À descoberta de Sophia

A cerimónia de doação do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen à Biblioteca Nacional, hoje, é acompanhada de uma exposição e de um colóquio internacional. Do material agora depositado fazem parte vários poemas inéditos que revelam o princípio e o fim da poesia de Sophia. Por Isabel Coutinho

“Minha querida filha, minha rica, chegaram aqui os seus versos, guardei um livro para mim que li e reli. Acho tudo tão lindo, dormi com o livrinho debaixo do meu travesseiro. Fiquei tão emocionada! (…) Não sei que mais hei-de dizer. Custou-me tanto a habituar-me à ideia de ter uma filha Poeta, não esperava nada que isso me acontecesse mas agora já sei como é, já compreendo tudo. (…)”, escrevia a mãe de Sophia de Mello Breyner Andresen no dia 2 de Agosto de 1944, numa carta enviada à filha a propósito da publicação de “Poesia”, o seu primeiro livro.

Esta é uma das cartas que fazem parte do espólio da escritora (1919-2004), doado pela família à Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). A cerimónia de assinatura do termo de doação realiza-se na hoje, às 16h, em Lisboa. Terá leitura de poemas (pelos actores Beatriz Batarda e Luís Miguel Cintra) e testemunhos de amigos. Às 18h30, é inaugurada a exposição material do espólio, “Sophia de Mello Breyner Andresen – Uma Vida de Poeta”, apresentada pelas comissárias Paula Morão e Teresa Amado, será lançado o catálogo e mostrado o sítio “web” dedicado à escritora na Biblioteca Nacional Digital. E nos dias seguintes, 27 e 28 de Janeiro, tem lugar na Fundação Gulbenkian, também em Lisboa, o Colóquio Internacional dedicado à escritora, promovido pela sua filha, Maria Andresen de Sousa Tavares, com a colaboração do Centro Nacional de Cultura. Sairá também um número especial da revista “Colóquio-Letras”.

Em 2004, depois da morte de Sophia, ficaram dois escritórios carregados de papéis na casa da Travessa das Mónicas, em Lisboa, onde a escritora vivia. Era preciso dar-lhes um destino. Quando a casa foi vendida, dois anos depois, foi tudo encaixotado e guardado numa garagem. Maria Andresen, a filha mais velha que foi uma das herdeiras do espólio e se reformou para poder trabalhar exclusivamente nele, quase entrou “em pânico”. Rapidamente percebeu que não podia tratar da inventariação do espólio sozinha. Foi nessa altura que se lembrou de convidar Manuela Vasconcelos, especialista em tratamento de espólios de Literatura Portuguesa Contemporânea que tinha trabalhado no espólio de Fernando Pessoa na BNP, para a ajudar. A equipa começou a trabalhar, em Setembro de 2008, numa sala cedida pelo Centro Nacional de Cultura, com a ajuda de subsídios.

O espólio de Sophia de Mello Breyner é composto por 80 caixas de arquivo, mais nove de um núcleo à parte constituído a partir de parte do espólio de Francisco Sousa Tavares, seu marido. Na BNP deram entrada 31 caixotes com todas estas caixas de arquivo dos papéis da autora (entre os quais há fotografias, correspondência, manuscritos, folhas soltas, agendas domésticas e cadernos). “A minha mãe detestava bibliotecas. Ia-se separando, quando podia, da maior parte dos livros até ficar com o núcleo dos que ela gostava e de que não se podia separar”, explica Maria Andresen quando lhe perguntamos se o espólio não inclui a biblioteca. “Nesse aspecto é uma biblioteca extremamente eloquente, porque foi reduzida aos livros com que ela estabeleceu uma ligação forte. Esses livros, o meu irmão Miguel ficou com eles. Há uma parte que virá a dar entrada no espólio da Biblioteca Nacional por incluir manuscritos.”

O momento mais comovente

No ano passado, a 17 de Março, Maria Andresen queria levar um presente de aniversário para a sua irmã Sofia e começou a vasculhar a arca onde a mãe delas guardava fotografias antigas. “Vi que no fundo dessa arca existiam umas pegas laterais. Levantei-as e encontrei um tabuleiro onde estavam alinhados vários cadernos”, conta Maria. Eram os cadernos onde Sophia de Mello Breyner tinha escrito os seus primeiros poemas. Foi o momento mais comovente e a grande descoberta no espólio.

Quando apareceram estes cadernos, Manuela Vasconcelos teve a sensação de que aquilo era “verdadeiramente o núcleo do espólio de Sophia de Mello Breyner”. Ao contrário do que acontece quando se inventariam os papéis dos escritores que guardam tudo, o que se ia encontrando no espólio de Sophia eram “fragmentos, restos”. A parte mais longa e organizada era do fim da sua vida, quando a escritora já tinha uma secretária que a ajudava. “A partir de certa altura, a minha mãe passou a ter o cuidado de guardar”, afirma Maria. Embora seja evidente que Sophia não tinha a atitude do escritor que prepara a eternidade, percebeu-se que a parte preciosa para ela seriam os cadernos que tinha guardado naquele fundo de arca e de que não tinha dado conhecimento sequer à família. “Essa dimensão da posteridade que é muito visível em alguns escritores – como Pessoa ou Nemésio -, não a senti ao pegar no espólio da Sophia. Há de facto, muitos poemas que tem várias versões e é possível fazer um trabalho de génese dos poemas através daquilo que encontrámos no espólio, mas provavelmente grande parte dos poemas não tem versões anteriores, nem sequer manuscritos. É muito pobre a parte dos manuscritos da poesia publicada”, lembra Manuela Vasconcelos.

Sophia escrevia à mão. Encontraram-se no espólio alguns livros manuscritos dos contos para crianças e um texto inédito, muito engraçado, sobre o seu processo de criação: “Comecei a inventar histórias para crianças quando os meus filhos tiveram sarampo. Era no Inverno e o médico tinha dito que eles deviam ficar na cama, bem cobertos, bem agasalhados. Para isso era preciso entretê-los o dia inteiro. Primeiro contei todas as histórias que sabia. Depois mandei comprar alguns livros que tentei ler em voz alta. Mas não suportei a pieguice da linguagem nem a sentimentalidade da ‘mensagem’: Uma criança é uma criança não é um pateta. Atirei os livros fora e resolvi inventar.”

Maria Andresen está convencida de que Sophia entregava aos editores o livro feito, em manuscrito, e que depois ele não regressava. Ela não guardava sequer provas tipográficas, ao contrário de outros escritores.

Os cadernos encontrados no ano passado têm poemas que estão datados de 1933, 1934 e vão até 1943. “A Maria descobriu que, às vezes, há acrescentos. Os cadernos têm esse lado perigoso. Há poemas que têm uma data, mas muitas vezes o autor vai outra vez ao caderno e acrescenta qualquer coisa. A datação implica um estudo dos materiais”, explica Manuela. Há outros poemas que não têm data, provavelmente fê-los posteriormente. Destes cadernos saiu 80 por cento do material do primeiro livro de Sophia, a que a mãe se referia na carta (“Poesia”, 1944), e do segundo livro (“Dia do Mar”, 1947).

Sophia inédita

Neste conjunto dos primeiros cadernos, há quatro que estão rasgados aos bocadinhos. A história da destruição destes cadernos “com fúria e desespero” está contada em dois poemas do livro “O Nome das Coisas” (1977). Maria Andresen andou a fazer telefonemas para tentar reconstituir este episódio.

Os amigos de Sophia liam os seus poemas, António Calém até os passava à máquina, e insistiam para que ela publicasse o seu trabalho. “Ela tinha muitas dúvidas sobre isso e a certa altura rasgou os cadernos para não ter a tentação de publicar. O António Calém colou-os com fita-cola”, conta Maria Andresen. Também se sabe que, em Fevereiro de 1944, Miguel Torga foi ao Porto fazer uma conferência. “Um dos amigos da minha mãe, o Fernando Vale, que vivia em Coimbra, levou-a à conferência. Apresentou-a ao Miguel Torga dizendo que escrevia poemas. Mais tarde, Torga escreveu a Vale dizendo, ‘a amiga é muito bonita, só é pena escrever poesia’. Pensou que era uma menina rica do Porto a armar em intelectual, em poeta”, continua Maria. Fernando Vale contou isto a Sophia, que ficou furiosa. Copiou alguns poemas e enviou-os a Miguel Torga, que ficou encantado. Aconselhou a publicação e Sophia deixou de ter dúvidas. O livro sai na primeira semana de Agosto. A mãe escreve-lhe a carta logo a seguir.

Nos poemas destes cadernos encontrou-se também uma poesia que já tem características muito próprias. Muito ligada a “influências simbolistas e nórdicas”, “à poesia alemã”, a Hölderlin, a Rilke, com “toques” de Teixeira de Pascoaes e brumas das praias do Norte”, diz Maria. Há poemas sobre Tristão e Isolda e sobre grandes mitos nórdicos e gregos. “E há um lado muito deprimido. Com frequência faz referência à morte e ao desejo de morrer”, explica Maria Andresen. “Há um sentimento de cerco. Ela diz muito: sinto-me cercada neste mundo maravilhoso’. É muito engraçado, vê-se que depois a poesia da minha mãe dá um salto. O espólio confirma o que se podia ver nos livros. Se a primeira poesia era deprimida, a partir dos anos 60 aparece um gosto pela felicidade. De repente, nos poemas, a luz é a do Sul. A descoberta do Algarve é absolutamente apaixonante.”

Escritos nesses primeiros cadernos estão dezenas de inéditos. E depois há outros que escreveu ao longo da vida, “não tantos assim, porque ela rasgava imenso”, diz Maria, que guarda ainda em casa uma caixa em que estão os poemas da fase final da vida de Sophia. Esses ainda não se sabe que destino terão. “Estiveram no espólio e depois retirei-os. Por uma questão de segurança. Vou pensar se quero que isto alguma vez vá parar às mãos de alguém. Estão escritos com a letra muito tremida, muito desfeita. Algumas daquelas coisas são maravilhosas, têm até um tom de pedido, de oração, de lamento. São coisas muito pessoais, há um poema feito a mim – esse já está na BNP – que eu até escrevi por cima. É uma catástrofe, porque a minha mãe já não estava bem e, quando escrevia, chegávamos ao pé dela, pedíamos para ela repetir o que tinha escrito e apontávamos o que ela dizia. Ninguém pensa que um dia aquele papel vai ser espólio.”

A serem publicados, esses poemas do final da vida terão de o ser numa edição autónoma, com um prefácio onde se explique que foram escritos numa fase em que Sophia já estava muito doente. “É um trabalho complicado. É evidente que eu não vou destruir aquilo. O mais certo é virem parar à BNP. Agora em que condições, ainda não está decidido”. Quanto aos inéditos da primeira fase, vai-se decidir o que é publicável com pessoas que queiram estudar a obra. “Há ali coisas maravilhosas que nunca foram publicadas e algumas vão estar agora na exposição e no catálogo.”

O tempo é sempre muito curto para tomar certas decisões. Maria Andresen ainda vai ter que definir, do que está depositado na BNP, o que é que ficará sob reserva de consulta durante os próximos 20 ou 30 anos.

(Texto publicado do ípsilon)

4 comentários a À descoberta de Sophia

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  2. Bom dia Isabel,
    gostei imenso de seu artigo na Folha.
    Sobre o ano de 2012 há um movimento crescente cá para fazer a Fliporto (que nasceu em Porto de galinhas e agora está em Olinda) no Porto.Nada mais apropriado.Tordo e Agualusa concordam.
    Porto é cidade irmã do Recife e há cá uma grande colónia de lá.Há uma casa de Pernambuco em construção(projeto de Bórsoi,um grande arquiteto ítalo-brasileiro) que precisa ser concluído.
    Vamos batalhar!

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