Manuel Jorge Marmelo a espreitar Luís Represas
(foto retirada do site do Correntes d’Escritas)
O encontro literário de escritores de expressão ibérica terminou com uma homenagem a Carlos Pinto Coelho e a Malangatana. No Correntes, tanto se fala de pactos com o Diabo como de conversas de vizinhas Por Isabel Coutinho
É um eterno diálogo. Quem vai assistir ao Correntes d’Escritas, o encontro de escritores de expressão ibérica que está na 12ª edição e acontece na Póvoa de Varzim, ouve com muita atenção os escritores e sabe que não vai passar por parvo.
Quando chega o momento das perguntas do público, que enche sempre o auditório com capacidade para 300 lugares, os moderadores das mesas brincam dizendo “falem agora ou calem-se para sempre” e a plateia nunca fica calada. Este ano, os temas escolhidos para servirem de mote às conversas dos escritores são todos versos retirados das obras finalistas do Prémio Literário Casino da Póvoa. E nem sempre a plateia ficou contente com o rumo que os escritores lhes deram.
No final da sessão que se inspirava num verso do livro Mais Espesso que a Água, do poeta Luís Quintais, uma voz feminina entre a assistência chamou a atenção: “O tema, cada um leva-o sempre para sítios distintos, mas eu julguei que algum de vocês fosse buscar o papel do leitor para justificar o verso: ‘Eu começo depois da escrita’, de Luís Quintais.” Silêncio.
Calhou ao escritor brasileiro João Paulo Cuenca, a lançar nas Correntes o romance O Único Final Feliz para Uma História de Amor É Um Acidente (ed. Caminho), responder. Mostrou que a leitora tem toda a razão, que assim se vê como os escritores são autocentrados e expôs a sua concepção de literatura: “Quando você olha uma pintura, você não se sente pintando. Você não pinta a pintura com o pintor. Você também não toca piano com o pianista; mas quando você lê o romance, você está sendo tão romancista quanto o romancista.” Afinal, os leitores têm sorte.
É então que se ouve outra voz feminina vinda da plateia: “Posso fazer um acrescento?”, pergunta. “Penso que todos começaram depois da escrita dos escritores porque são fruto da vossa actividade prévia de leitores. Se são grandes escritores, tiveram de beneficiar muito da escrita de outros escritores.” Foi aí que o escritor e académico brasileiro a viver em Lisboa Juva Batella, autor de O Verso da Língua (ed.Presença), pensou numa saída para que os escritores não ficassem com fama de grandes narcisistas. E, da plateia, lançou o repto: que tal colocarem-se na posição de leitores, não apenas da história da literatura mas leitores dos romances que escreveram? Passados dois, três anos depois de ter publicado o livro, o escritor devia reler-se a si próprio, como se fosse um simples leitor. O que levou Karla Suárez, uma das escritoras na mesa, a contar que tentou fazer essa experiência e que não a irá repetir. Quando a fez, ficou com vontade de dizer aos seus leitores: “Destruam esses livros, para que eles desapareçam!”. Teve vergonha do que tinha escrito. “Há tantos bons escritores, prefiro passar o meu tempo a lê-los do que a ler-me a mim mesma”, disse a autora do romance Havana, Ano Zero (Quetzal) a rir-se.
“Não mexe, não mexe”
Angustiado também estava Cuenca, porque está a rever Corpo Presente (2003), o seu primeiro romance, a ser reeditado no Brasil. “De certa maneira, estou aqui por causa desse livro, foi ele que me transformou numa personagem literária. Eu tinha 24 anos quando o publiquei, o livro teve óptimas resenhas, foi muito bem aceite e eu acho-o insuportável”, disse, provocando risos na sala. “Às vezes me pego lendo as resenhas boas do livro para tentar entender. É quase que uma sensação de nojo, de asco profundo, ver as suas entranhas ali. Eu não sei o que vou fazer… Até que ponto é ético mudar esse livro? E será que vai melhorar o livro? E se fica pior? O que é que a pessoa faz?”, pergunta o escritor carioca ao público na Póvoa de Varzim. “Não mexe. Não mexe”, gritam duas vozes femininas.
“Representa uma fase”, explica outra voz masculina. E é aí que João Paulo Borges Coelho, que nasceu no Porto mas é naturalizado moçambicano e está cá a lançar Cidade dos Espelhos (ed. Caminho), propôs, para acabar com aquele conflito entre escritores e leitores, que se colocasse também o livro na discussão. E a frase “começo depois da escrita” de Quintais passaria a ter um novo sentido: “o livro” começa depois da escrita.
E isto leva-nos a outro problema que pode assolar os escritores e de que Manuel Jorge Marmelo, a participar pela décima vez no Correntes d’Escritas, é um exemplo: o dos escritores sem livros. O autor de O Homem que Julgou Morrer de Amor, Portugués, Guapo y Matador, As Mulheres Deviam Vir com Livros de Instruções, O Amor É para os Parvos, entre outros, participou na mesa dedicada ao tema “A minha arte é uma espécie de pacto”, verso de José Tolentino Mendonça. Actualmente, a sua relação com a obra não é a mais famosa.
“Primeiro, tenho aqueles títulos imbecis que o Rui Zink [o moderador da mesa] fez questão de recordar e, para além disso, a editora que os editou faliu.” Ouvem-se gargalhadas por todo o auditório. “Neste momento, em que tenho quase vinte títulos publicados, chego aqui quase na situação de autor sem obra para mostrar. Acho que há um livro meu na livraria, lá fora, de uma outra editora que, já em desespero de causa, me editou”, brinca, referindo-se a As Sereias do Mindelo (Quetzal). Quando preparava a sua intervenção, o escritor do Porto lembrou-se da frase de Bernardo Soares: “Aquela [obra] que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada.” Esta “lamúria” fê-lo pensar na vizinha do rés-do-chão do seu prédio, a única pessoa que o trata por “o senhor escritor”. Todas as noites, a vizinha enrola crucifixos na maçaneta da porta de casa e quando “o senhor escritor” por lá passa é “um espectáculo bonito de se ver”. Também põe folhas de jornal por baixo da porta a servirem de tapetes, o que cria muito bom ambiente no condomínio. A semana passada, “esta senhora inventou uma coisa completamente nova”. Ainda hoje Manuel Jorge Marmelo está para tentar perceber para que são os vários sacos, relativamente cheios, que ela vai colocando na soleira da porta. “Estou a investigar para que servem, mas suspeito que seja um mecanismo para espantar escritores. Eu, pelo menos, estou completamente espantado e vou ter que investigar melhor a vida desta minha vizinha, porque ela tem uma outra particularidade: é vítima de várias conspirações orquestradas pelas diversas pessoas que moram no prédio. Inclusivamente por trolhas que lá vão fazer serviços e, pelos vistos, fumam com grandes baforadas para dentro de casa dela.” Silêncio interrogativo no auditório. “Não estou a inventar, isto está escrito numa participação ao Ministério Público que está em fase de tramitação na divisão de investigação criminal da Polícia de Segurança Pública. Já fui chamado a prestar declarações sobre isto.”
Ou o Diabo ou uma feijoada
E, já que na mesa se discutia a “arte enquanto pacto”, ocorreu a Manuel Jorge Marmelo imaginar uma situação em que se oferecia ao Diabo. “Para ter muito sucesso, dinheiro e gajas, que normalmente é aquilo que qualquer pessoa quer quando é artista.” E, neste momento, toda a sala se ri, porque Manuel Jorge Marmelo, num dos extremos da mesa, está a olhar de soslaio para o cantor Luís Represas que partilha com ele a mesa, pois veio à Póvoa de Varzim lançar a obra infanto-juvenil A Coragem do Tição (Dom Quixote), querendo saber que aquilo que está a dizer não está muito longe da verdade, como ele acredita. Há mesmo um conto de Rui Manuel Amaral em que um escritor se oferece ao Diabo para ter sucesso e dinheiro, consegue, mas o Diabo fica-lhe com as duas mãos. “O que é uma coisa desagradável quando se tem gajas e dinheiro para gastar. Não dá jeito nenhum”, acrescenta o escritor do Porto. Por isso, quando o Diabo lhe aparece lá por casa, disposto a fazer um pacto, Manuel Jorge Marmelo só pensa no pacto que fez com o seu estômago e consegue fazer uma feijoada razoável. O escritor crê que se um dia ficar completamente maluco, como a sua vizinha do rés-do-chão, talvez a convide para subir ao segundo andar para jantar.
(reportagem publicada no caderno P2 do jornal PÚBLICO no dia 26 de Fevereiro de 2011)