volta. Começou a tocar um pouco de piano e a “buscar no violão alguma coisa” durante mais um ano.

E a primeira música dessa nova leva que Chico compôs foi uma valsa russa, Nina, e depois uma música foi “puxando a outra”. Conseguiu reunir nove músicas. “Já estava conformado com a ideia de lançar um disco de nove músicas. Paciência, ia ser como o Almanaque (de 1981). Mas, quando o Radiohead fez um disco só com oito faixas, eu pensei: ‘Bom, tá sobrando!'” Mas quase no final das gravações Chico Buarque conseguiu fazer mais uma canção, Querido diário. A décima.

Rascunho das coisas

Houve diferenças entre o método de trabalho deste e dos discos anteriores. Desta vez, a banda (composta pelo pianista João Rebouças e pelo baixista Jorge Hélder) teve oportunidade de ensaiar em casa do maestro Luiz Claudio Ramos (direcção, produção musical e arranjos) que agora tem um estúdio em casa. “Tínhamos o nosso horário, podíamos trabalhar sem pressão”, explica Chico. Por isso, quando chegaram à gravação as músicas já estavam prontas.

Luiz Claudio Ramos, no documentário realizado por Bruno Natal, considera que este é um disco mais minimalista do que os anteriores. “Eu acho legal isso, você pegar as ideias de uma grande orquestra e condensar num pequeno conjunto”, diz. “Todos os meus discos são discos de autor. Acho que as pessoas compram os meus discos e vão assistir aos meus shows sem esperar uma grande performance, um grande cantor é um compositor que canta e o que aconteceu talvez é que eu tenha tido mais tempo meu para amadurecer cada composição, porque isso é pré aos ensaios na casa do Luiz, porque foi tudo muito rápido assim agora, três, quatro meses, mas foi um ano e meio de composições.” Para Chico Buarque é muito difícil mostrar rascunho das coisas. Ele queria estar muito seguro das canções. Até pelo prazer de encontrar o melhor acorde e para depois poder negociar. “Quando está bem sedimentado, fica mais forte para impor a sua opinião”, diz.

Passou as músicas para o maestro através da Internet, utilizando o GarageBand do seu Mac. Quando começaram a ensaiar, ninguém tirou o violão das suas mãos, e na gravação mostrou-se surpreendido quando viu que tinha um estúdio para gravar o instrumento. Algumas pessoas já lhe tinham sugerido que ele colocasse o seu “violão sujo, tipo Nelson Cavaquinho”. Mas ele diz: “Se eu tivesse com as mãos a metade da habilidade que eu tenho com os pés, eu seria o Paco de Lucía. Eu literalmente meto os pés pelas mãos.” Considera-se um músico intuitivo. Só sabe o básico da teoria. No entanto, conhece cada vez melhor o seu instrumento. “Posso ir onde eu não ia, posso encontrar um caminho que era insuspeitado para mim há seis anos. Eu tenho mais liberdade, às vezes parece que eu posso fazer tudo com a harmonia de uma canção, eu me sinto poderoso mesmo, podendo fazer tudo, como posso fazer com a letra. Mas a parte literária eu estou mais à cavaleiro, eu conheço mais, eu posso discutir com qualquer um. É isso, está errado, mas é certo. É isso que eu quero. Com um músico fica mais difícil, sei que ele conhece mais que eu, fico menos seguro. A letra eu discuto com qualquer um”, afirma. E dá o exemplo da letra de Nina, a canção que deu à cineasta portuguesa Teresa Villaverde para ser usada no filme Cisne, que irá para as salas em Setembro, e onde é interpretada por Ana Moura. “‘Nina adora viajar, mas não se atreve/ Num país distante como o meu.’ Eu sei que quem se atreve não se atreve numa coisa. Mas o meu atrever-se é intransitivo. Eu não me atrevo! Ponto. É uma liberdade que eu estou tomando e que algum gramático pode me contestar, mas eu vou discutir com ele. Não tem no Camilo Castelo Branco, mas eu estou inaugurando essa conjugação, essa regência. Com a letra não perco para ninguém. Discuto, discuto.”

Um nonsense para crianças

A primeira canção a ser lançada no Chico: Bastidores foi Querido diário, a última a ser composta. A letra: “Hoje pensei em ter religião/ De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/ Por uma estátua ter adoração/ Amar uma mulher sem orifício” deu uma enorme polémica. Chico Buarque explicou ao P2 que o verso “amar uma mulher sem orifício” tem a ver com a leitura de O Ramo de Ouro, de Sir James Georges Frazer. “Não só esse verso como a estrofe inteira, quando o personagem pensa ‘em ter religião’ e alude a ritos ancestrais.” Ele considera a polémica artificial, embora diga que “a ideia é insólita, claro, mas não menos que ter adoração por uma estátua ou fazer sacrifício de uma ovelha”.Inicialmente a música tinha sido feita para as suas netas, com uma letra nonsense para crianças.

Este disco tem várias canções de amor. Muitas das músicas falam da paixão de um homem mais velho por uma menina moça. “No início, achei que era um disco sobre música, com meu amor pela música se manifestando de forma explícita”, diz Chico. “Mas acabou sendo um disco de amor tout court, simplesmente. O disco é cheio de amor para dar. É um disco amoroso sem dúvida!” E diz mais: “Naturalmente, quando se fala de um amor, você tem que levar isso em conta. Você não é mais aquele garoto, você é um senhor de respeito. E tem que reconhecer a beleza de um amor maduro sem esquecer também o possível ridículo, o que há de risível nisso. Você começa a achar graça de você mesmo, dos seus sentimentos juvenis que parecem não ter cabimento, mas têm. É essa possibilidade de chegar a esse ponto, de brincar com isso, de assumir o seu tempo, a idade que você tem e não ficar se desesperando por causa disso. Enfim, eu sempre desconfiava, desde garotinho, que eu ia ficar velho. [risos] E eu acho que ainda vou ficar velho, e a melhor coisa é ficar.” Chico Buarque está satisfeito com este novo trabalho. “Para mim no momento é o melhor. Mas é sempre o melhor. Melhor do que isso é impossível.” Não sabe agora se vai escrever um novo livro, no momento quer desligar-se da música por um tempinho. Mas tem parceiros a quem está a dever letras. E por estes dias tem de decidir se vai ou não dar concertos pelo mundo fora. Se isso não acontecer, é bem possível que o vejam já, no próximo ano, como escritor convidado do festival literário Hay de Cartagena. Ou talvez não. É que, se não fizer shows, Chico Buarque vai ficar com pena.

(reportagem publicada no caderno P2, do jornal PÚBLICO, no dia 22 de Julho de 2011)

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